Vamos para lá do texto de Luís Mendonça, porque a dimensão de Chantal Akerman assim o exige. Abrimos a homenagem a outros walshianos. Tempo de recordar um dos vultos maiores do cinema moderno.
Rever Les rendez-vous d’Anna (Os encontros de Anna, 1978) te revela como uma grande cineasta consegue, trabalhando embora com filigranas, mal-entendidos e sugestões, compor um panorama material (materialista) dos mais bem urdidos e mais árduos sobre o degelo, o Sindicato da solidariedade, e outros processos de dissolução contemporâneos a 78, por exemplo; mas também mais ou menos domésticos, europeus ou outros mapas (Heidegger: A Europa é o lugar onde o sol nasce; a Europa somos nós, várias Europas). Um trem com espaço insuportavelmente adstringente, e eis uma experiência; uma plataforma vertical de autômatos com horário marcado, e temos uma experiência; um hotel concentracionista pelo travelling dianteiro, e ainda duas experiências; ser judeu é isto: é navegar no deserto (ser), e dele tirar um Livro (Significação: afetiva, fenomenológica, epocal). É perder-se no exílio, e neste imbroglio de línguas e costumes cerzir um outro corpus (de linguagem, de mortos por recordar e amantes jovens a me penetrar). Um renascimento, certo. Mas quantas mortes tiveram de sofrer estes guardiões do fogo fátuo, da Berit ensanguentada, da vastidão inominável de Nada para ressuscitar? Cristo só foi mísero por três dias; mas esta manhã vai brilhar por gerações e gerações de viajantes e hospedeiros, nómadas e estalajadeiros – pois o deserto também tem, sob seus arcanos de pedra, a Cidade, arquétipo de todas as outras. E, à semelhança de Jerusalém, acolhe em suas escorias estratificadas milhares de séculos, de homens e de raças.
Só que o Deserto do exilado judeu, de que Akerman cartoria aqui as trilhas ordenadas entre blocos de ardósia e fachadas reificadas de hotéis, é mais minimalista, cool, low profile: sabe-se caça na próxima estação, então é melhor seguir, mas com a altaneira indiferença e o passo esguio de quem nunca esteve ali; e, portanto, não deve ser lembrada, fixada (a não ser por nós, a quem o Texto se destina). O amante, a amiga, a nova velha amante contam-lhe histórias de quem se extraviou do ser (emigrou, morreu, “agora já tem filhos”), e Aurora é esta testemunha que, numa mise en abîme, reflete o caráter testemunhal da judia Akerman: estamos aqui para prestar testemunho (a circuncisão é o significante do pacto, logo o testemunho encarnado), mas também atenção- o testemunho do cineasta é, antes de tudo, atenção, segundo Malebranche pelo menos, para quem ‘ a atenção é a prece natural da alma”). Num espaço estritamente material surgem epifanias encarnadas em homens, mulheres e objetos, e se urde uma nova doxa: aquela que prescreve aos seus extraviados cultores uma forma sincopada mas straight line de andar, uma indiferença de autômato, um olhar evasivo; pois, como dito acima, é ao sequestrar para a intimidade as intimidantes grandiloquências da arquitetura que o corpo do nómada pode enfim se fixar em si mesmo, e quem sabe enfim gozar desta frágil e titubeante condição.
Luiz Soares Júnior
News from Home (1977) foi o primeiro filme que vi de Chantal Akerman, e o único em sala, num chuvoso fim de tarde em Serralves. Com News from Home, a solidão invadiu a sala, como uma janela para a intimidade. Akerman filma fragmentos desconexos de uma cidade desintegrada, paisagens como partes de uma insofrível e infindável rat race, preenchida apenas por trivialidades necessárias à sobrevivência que nos apagam lentamente. São testemunhos da passagem de pessoas pela cidade, que é testemunha própria da massa anónima de pessoas que vão passando por Nova Iorque, e que ainda haverão de passar, sem deixar marca, em permanente circulação para lado algum. A câmara é fixa, sempre fixa, ou numa rua suja e quase deserta, ou a espreitar uma cozinha escurecida de um restaurante ou no metro entre paragens indistintas com multidões que se esvaziam – são as formas de Akerman tentar encontrar algo através das pessoas, algo além da cavernosa solidão que transparece dessas multidões. Akerman parece querer mostrar que uma metrópole como Nova Iorque é um gigante com cavidades no coração – as pessoas.
O resultado são enquadramentos com qualidades hopperianas que aludem a uma tristeza nostálgica. Todas estas pessoas desaparecem. Todos aqueles sonhos (planos) desapareceram incompletos, inacabados. Tal como as torres do WTC que dominam as imagens finais do filme, em que abandonamos Nova Iorque à sua alienação, as pessoas que desaparecem e são substituídas por outras são o centro de um filme nas margens. Ao longo do filme vamos ouvindo as cartas da mãe de Akerman, que se sucedem como as pessoas na rua, sem nenhum significado especial, banalidades na sua essência própria da vida. Estamos em 1977 e há uma crise económica, Akerman salta de emprego em emprego para sustentar a sua arte, a mãe queixa-se da saúde e das pessoas, a vida é difícil. Nova Iorque está vazia.
João Araújo
«…nothing more would happen.
I should wait for the snow to stop and then melt.
It snowed for a very long time.»
