A extemporaneidade – isto é, a construção de uma ausência de sincronia entre uma figura e o seu meio – é um dos mais velhos recursos do discurso cómico (seja ele verbal ou visual, literário ou cinematográfico). Fora de tempo chegam sempre os distraídos profissionais (o Pamplinas de Buster Keaton ou o Senhor Hulot de Tati), que compreendem tarde demais o sentido das situações nas quais se encontram mergulhados.
«Imaginemos, então, um espírito que esteja sempre focado naquilo que acabou de fazer, e nunca naquilo que faz, como uma melodia que se atrasa em relação ao seu acompanhamento. Imaginemos uma certa inelasticidade nativa dos sentidos e da inteligência, que faça com que continuemos a ver o que já não é, a ouvir o que já não ressoa, a dizer o que já não convém, a adaptar-nos enfim a uma situação passada e imaginária, quando devíamos adequar-nos à realidade presente. O cómico instalar-se-á, desta vez, na própria pessoa: é a pessoa que lhe fornecerá tudo, matéria e forma, causa e ocasião. Será de espantar que o distraído (pois, essa é a personagem que acabámos de descrever) tenha tentado geralmente a verve dos autores cómicos?» (Henri Bergson, Le Rire, PUF, pp. 8-9).
Quando o desfasamento temporal de que se fala é inconscientemente vivido, estamos sem dúvida na presença de um distraído. Mas quando, pelo contrário, ele é conscientemente sentido, estamos quase sempre na presença de um entediado que – a ser cómico – será quando muito um cómico pateticamente imobilizado pela consciência da sua própria desadequação.
Ecce Bombo é sobre um grupo de misfits que, como nós, sabem bem que a (auto-)ironia é a pátria de exílio dos desiludidos
Assim é o Michele Apicella que comparece nas primeiras longas de Nanni Moretti [aquelas que vão de Io Sono un Autarchico (1976) a Palombella Rossa (1989)], e, particularmente, em Ecce Bombo, de 1978 (o Moretti de que mais gosto). Espécie de versão pós-Maio de 68 de I Vitelloni (Os Inúteis, 1953) de Fellini, Ecce Bombo é um filme de amigos produzido por tuta e meia, que nos convida a seguir o trajecto estacionário da personagem à qual o próprio Moretti dá corpo (e que funciona como o seu evidente alter ego). Aqui, Michele é um estudante universitário sem horizonte, que passa os dias, ora a testar os limites da paciência dos seus pais (em cuja casa ainda vive), ora a arrastar-se pelos cafés com um grupo de amigos que – a fazer fé no que um deles nos diz a páginas tantas – chegou demasiado tarde à existência.
«Eu devia ter nascido há cem anos, em 1848, nas barricadas de Leipzig. Aos vinte e dois anos já teria estado com a Comuna de Paris. Agora, funcionário público, com todos os colegas que passam todas as férias a ir a todas as festas do Unitá, com o ballet da Moldávia e as mamalhudas importadas da Hungria… Gino Pauli, Pinóquio, Mike Bongiorno, Marilyn Monroe, Altafini, Gianni Morandi, Gianni Rivera… Todos tiveram uma função nos anos 60. Mas, o que estamos nós a fazer? Mas, o que se passa? Quando veremos o sol?».
Digamo-lo desde já: o sol ao qual neste discurso se alude só será visto quando for tarde demais – pois, na noite em que, para exorcizar o tédio, os amigos de Michele decidem ir ver o nascer do sol à praia de Ostia, o sol nascente encontrá-los-á a dormir sobre a areia (naquela que será, talvez, a mais melancólica de todas as sequências de Ecce Bombo). Eis um acto falhado que, sob diferentes formas (reuniões de autoconsciência nas quais nada se discute…), se repetirá incessantemente ao longo de uma narrativa que, mais do que qualquer outra coisa, compõe o retrato estagnado de uma geração (a dos anos 50) que se descobre incapaz de criar a sua própria história.
Entenda-se: o grupo de amigos de Ecce Bombo habita um universo pós-utópico (o movimento hippie e o Maio de 68 desapareceram sem deixar rasto, a cortina de ferro está em avançado estado de oxidação…), onde nenhum projecto de acção política colectiva parecer ser já possível. Para se evadir deste deserto, Michele refugiar-se-á no isolamento (veja-se como o filme se vai gradualmente cerrando no espaço e esvaziando de personagens) e, sobretudo, na ironia. É ela que lhe permite olhar de longe para um mundo saturado de instituições sem função, de happenings nos quais já nada «acontece» (é genial a sequência do festival da felicidade) e de figuras sem rumo que, reflectindo como espelhos a abulia umas das outras, se vão tornando reciprocamente insuportáveis. Daí que muitos dos diálogos de Ecce Bombo se produzam à distância, em conversas telefónicas (recorrentes nos primeiros trabalhos de Moretti) que originam campos/contra-campos onde as personagens estão, ao mesmo tempo, juntas e sozinhas.
De facto, a paralisia não é aqui apenas um tema: ela contamina também a forma do filme, com Moretti a lançar mão de uma realização construída à base de planos fixos (faz sentido) e de uma montagem altamente elíptica, descontínua, onde o tempo de corte abrupto dos planos interrompe amiúde os movimentos e os discursos das personagens, suspendendo-os algures a meio do seu desenvolvimento. Trata-se de uma política de montagem que, na verdade, procede pela justaposição de blocos de duração estanques e autónomos, que não comunicam directamente, nem com os anteriores, nem com os seguintes, gerando assim uma espécie de limbo, ou melhor: um tempo sem história, onde as acções iniciadas nunca têm sequência. (O mesmo efeito se obtém pela criação, dentro dos planos, de uma permanente contradição entre as palavras e os gestos: como na cena em que Michele se despede por repetidas vezes dos amigos, sem jamais chegar a sair do mesmo lugar). Talvez seja por isso que, primando embora a maioria dos episódios do filme pelo seu tom humorístico, nunca nos conseguimos rir de maneira genuína das figuras que os habitam: um grupo de misfits que, como nós, sabem bem que a (auto-)ironia é a pátria de exílio dos desiludidos.
PS: Relendo à luz das velas os primeiros parágrafos deste texto (escritos num tom ex cathedra que agora me está a causar urticária), percebo que não percebo lá muito bem o que raio terei querido dizer. Que se dane: fica como está. Duvido, em todo o caso, que a experiência do leitor venha a ser mais traumática do que aquela que teve o Michele Apicella de Io Sono un Autarchico, ao confrontar-se com a prosa cristalina de Marx.