Alain Bergala é provavelmente o nome maior do estudo e da prática da relação do cinema com a infância, nomeadamente através da formação de crianças, jovens e adolescentes por via da imagens em movimento. Autor do livro L’hypothèse cinéma (2002), o pensador francês foi também editor da revista Cahiers du cinéma, conselheiro para o cinema do ministro da cultura Jack Lang e é estudioso de vários autores como Jean-Luc Godard, Victor Erice e Abbas Kiarostami. É professor de cinema na Fémis e em Paris III. A propósito da sua presença em Lisboa para participar no ciclo “Nos caminhos da Infância”, co-organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e a associação Os Filhos de Lumière, decidi ir “dar-lhe uma palavrinha”.
Um dos seus livros mais importantes sobre a questão da educação através do cinema, L’hypothèse cinéma, foi escrito em 2002. Pensa que existe uma grande transformação dos melhores métodos a seguir nesse domínio com a crescente importância da internet e com a própria alteração do cinema nestes treze anos que se passaram entretanto?
Claramente. É evidente que hoje em dia a relação que os jovens têm com os filmes não se relaciona com o seu visionamento todo por inteiro, numa sala escura. Existe uma pulverização completa das práticas de ver os filmes. E isso é muito impressionante, talvez mesmo a maior mutação que o cinema já assistiu desde o seu início. Afinal de contas, o que é um filme? Os professores não conseguiram prever tal transformação e até que ponto a sua prática do cinema já não tinha nada a ver com a dos jovens. É uma questão muito difícil de pensar, porque aqueles que se dedicam a fazê-lo são de uma geração que têm uma determinada relação com as imagens, que conheceram a sala de cinema. E não é apenas a sala, é ter a paciência de ver um filme todo, sem paragens, sem circulações. A ideia de ver hoje um filme de hora e meia, duas horas, de seguida é impensável para os jovens. É por isso que o discurso da educação é importante. Pelo menos eles poderão, de tempos em tempos, saber o que é a experiência de ir a uma sala e ver um filme completo. Mas isto acontecerá cada vez menos, creio.
Quando lemos o livro hoje em 2015 não podemos deixar passar algumas ideias que, vistas à luz do presente, nos parecem visionárias na relação com o momento actual do cinema. Por exemplo, a questão da importância do fragmento, de colocar em relação um ou vários pedaços de filmes com outras totalidades. Crê que parte do que julgava na altura ser um desafio para o formador pela via do cinema é hoje um desafio para toda a humanidade?
À época quando defendi isso em França e fiz um DVD com uma junção de fragmentos de filmes muita gente esteve contra mim. “Ele é doido. Quer matar o cinema!”, etc. Mas não era verdade. Na realidade era o contrário. Tentava compreender as práticas reais de ver os filmes. Actualmente, tenho reflectido muito nesta questão. Por exemplo, o que é que podemos fazer que seja uma pedagogia a partir do youtube? Penso que podemos fazer coisas interessantes com este estado das coisas. Estou agora a escrever um pequeno ensaio sobre esta questão precisamente. Partindo da existência de milhões de extractos de filmes, o que podemos fazer? A história da segmentação por extractos não é necessariamente pedagógica. O zapping, por exemplo. É preciso averiguar o que podemos fazer com este zapping para o transformar em algo mais esclarecedor. Godard desde os anos 60 que já sentia o problema. Ele tinha aliás uma frase reveladora: “Um dia todos os filmes terminarão em pedaços.” E é verdade. Hoje um jovem vê um pedaço do Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965) e isso basta-lhe. Creio mesmo que Godard foi o primeiro a pensar nesta questão. A ideia de que um filme afinal se poderia cortar em pedaços e levá-lo para outros lados. É preciso pensar hoje a partir desta realidade. A ideia de que o cinema vai continuar é evidente. E não passa pela relação com a proliferação das imagens ou dos ecrãs. É como a missa ou os jovens crentes. Existe uma necessidade de estar no negro, de ser outras pessoas. Uma certa luz sobre as formas evidencia a nossa necessidade de estar no contrário. A comparação com a igreja é esclarecedora, pois os jovens que vivem na rua, por exemplo, vão à igreja procurar outra coisa. O cinema já não é a questão dos filmes, é a experiência social de ir a um espaço de separação. Mas estas ideias nem se passam muito em Paris. Lá todos vão ao cinema, as salas estão cheias… Mas não é o caso em muitos outros países…
Sim. Neste momento em Lisboa existem dois ou três cinemas de rua, se tanto… O Alain Bergala defende uma pedagogia do cinema centrada na criação, que não separa necessariamente o acto de leitura dos filmes do acto de filmar. Em que medida esta concepção antecipa ou não a omnipresença do audiovisual, acessível a todos para ver mas sobretudo para mexer?