Lembro-me da primeira vez que vi um filme da Chantal Akerman como se tremesse de frio, só pela ideia. Foi numa sessão da Cinemateca, em que a cineasta esteve presente, por ocasião da retrospetiva que o Doclisboa lhe estava a dedicar, em 2012. O filme era Je, tu, il, elle (1976), com a própria Akerman a existir diante da câmara. Aqui não há um “sobre” a acrescentar em nome de qualquer ímpeto de descrição. Este filme não é “sobre”, simplesmente “é”. Lembro-me dele pela beleza dormente e pela temperatura que me instalou no corpo. Uma temperatura psicológica, uma febre cujo combate silencioso se estende e confina entre quatro paredes, um colchão, papéis e açúcar.
De tudo o que vi depois, para trás e para diante na sua obra, quero captar apenas este cenário de espera. Porque há qualquer coisa de eterno nele. Até parar de nevar.
Inês Lourenço
Saute ma ville (1968) de Chantal Akerman é um filme explosivo do título ao remate, um filme que queria rebentar com as paredes do lar, com as paredes da cidade, não deixar pedra sobre pedra, quebrar os automatismos e acordar os sonâmbulos. Primeiro filme e filme de escola, Akerman à frente e atrás da câmara, portanto filme de afirmação, objecto político – política dos autores -, ácido e cortante. A mulher na utopia cerebral do doce lar familiar, satisfeita com uma vida de desejos básicos – J’ai faim, j’ai froid -, constantemente ocupada por tarefas corriqueiras, sempre alegre, sempre a cantar, sempre assobiando, até que o assobio harmoniza com o outro do gás correndo pelos bicos do fogão e toda a sinfonia termina com um empolgante toque de gongo. Fim. Filme de energia volátil, juvenil, acirrado – cada vez mais me convenço que são os primeiros e os últimos filmes aqueles que mais nos contam sobre os seus realizadores, este funcionava já como presságio, o último ainda não vi mas parece que”Depois [dele], não há mais nada a dizer”.
Interessante comparar o primeiro filme com La Chambre (1972), poucos anos depois mas um mundo de experiências pela efervescente Nova Iorque de “Warhols, Mekas, Brakhages” e claro Snows, mais ainda assim de novo uma divisão, de novo Akerman frente à câmara, de novo o bule no fogão, de novo as trincas nas maçãs, e ainda assim tudo diferente. A irreverência juvenil esvai-se na precisão opressora de uma câmara que filma em contínuo as paredes fechadas sobre os quartos e sobre quem neles habita – não será esse o mais recorrente motivo no seu cinema, a câmara que visita uma casa (ou simplesmente um espaço) que desconhece? Talvez a obra de Akerman não mais tenha regressado a essa alegria desiludida (não lhe conheço as comédias nem os musicais… lá chegarei) mas esta cidade explodida ficou como o travessão de um longo monólogo que agora chegou ao correr das cortinas. Palmas!
Ricardo Vieira Lisboa
Sabemos que se o poeta é um fingidor, o cineasta é acima de tudo um observador. Se a criação no cinema não está imune a fingimentos, há algo na transparência da câmara que deixa ver. Tudo. E esse tudo, no caso do génio de Chantal Akerman, era a possibilidade de mostrar como o enclausuramento (dos quartos, dos hotéis, das relações considerados “à margem” da sociedade) deixava ver uma abertura total e, inversamente, toda a abertura de espaços continha em si o gérmen de todo e qualquer encerramento. Com Akerman tudo era margem: mulher, belga, judia, “experimental” (com algumas aspas). Essa posição ao mesmo tempo que lhe dava um olhar único – [disse muitas vezes irritada, I’m not making women’s films, I’m making Chantal Akerman’s films – isto apesar de se erguer contra aquilo que chamava de mainstream ou o duplo “poder do dinheiro e do phallus“) – trazia-lhe uma profunda solidão, na qual a câmara era o mecanismo pelo qual observava e problematizava, mas que a mantinha à margem das dores emocionais e de julgamento alheios.
Desde este lugar só, que habitava (e a partir do qual compreendia todo o mundo, sem prossivelmente se compreender), há todo um trajecto claro que parte do enclausuramento nas casas [Saute ma ville (1968)], quartos [La Chambre (1972)], lares de família [Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), aqui fazendo explodir, abrir, mecanizando à exaustão os espaços da rotina da mãe-criada-puta] passando aos hotéis [em Hotel Monterey (1972) o impulso documental mostra já uma das suas outras marcas: a impotência/segurança de ver nos seus planos os exteriores a partir dos interiores] e outros espaços abertos [por exemplo em Les rendez-vous d’Anna (Os encontros de Anna, 1978) a protagonista “salta” de cidade em cidade, festival em festival, mantendo sempre esse “fechamento emocional” com os outros]. Com D’Est (1993), filme fundamental, a observação de Akerman atinge o seu zénite criativo. Pode dizer-se que ele é um filme de viagem, exterior, mas dando a ver a interioridade dos espaços de fronteira na Ucrânia, Polónia e Alemanha de Leste. Essa interioridade são os rostos fechados e curiosos dos que esperam, e nisso D’Est é a construção de um “monumento político ao olhar dos povos”, mas é também a capacidade de criar uma abertura no espectador, para ver nestas esperas, nestas pessoas, o espaço de construção das suas próprias expectativas. Quer dizer, afinal Chantal Akerman saiu à rua e descobriu que o exterior pode estar fechado mas que os rostos fechados são as telas de construção de uma abertura qualquer. Paradoxo fundamental de uma cineasta que parte agora, saindo do seu enclausuramento tortuoso, deixando-nos uma obra que sempre escavou todas as aberturas de que necessitamos quando queremos exercer esse dom chamado “liberdade.”
Carlos Natálio