Num dos momentos cruciais de Sicario (Infiltrado, 2015), Alejandro (Benicio Del Toro) diz a Kate Macer (Emily Blunt): “Esta é uma terra de lobos”. “Esta terra” tanto poderá ser a zona fronteiriça entre o Texas e o México (mais especificamente o caminho que medeia El Paso a Juarez), como, se o espectador tiver num dia de maiores liberdades interpretativas, uma referência aos próprios Estados Unidos ou, ainda mais delirantemente, ao próprio Mundo. De qualquer das formas, é a frase chave do filme, o momento em que verbalmente se dá a ver a sua “visão do mundo”, formada por diversas paletas, que vai desde o negro escuro ao negro ainda mais escuro.
Não deixa de ser simbólico que essa boutade seja proferida entre as duas personagens centrais do filme. A de Benicio del Toro como encarnação do mero pragmatismo comercial que governa o mundo (aka: dinheiro no bolso, já) e a de Emily como uma representante de uma certa inocência (leia-se, ignorância) do povo sobre todas as manobras de poder que se desenrolam nas suas costas. A sua Kate permanece quase todo o filme na escuridão, sem rede, conciliando estupefação e uma dose de idealismo que já não tem lugar nos dias de hoje. Kate, não viste o Traffic (Ninguém Sai Ileso, 2000)? George Bailey seria hoje engolido pelas circunstâncias, e não haveria cá anjinhos para os salvar. O mais provável, aliás, era os anjinhos estarem a apodrecer numa qualquer caserna de Juarez.
Para as almas cínicas, Sicario dará alimento em barda. Um microcosmos de um mundo em que não há inocentes nem culpados, em que tudo se resume a quem possui poder e a quem não o possui, onde as aparências iludem as suas próprias aparências, e em que o darwinismo social é matéria primeira. “Absorva tudo o que puder”, afirma Matt Graver (Josh Brolin) a Kate, um belíssimo conselho para preparar a jovem para o futuro que se aproxima. Isto é tempo e espaço para uma pessoa revestir-se com carapaças e de andar de machado na mão. Nos dias de hoje, o velho Lionel Barrymore rebentaria com um sopro o James Stewart. E ainda enviaria o anjinho para Medellín, cortado em postas.
Denis Villeneuve, um realizador com menos de cinquenta anos, que neste momento trabalha nos EUA, e que persegue a arte da composição. Incrível.
E agora vamos ao que interessa, nomeada e mormente, a uma longa sequência que só por si vale a compra do bilhete: a entrada e a saída de Juarez das forças especiais norte-americanas e mexicanas. São minutos de uma tensão brilhantemente trabalhada por Villeneuve, que tem a inteligência necessária para retardar ao máximo a entrada na cidade (the beast), usando um arsenal técnico que vai desde demorados planos aéreos sobre a região (algo recorrente em Sicario), uma banda sonora cavernosa e militar, e, mais importante que tudo, o recurso aos diálogos estritamente necessários, sem floreados de ocasião. É a grande sequência Michael Mann (do verdadeiro, não do impostor que teve a ousadia de assinar “Michael Mann” naquela coisa com o Hemsworth) do ano, e que possivelmente tornar-se-á no futuro o cartão de visita de Sicario. Bem-vindos ao Inferno.
Pena é que o filme não se volte a recompor desses gloriosos minutos (o segundo acto é uma desilusão, um pastorear constante de banalidades) embora nos últimos vinte ou trinta Villeneuve volte a marcar pontos, com a predominância de uma mise en scène em que o mínimo olhar vale mais do que cinco mil palavras. Momentos em que que quanto menos as personagens (e a câmara) se mexerem mais acção haverá. Era já assim em filmes superiores a Sicario, como Incendies (A Mulher que Canta, 2010), Prisoners (Raptadas, 2013) ou Enemy (O Homem Duplicado, 2013) , onde era visível a habilidade de Villeneuve em enquadrar personagens e espaço com o mínimo de ruído possível. Denis Villeneuve, um realizador com menos de cinquenta anos, que neste momento trabalha nos EUA, e que persegue a arte da composição. Incrível.
Sicario, não sendo nenhum Traffic e não estando no mesmo patamar dos filmes anteriores do canadiano, não deixa de ser um bom filme, que poderá ser visto em complemento com o óptimo documentário El Sicario, Room 164 (2010), de Gianfranco Rosi. Uma forma divertida e salutar de nos mantermos informados sobre o que se passa em toda essa região , da California ao Arizona, do Texas a Chihuahua, passando, claro está, por Juarez, uma cidade para marcar na agenda.