Actualmente muitos aparelhos permitem filmar. Toda a gente filma, com os telefones, os iPads, etc. e isso tornou-se uma prática banal. A grande ilusão hoje é dizer-se: “eu tenho um telemóvel, logo eu filmo, logo eu posso fazer filmes.” Isso é um enorme erro. Podemos fazer filmes e enviá-los aos amigos, mas isso é uma outra prática. Não corresponde, na maioria das vezes, a um projecto artístico. Um projecto de cinema implica antes do mais ter uma ideia do que se quer fazer e depois comparar com o que se pode de facto fazer. E sobretudo o cinema apenas existe se as pessoas o vêem. Na internet, por exemplo, alguém pode colocar um vídeo de vinte minutos feito por si. Mas qual é a garantia, mesmo que esse vídeo tenha 400 likes, que as pessoas o tenham de facto visto? Este mecanismo social não ajuda a criar uma identidade. Assiste-se antes à formação de uma grande “poeira”. Esta realidade dos jovens filmarem e colocarem os seus vídeos na net já existe há algum tempo. Agora, o que me surpreende bastante é porque é que estas novas praticas com novos dispositivos não produziram até hoje novos cineastas? Normalmente, quando há novos aparelhos isso produz uma outra estética, novos cineastas. Uma nova liberdade exige novos meios próprios de escrita. Mas até agora, no meio de milhões de jovens, isso ainda não aconteceu. Não consigo compreender bem o porquê disto. Actualmente, não compreendo porque não existe em Cannes um filme de um realizador que aprendeu a fazer filmes através da internet. Ainda não há, estou seguro de que haverá. Até agora as práticas estão separadas: os jovens que filmam as coisas e as colocam na net não se tocam com práticas das construções de projectos de cinema. É uma outra coisa, uma outra prática social.
Talvez seja um pouco a crise das figuras de autoridade. Autoridade entre aspas, no sentido de uma ajuda a um aclaramento, a uma aprendizagem de um caminho qualquer. Assisti recentemente a uma conferência de Alain Badiou onde este colocava em relação os projectos do cinema e da filosofia, unindo-as por via da dialéctica e da contradição. Ele dizia que o cinema é a forma dialéctica que coloca em contradição as imagens, e no interior de um filme, a tensão entre a arte e a não arte. O seu exemplo do filme que tem 400 likes mas que de facto ninguém viu faz-me lembrar um pouco nesta relação. Na concepção de um modelo de sociabilização sem dialéctica real, ou talvez apenas mecânica e quantitativa (o número de likes). Um modelo que exige uma resposta imediata ou que, no limite, suprime a necessidade de uma resposta, com a exigência da exposição total e unidirecional a cumprir os requisitos de cada utilizador.
Sim e os modelos de união que existe são limitados. Os filmes que têm mais likes são as paródias, as imitações. É divertido mas é ao mesmo tempo assustador. Dei recentemente um curso sobre os The Sopranos (Os Sopranos, 1999-2007), fui investigar material na internet e dei de caras com milhares de vídeos-paródia ao genérico da série, em que as pessoas se filmavam no trabalho, em casa, a fazer essas imitações. Tem graça tudo isto. mas, afinal de contas, o seu valor artístico é nulo. A questão você colocou-a bem: como é que alguém que faz estes vídeos se considera no momento em que os faz? O que é que pensa de si mesmo? Pensa que tem graça? A quem espera ela divertir? São projectos que são puramente da ordem da sociabilidade e muito pouco da ordem da criação artística. Claro, existem muito bons filmes na internet, mas não são esses que recebem os likes.
Actualmente tornou-se um lugar comum comparar estes vídeos do YouTube aos primitivos, nomeadamente aos primeiros espantos provocados pelos Lumière, Edison. Como se assistíssemos a um novo nascimento do cinema. Concorda?
