Os cem mil cigarros que Pedro Costa (não) filmou são os cem mil cigarros que vimos fumados (e filmados) em tantas e tão sedutoras cenas que esta homenagem aparece como uma inalação rápida das nossas melhores memórias cinéfilas. Quantos cigarros fumou Bogart no ecrã? Quantos ecrãs fumaram Bogart para os nossos olhos? Fumadores passivos, nós, espectadores? Não, fumadores emancipados, sempre prontos a dar uma passa na eternidade do ecrã.

Thom Andersen é um dos… cigarros? Não, uma das pessoas, entre amigos mais ou menos conhecidos, que James Benning resolve filmar enquanto cada uma, no seu tempo ou ritmo próprio, fuma um cigarro. James Benning filma Andersen, mas também o fuma, isto é, também inala dele, da sua presença, dos seus gestos mínimos no sentido da degustação lenta do vício, uma importante “peça de cinema contemplativo”. O cigarro é estrutural em Twenty Cigarettes (2011). Portanto, é aí, no espelho Benning-Andersen, que se atinge a culminação deste exercício. Aqui, são-nos dados a ver os limites temporais de cada quadro – tamanho do cigarro e a sua forma rectilínea como timeline analógica – e rapidamente nos apercebemos que o seu esgotamento está nas mãos do objecto filmado – o fumador que pode ser mais ou menos ávido, mais ou menos contemplativo… Repito: ele, o fumador, fuma o filme verdadeiramente. O cigarro é a sua “máquina” de cinema. O cigarro é a película que queima, o cigarro é analógico… a câmara, essa, filma em digital aqui, zeros e uns que marcam, a contra-ciclo, uma reversibilidade na imagem. Mas um cigarro não se presta a isso, porque, enfim, é sempre um cigarro e nada mais. Depois de fumado, acabou.
Luís Mendonça

O plano é de Rebecca (1940) mas antes de começar a enaltecer o génio de Hitchcock, neste delicioso toque irónico no retrato da patroa de Joan Fontaine como uma cabra porca e vaidosa, há que dar o seu a seu dono e referir que o toque do cigarro apagado no boião do creme de beleza vem directamente da pena de Daphne du Maurier no livro homónimo cuja adaptação ao cinema dá água pela barba aos historicistas da Sétima Arte. Feita a devida ressalva não se pode esquecer também que se o motivo não é originalmente hitchcockiano também não deixa de ser verdade que Hitchcock a ele regressou noutro famoso plano de To Catch a Thief (1955) em que de novo um senhora com parentesco caprino afoga a brasa do seu fumo num ovo estrelado – e todos sabem da ovofobia do realizador britânico “I’m frightened of eggs, worse than frightened, they revolt me” – plano esse que se converteu recentemente, pelo pincel de Martín Sichetti, numa bela tela que faz parte de uma série de trabalhos do pintor em redor do universo pictórico do mestre do suspense [e também posso citar a versão de pastel de nata que António-Pedro Vasconcelos reproduziu no seu A Bela e o Paparazzo (2010)]. Mas regressemos a Rebecca, a função do plano acima não se fica apenas pela descrição de personagem, há uma leitura mais freudiana: a patroa queria engatar Olivier, este prefere as moças novas e nem sequer responde aos recados da enchouriçada senhora, ao aperceber-se da alegria da sua dama de companhia mais afortunada que ele a lady apaga o seu braseiro no creme de beleza ou, inversamente, por perceber as limitadas capacidades dos cosméticos na arte da sedução manda a pomada para as urtigas com uma fálica mortalha num fuck it all cancerígeno. Mal sabia ela do que se livrava…
Ricardo Vieira Lisboa

