A ficção científica pode dividir-se muito genericamente em dois ramos: um que se deixa guiar livremente pela imaginação e outro que tenta aderir o mais fielmente possível aos conhecimentos científicos. The Martian (Perdido em Marte, 2015) pertence claramente a este último, enquanto Interstellar (2014) pende mais para o primeiro. A comparação entre o filme de Ridley Scott e o de Christopher Nolan é fácil – são os dois exemplos mais recentes de cinema sobre o Espaço e partilham alguns dos actores principais -, mas essa primeira diferença acaba por se revelar essencial.
À partida, a ficção científica especulativa é mais interessante do que a que procura fincar os pés no chão (isto é discutível, claro). E, passe o trocadilho parvo, The Martian é bastante Marte-a-Marte, ao contrário de Interstellar, que buscava uma qualquer espiritualidade nas estrelas e nas viagens espaciais e tendia para a grandiloquência. Apesar de ter sido anunciado como uma espécie de Robinson Crosué num planeta vazio [ou um Cast Away (O Náufrago, 2000) no Espaço], e contrariando o meu anterior trocadilho parvo, boa (e importante) parte da acção do filme decorre na Terra, nos bastidores da NASA, entre discussões em escritórios, pessoas a interromper o normal funcionamento de refeitórios, excêntricos a ter epifanias a beber café e geeks a brincar com tecnologia vária. Salvo as sequências inicial e final, a tensão e o suspense, muito bem construídos, ficam em segundo plano face à burocracia de uma instituição gigantesca e à monotonia do dia-a-dia de um astronauta solitário em Marte, que consiste em grande medida no cultivo da batata.
Essa banalidade com que tudo é tratado em The Martian, arrisco denominá-la secura, se não mesmo rigor, é definitivamente o melhor do filme.
É tudo espectacularmente pouco espectacular, sobretudo a interpretação de Matt Damon, cuja capacidade para ser insípido é notável (e absolutamente extraordinária num actor). Isto não será propriamente um elogio a Damon, até porque tanta mediana começa a irritar a dada altura (nas piadas “do papá”, por exemplo), mas era o que a personagem simpática e anódina pedia. Essa banalidade com que tudo é tratado em The Martian, arrisco denominá-la secura, se não mesmo rigor, é definitivamente o melhor do filme. Presumo que se deva ao argumentista Drew Goddard ou, ainda mais atrás, a Andrew Weir, autor do livro no qual este se baseia, já que Ridley Scott se foi notabilizando ao longo da carreira pela espetacularidade visual e outros efeitos de estilo, com resultados o mais da vezes balofos. Estou a ser injusto e a esquecer-me de Alien (O 8.º Passageiro, 1979) [não estava, dava-me jeito que a referência aparecesse nesta altura], muito mais seco e ossudo do que este. No entanto, a responsabilizar alguém por aqueles momentos de excitação comunal, com praças cheias de pessoas a seguir os acontecimentos finais em directo (curiosamente, os mais inverosímeis nesta ficção científica), apostaria no realizador (sou capaz de estar enganado e é bastante provável que já estivessem no livro; não vou investigar).
The Martian tem outras coisas boas. Em primeiro lugar, a surpreendente escolha de “Starman” em vez de “Life on Mars?” para canção de David Bowie num filme sobre Marte. Em segundo, os actores secundários: Jeff Daniels, apesar de dar ideia de estar sempre a apresentar o telejornal; Chiwetel Ejiofor, um actor tão bom quanto o seu nome é difícil de memorizar ou escrever ou dizer; Donald Glover a fazer de Abed: Kristen Wiig, embora ninguém se tenha lembrado de lhe dar um papel; e Sean Bean, este mais por causa da piada do Lord of the Rings. Quanto à presença chinesa obrigatória em qualquer grande produção norte-americana que pretenda penetrar no mercado chinês, esta ameaça tornar-se cada vez mais descabida (e divertida).
De qualquer forma, a campanha de marketing de The Martian – a par de The Right Stuff (Os Eleitos, 1983), o melhor filme de recrutamento da NASA – tem corrido muito bem. Esta coisa da descoberta de água em Marte veio mesmo a calhar. (Não estou a tentar insinuar coisa alguma. Ou estarei?)