Não. Coloquemos a questão: o que é esta prática? Para mim, ela ainda não tem nada a ver com a criação cinematográfica. Não existe ainda um raccord entre estas duas realidades. Dos cineastas que emergem neste momento, não há um que possa dizer, “eu vim da internet.” É bizarro. Há realizadores a vir da publicidade, da banda desenhada, do teatro, etc. Mais uma vez, parece-me que ainda não existem projectos. As pessoas simplesmente fazem coisas, divertem-se, mas não existe superego, não existe alguma intenção de se comparar a qualquer coisa.
A seguir aos discursos sobre a morte do cinema assistimos hoje a uma expansão da noção do mesmo. Um conceito que designa qualquer coisa que apanha na sua lógica muitas outras pequenas formas e dispositivos que não são necessariamente hoje já filmes, mas possuem algo do que chamámos cinema (e só cinema), em tempos. O que pensa desta noção, digamos, mais “larga” de cinema que incluiria por exemplo o audiovisual?
Para mim, quando falamos de cinema é preciso colocar-nos a questão de saber se existe uma criação. Se há uma criação há também um criador, claro. Será que existe um mínimo de consciência da forma? Intenção de fazer alguma coisa que me representa e não fazer uma coisa qualquer. É a mesma coisa em outros domínios. Por exemplo, no desporto existe a diferença entre os atletas que se treinam diariamente e os que o praticam ao fim-de-semana. Eu creio que para haver criação é necessário haver um projecto. Quanto à expressão audiovisual ela é minha inimiga já há muito tempo. Em França, para o Ministério da Educação o cinema faz parte de um grande conjunto chamado o audiovisual e eu sempre me bati contra isso. Para mim o cinema é à parte desse conjunto, com a sua especificidade. Por exemplo, na pintura existem muitos pintores amadores que têm prazer a fazer o que fazem, o prazer da sua prática mas frequentemente não possuem nenhum objectivo além desse prazer. No cinema é parecido. Antes da explosão das práticas amadoras as pessoas que tinham uma câmara de 16 mm ou 35mm eram normalmente pessoas instruídas, com acesso à cultura e a um tipo de pensamento. Hoje todo o mundo faz, filma. E não é mesmo cinema amador, é outra coisa, outro gesto, bastante inédito segundo creio.
Recentemente o facebook permitiu a opção de integrar pequenos vídeos animados com planos, cenas, olhares, gestos, gags do cinema. E estes começaram a circular, ou como citações, ou como formas mais complexas e actualizadas de emoticons. Por exemplo, para exprimir alegria posso usar um gag do Chaplin em vez de um smile.
Sim, começa a funcionar como uma espécie de código.
Sabemos a importância que a crítica de cinema teve no seu percurso. Como é que a vê hoje, sobretudo a crítica online feita por elementos que não pertencem a órgãos de comunicação institucionais? Isto por relação com a noção da crise das figuras de autoridade que falávamos há pouco…
Em França as pessoas têm hoje a impressão de que a função da crítica de cinema é quase nula. Na internet toda agente tem o direito de publicar as suas impressões sobre os filmes que viu (ou mesmo se os não viu). Embora muita gente pense o contrário, nomeadamente pela questão política, eu creio que isto não é interessante. Para mim, não faz sentido poder falar de uma coisa sobre a qual não se tem o mínimo de ideia do que é… Devo dizer que acho até um pouco assustador, uma forma de populismo. Acho que isto teria feito gritar Foucault. Quando procuramos informação na internet sobre um filme, encontramos textos opinativos de gente que viu esse filme. Lemos esses textos e mesmo se são bons nós não conhecemos muitas vez o sistema no qual eles se inscrevem. Só existe a pura opinião, mas o que fazer com ela? Por outro lado, já existem sites que se parecem cada vez mais a revistas. Aí é diferente, pois até por relação à questão da autoridade, existe muitas vezes uma redacção e podemos ter acesso aos valores que regem essa revista digital.
A importância da questão do contexto…
Sim, saber o que amam ou o que detestam. Uma página escrita sobre um filme, em si, não tem grande valor. O sentido começa a emergir se sabemos o contexto e sistema de valores que enforma, rodeia esse texto. Eu penso que isto se reconstitui a pouco e pouco na internet. É importante passar além dos meros pensamentos individualistas e não estruturados.