A qualidade de imagem é péssima mas o filme tinha a qualidade de escrita de um jovem Shakespeare. Esta última comparação veio da boca de um dos seus actores, o lendário Philip Baker Hall, sobre o argumento da Cigarettes & Coffee (1993) de Paul Thomas Anderson, então com 23 aninhos. Tal como tinha acontecido com The Dirk Diggler Story (1988) e Boogie Nights (1997), Cigarettes é uma espécie de preparação para a sua longa metragem de estreia, Hard Eight (1996). Pelos actores, pelo tema recorrente da relação de confissão entre amigos que desencadeará em relações entre pai e filho, pela questão do jogo e, finalmente, com o entrecruzar altmaniano de personagens, que por sua vez (e apenas a este nível do mosaico) faz de Hard Eight o esboço de Magnolia (1999). Nessa relação do esboço entre Cigarettes e Hard Eight é interessante ligá-los pela virtude do cigarro. Antes do cigarro ser sinónimo de “peste”, em muitos cineastas ele era o falo que os homens partilhavam simbolizando a amizade masculina e a tradição. Sobre essa tradição, a curta que escolhi começa: “And then we will talk about making sense of the matter. Once the coffee is poured. And the tip of the cigarette is lit and placed in the ashtray. Then we will address the matter”. No plano que se pode ver, há essa ligação entre duas das personagens, prestes a começar uma conversa. Um calmo, o confessor, e outro agitado, o “penitente,”, um plano de objectos que liga as mãos da tradição que acendem o cigarro e o colocam no cinzeiro e as mãos ansiosas do interlocutor. Para este, o cigarro e a tradição são uma desculpa de adiamento do que é urgente. Mais tarde este pedirá à personagem de Philip Baker Hall um cigarro, mas um cigarro como urgência, como símbolo de inquietação interior. A mesma coisa se passa em Hard Eight, em que Baker Hall começa por oferecer um cigarro como sinal de amizade a John (John C. Reilly) e mais tarde, entre outras cenas, há aquela famosa de Philip Seymour Hoffman a dar um tempo a Baker Hall antes de acender o seu cigarro, para poder apostar. Um cigarro já mais urgente mas ainda dentro do tempo da tradição, ainda que seja um compasso de espera de uma violência como ritual. Paul Thomas Anderson percebe muito bem isto. Só temos a tradição e o tempo das histórias e do drama como algo verdadeiramente salvífico. Por isso, bebamos um café e fumemos mais um cigarro “because that along gonna make everything right”.
Carlos Natálio

Para alguém que contabiliza religiosamente, obsessivamente, os dias que faltam até morrer (no caso, até se matar), a frase “FUMAR MATA” não passa de uma boutade. Fumar matará, sim, mas, no caso de George, é o passado, o que foi e inelutavelmente não volta mais, que o mata todos os dias um pouco mais – até à (auto-)destruição final. Aliás, é a morte do antigo companheiro que o “mata” todos os dias um pouco mais – sim, redundâncias à parte, a morte também… mata. Num dos mais discutidos filmes de 2009 entre os que gostaram e os que odiaram (quanto a nós, encontramo-nos no primeiro grupo), esta cena foi também uma das mais badaladas, concentrando em si o traço estilizado de todo o filme, sem nunca cair, porém, num vazio de ideias ou num decorativismo bacoco. Se o cigarro já foi bengala de muito flirt célebre do cinema (e da vida…) – essa talvez a principal razão, aliás, para toda a iconografia em volta do acto de fumar (muito mais que a dos cowboys da Marlboro!) –, a particularidade, aqui, é a de que se trata de um flirt homossexual, o que, na verdade, se mostra pouco menos que irrelevante, na medida em que, hetero ou gay, o que se retém desta cena é um encontro profundamente sensível (mais do que sensual) entre duas pessoas, filmado por Tom Ford com uma enorme justeza. Sobre o tom rosáceo do céu, provocado pelo fumo da cidade, Carlos dirá que “As veces las cosas más horrorosas tien su punto de encanto”. Não o sabe, mas essa frase não podia ser mais apropriada para o seu interlocutor: mesmo na mais profunda depressão, mesmo neste “serious day” (como George lhe chama), dá-se, inadvertidamente, um encontro como aquele. Depois do cigarro do flirt, fumam um segundo, cigarro pós-tensão, cigarro pós-coito, enquanto conversam sobre meia dúzia de coisas que, na sua simplicidade, condensam as aventuras e desventuras da vida. O que aqui brilhantemente se escreveu a propósito de Tournée (Em Digressão, 2010) vale, na plenitude, para o nosso plano: “Relação fugaz, absoluta, dois ou três minutos a valerem por uma vida inteira lado a lado. Não dizem um ao outro nada de jeito… (…) Passou-se tudo o que interessa, inclusive um grande-plano que dura e dura e dura, dela, alguém que não mais irá aparecer na história, para aparecer com certeza muitas vezes na cabeça e sonhos dele. O sublime à primeira vista invisível porque presente no singelo, no dia-a-dia, entre a padaria e o jardim de família, a revelar-se nas frequências muito baixas ou nos tempos mortos”.
Francisco Noronha