Estes contextos como espaços da formação de comunidades de gosto online?
Quando procuro alguma coisa sobre um filme faço como toda a gente e vou ao Google. Vou vendo mais ou menos o que se vai escrevendo em França. E mesmo quando um texto é bom normalmente ele não é muito bom. A crítica de cinema serve para pensar o cinema e formar o gosto, mas na internet dá-se a morte da própria noção de gosto.
Crê que não existem hoje condições, nem tempo, para a formação de um gosto? Para uma cultura que seja eminentemente qualitativa e que consiga resistir à pressão dos “1001 filmes para ver antes de morrer”?
A acontecer isso só pode dar-se no domínio de uma estrutura estruturada. Em França tivemos a sorte de ter um dispositivo chamado “Escola e Cinema” que teve um papel muito importante. Existe um número incrível de crianças que nele se inscrevem para aprenderem cinema. Durante a escolaridade eles vão ver 4 filmes que estão desconectados com a ideia de cinema que conhecem. Ao fim de alguns anos, eles compreendem que existe um cinema diferente daquele que eles eventualmente vão às salas ver. Aprendem que existe um outro sistema diferente do das coisas que circulam comercialmente à sua volta. E isto tem um papel fundamental. No passado trabalhei numa escola de subúrbio com crianças bastante problemáticas. Mais tarde fiquei estupefacto quando soube que daquele colégio emergiram dois cineastas. Estou quase seguro que se por acaso eles não tivessem estado naquele colégio e assistido a todos os eventos ligados ao cinema que organizei naquela altura, nem sequer lhes teria passado pela cabeça que fazer filmes era uma hipótese. Dois cineastas entre todo este grupo é imenso. Outra exemplo, na Fémis. É muito frequentemente os jovens nos explicarem que decidiram vir aprender cinema por causa do “Escola e Cinema” e que viram Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987) do Kiarostami. E na época aquele filme era um choque com aquilo que conheciam. Aparentemente, este pequeno gesto de lhes mostrar aquele filme foi o suficiente para, 18 anos mais tarde, estarem ali a querer estudar na Fémis. Isto para dizer que a formação larga do gosto é impossível, uma vez que este se transmite de indivíduo em indivíduo, ou de indivíduo a uma sala de aula ou outra estrutura organizada. O gosto surge quando alguém diz, um pai ou um professor, “vê lá isto”. Quando tive no Ministério da Educação tentei fazer uma colecção de DVDs para serem vistos pelas crianças. A minha ideia era que se víssemos todos aqueles filmes, mesmo se estivéssemos perante um conjunto vasto de ideias de cinema diferentes, elas pudessem constituir um conjunto estruturado por um gosto.
A aprendizagem necessita da criação de um espaço de separação, de ruptura, como acontece com os filmes que escolhe para serem mostrados aos alunos. E os modelos do socialização que conhecemos, que implicam um “taking turns”, num diálogo por exemplo, implicam também essa resistência, um tempo sem falar ou fazer, o tempo da escuta.
Actualmente quem coloca na internet um vídeo de 4 minutos sabe que ninguém, ou quase ninguém, o vai ver todo por inteiro. Às vezes até tem de chamar a atenção para o exacto minuto onde qualquer coisa de específico acontece. Essa é a catástrofe perceptiva da internet actual: a impaciência absoluta, modo no qual nada se pode inscrever de facto de forma duradoura. Não existem condições para ficar com as coisas, não existe um mínimo de resistência que seja aceitável pelos utilizadores, em contraposição com o imediato.
No que concerne a uma possível massificação da educação na era digital, qual a sua opinião sobre os MOOC? [Em português, os Cursos Online Abertos e Massivos]
Não me agrada essa realidade. Porque quando ensinamos alguma coisa precisamos de ter uma presença. Não creio que estes cursos permitam a formação de um saber, assim destacado de um corpo, posto a circular de forma anónima e indiferenciada. Para mim representa aliás o perigoso absoluto. Actualmente na universidade há muitos jovens que fazem cursos através de aulas gravadas, filmadas. Mas ainda há uma relação qualquer, mesmo que mediada pela imagem. Penso que a transmissão passa sempre pela relação com alguém. O que eu ensino na universidade nunca é igual ao que ensina o meu colega do lado, ainda que seja o mesmo programa. E com os professores não há apenas uma relação de saber ou conhecimento, há sempre algo mais. Por exemplo, um colega meu pode ter uma formação universitária mais adequada, estar melhor preparado do ponto de vista do conteúdo, mas eu poderia, por hipótese, despertar mais a curiosidade dos alunos em escutar-me. O saber como uma espécie de entidade impessoal não é interessante. Por isso é que ele tem de estar sempre envolvido em métodos próprios e cativantes de pedagogia.
No seu livro recusa, creio, a teoria que chama “De Pokemon a Dreyer” e alerta para as “consequências devastadoras da mediocridade” e dos maus filmes na formação das crianças. Estava curioso para saber se o Alain Bergala é um entusiasta ou um céptico deste fenómeno actual do “vulgar auteurism”.
Sim, isso pelo contrário interessa-me. Esta teoria não significa uma defesa exclusiva dos super autores. Os autores menores, por exemplo, são muito apaixonantes. O problema são os filmes de pura ideologia, os puros filmes espelho e de reconhecimento que são um mero efeito da economia do cinema. Para mim, a vulgaridade está aqui. Frequentemente, quando se tem pouco dinheiro, uma das soluções passa por fazer esses filmes espelho, com medo que se assim não for, ninguém os vai ver. Em França são algumas comédias à francesa, sempre com os mesmos actores, os mesmos assuntos pouco interessantes… Mas, atenção, isto não é um julgamento das pessoas como se, de repente, não pudessem gostar desses filmes. Falo apenas do ponto de vista da formação. Nessa teoria do Pokemon, o que quis dizer foi que existe uma ideia recorrente que não funciona. Cada vez que se começa a falar de pedagogia há sempre alguém que diz que é preciso começar pelo que as crianças gostam. Não é verdade. Pelo menos pela minha experiência, se começarmos por aí, aí ficamos. É sempre melhor surpreender, chocar, mostrar coisas difíceis. É isso que leva a uma inscrição. Mas hoje em França é um problema grande. É a necessidade de descomplexificação. E em nome de descomplexificar tudo, podem dizer-se todos os horrores e mais alguns.
É também a questão da diabolização da teoria por relação aos saberes técnicos.
Sim. Claramente. É a desvalorização absoluta do pensamento. Em França tenho bastante receio da extrema direita, por exemplo. Recentemente, a Frente Nacional, o partido da Marine Le Pen, foi convidado a comparecer na FIAC (Feira Internacional de Arte Contemporânea ) em Paris. O evento foi filmado e eles disseram que, sendo de extrema direita, a cultura também lhes diz respeito. Numa das entrevistas, um jornalista perguntou a um dos seus membros o que achava das obras que tinha visto e este respondeu que “algumas não eram más, mas se estivessem no poder muitas daquelas obras não seriam mostradas em instituições do Estado”. Isto é a reformulação da teoria da arte degenerada de Hitler. Assustador… Aqui penso que vocês são menos atacados do que nós lá… Não é uma questão da direita, é o fascismo mesmo.
Aqui tivemos quatro anos sem Ministério da Cultura… Mas mudemos de assunto… Assistimos hoje à explosão do fenómeno das séries de televisão. Muitos cineastas e críticos elogiam actualmente a vitalidade e liberdade criativa deste meio. Como é que assiste a tudo isto, enquanto espectador, mas também enquanto formador?
É verdade que, do ponto de vista artístico, existem séries de televisão que estão ao nível do bom cinema. Os Sopranos, por exemplo, são bom cinema. Não tenho dúvidas quanto a isso, nem sequer diferencio nestes casos. Mas quanto a mim existe um risco económico sobre este fenómeno. Cada vez que vou à Fnac, por exemplo, vejo que, pouco a pouco, a secção do cinema diminui por relação à das séries. O perigo é que as séries matem a economia do cinema. Depois existe uma outra dimensão. Quando vemos uma série entramos num túnel temporal. Muitas vezes, aliás, quando tenho vontade de ver uma série digo a mim próprio que não a posso comprar senão não faço mais nada, nem vejo filmes… Falo desta questão com os meus alunos da Fémis que vêem naturalmente muitas séries, mas que depois vêem cada vez menos filmes. A principal questão para mim não é a diferença entre a qualidade artística do cinema e das séries, mas sim o regime em que me coloco quando estou a ver cada um dos formatos. O que é essa prática de ver uma série de televisão? Ela encerra, quanto a mim, um mistério. Os jovens são cada vez mais impacientes e nem sequer conseguem ver uma hora e meia de filme seguida. Mas querem ver 28 horas de uma série. Isso significa que é um outro prazer. É o antídoto da segmentação. Entramos numa enorme máquina da qual só se sai no fim de cada temporada, máquina que não é cinema, que não é a internet. É um outro registo. Para este mistério há pistas que conhecemos: as personagens são mais desenvolvidas, há a questão das vivências afectivas e do tempo que passa, etc., mas creio que isto não chega para explicar o fenómeno. É preciso pensar em termos de regime espectatorial. O que é que em nós uma série de televisão satisfaz hoje que um filme já não consegue? Nota que os jovens não vêem a série em série, eles fazem o download e vêem tudo de uma vez, portanto há aqui uma espécie de performance, de desafio.
Assisti recentemente na Cinemateca a uma sessão do Doclisboa de algumas curtas metragens do realizador Želimir Žilnik. A sessão estava cheia de adolescentes e os filmes tinham algumas referências, ainda que não muito explícitas, a sexo, violência, etc. Crê que é necessário um equilíbrio com estes temas referidos por muitos como “difíceis”?
A mim isso nunca me preocupou muito. A violência e o sexo em si banalizaram-se e não têm muita importância. O importante é o contexto, é mostrar filmes que tenham uma noção de oposição com o qual as crianças se possam confrontar.
“Pensar em educação para pensar o cinema, ou vice-versa”. Esta frase descrevia a apresentação do ciclo do qual veio participar a Lisboa “Caminhos da Infância”. Qual a forma mais correcta de pensar a palavra educação nestes contextos artísticos?
É uma questão muito complicada. O que quer afinal dizer a palavra “educar”? Podemos estabelecer a diferença entre ensinar (com a transmissão de saberes) e iniciar. Para mim é mais interessante ser capaz de iniciar alguém. A educação pode ser da ordem do gosto, do saber, etc. É uma palavra com um sentido bastante vasto. A verdadeira eficácia de uma educação é que ela passe por uma iniciação. É a diferença entre alguém que fala e alguém que me fala. Alguém que me designa coisas. De outra forma, nunca é suficiente. A transmissão de saber passa por isso. Faz-me um pouco de medo pensar no momento onde tudo será desmaterializado, mesmo a própria transmissão e educação. Por exemplo, o que significará, em termos de mudança, a ideia de que o futuro não teremos livros em casa? Eles vão estar todos disponíveis online. Não é uma questão de fetiche meu. É porque o livro não é apenas um receptáculo de saber. Por hipótese, quando vou a casa de alguém eu sei o que há na sua cabeça quando olho para os livros que possui. Cada vez mais quando eu procuro alguma coisa vou à internet e sei que por vezes tenho isso num livro em casa, que por sua vez está ao lado de outro livro… Eu creio que isso forma um todo, que é afinal algo da minha educação. O que acontecerá quando toda a literatura estiver na internet? Alguém a irá ler? Que relação afectiva terá com ela? Em nossa casa, mesmo se ainda não tivermos lido um livro, sabemos onde ele está, eu posso vê-lo como um espelho entre mim e o que me constitui.
As bibliotecas de cada um são uma espécie de fundação da nossa arquitectura mental.
Absolutamente. Li recentemente uma entrevista com o escritor francês Phillipe Sollers em que este ia bastante longe. Ele dizia que se não existe um espelho entre nós e as coisas perdemos a nossa capacidade de amar. Ele parece ter uma opinião extrema, mas penso que tem razão. Se não existem coisas que me possam constituir, a mim e ao outro, o que será então o amor?
[Nota: Gostava de agradecer à associação Os Filhos de Lumière na pessoa da Teresa Garcia, sem a qual, pela sua colaboração e disponibilidade, esta entrevista teria sido impossível.]