No Verão de 1952 um menino ardina, desses que a tipologia da família de classe média clássica da América se habituou a representar, recebeu uns trocos como resultado do seu serviço à comunidade. De entre essas moedas uma revelou-se ser mais do que aparentava, um nickel oco contendo um secreto microfilme. O caso viria a dar origem à mais importante prisão e condenação de um espião Russo nos EUA durante a Guerra Fria, o caso de Rudolph ‘Coronel’ Abel. Em 1958, já depois de condenado a 30 anos de prisão o Departamento de Defesa produziu o pequeno filme The Hollow Coin (1958), essencialmente uma news reel contextualizada em que se resumia o caso, a sua dimensão pública a sua origem ideológica (se é que havia distância suficiente para tal) e se instigava a paranóia pelos reds. No ano seguinte Hollywood produzia, sobre a supervisão de J. Edgar Hoover, The FBI Story (Profissão Perigosa, 1959) de Mervyn LeRoy onde pela primeira vez se representava o episódio da moeda oca como método de transferência de segredos de estado num mundo assoberbado pelo medo constante do inimigo sem rosto. Bridge of Spies (A Ponte dos Espiões, 2015) de Steven Spielberg recupera o episódio de Rudolph Abel pela perspectiva do homem que aceitou defendê-lo em tribunal e que mais tarde acompanharia o processo de troca de prisioneiros com a URSS, que devolveria Abel ao seu patronato.
Talvez o aspecto mais interessante de Bridge of Spies seja mais bem analisado exactamente através da forma como Spielberg olha o episódio da moeda e o introduz na estratégia de equivalências que compõe o filme. Posto de outro modo, Spielberg quando realizou Lincoln (2012) parece ter encetado (ou pelo menos aí cristalizou-se uma forma de fazer) uma ideia de ilustração dos livros de história, um olhar quase académico na forma de pensar o passado histórico e de o pôr em filme, uma descrição procedimental, um olhar analítico e já distante do passado que o coloca em perspectiva a partir de dentro, que o mostra na boa medida que o intervalo temporal permite. Por outro lado, Lincoln também se deliciava a olhar os bastidores da política, na forma comezinha como um dos mais importantes momentos políticos da história dos States acabou por acontecer (cada voto teve uma história e a Spielberg todas interessam – ele procura o particular no histórico, aquilo que sendo singular ajuda a colorir a big picture). Há portanto duas forças que por vezes se opõem no cinema de Spielberg, de uma banda o lado minucioso na reconstituição do passado histórico (as páginas do livro de HGP como tableaux vivants), da outra a vontade de “ensinar” algo ao espectador pelo coração.
Spielberg quer pôr claro que a divisão do mundo nestas duas potências não foi mais que o resultado de um extremismo ideológico que esqueceu a “natureza humana”.
Brigde of Spies é um filme divido desta forma: a vontade de representar aquilo que há de singular na história (ai se o Lanzmann me ouve…) incapacitada pelo desejo de escrupuloso historicismo (e vice-versa). O lado humano é pois trazido, em grande parte, pela figura de Tom Hanks que a câmara de Spielberg parece não conseguir filmar sem um suspiro. Hanks é o homem comum que Capra nunca conheceu, ideal para alegorias xaroposas do glorioso american way e Spielberg parece incapaz de fugir a essa persona que o actor vem carregando (em parte porque foi ele quem a criou). O lado pedagógico encontra-se naquilo que referia à pouco como a estratégia das semelhanças, isto é, pondo de parte o histerismo anti-comunista dos anos da Guerra Fria, Spielberg olha os dois lados da cortina sempre à procura daquilo que é parecido: de um lado dizem-se mentiras do outro constroem-se ficções governamentais, de um lado há atiradores furtivos do outro snipers, de um lado há espiões do outro criminosos de guerra, e a lista poderia continuar – ao ponto de Spielberg terminar com um desses paralelismos (de particular mau gosto) que equipara o muro de Berlim a uma vedação nas traseiras dos prédios de Brooklyn. Neste vai e vem Spielberg quer pôr claro que a divisão do mundo nestas duas potências não foi mais que o resultado de um extremismo ideológico que esqueceu a “natureza humana”.
E regresso então à moeda oca. Tanto Rudolph tinha uma moeda oca contendo informação secreta como os pilotos encarregues de fotografar a grande altitude o território da URSS tinham moedas de um dollar contendo um alfinete envenenado para evitar serem capturados com vida – a permuta de espiões far-se-á entre Rudolph e um desses pilotos que não fora capaz de pôr termo à sua vida. A moeda oca está presente no ocidente e no oriente, num lado serve para transportar informação, no outro impede que isso aconteça. O que surpreende no filme é que este parece ser capaz de perceber que se de facto a diferença entre os dois lados é reduzida à superfície (humana), não é tanto assim quando se desce ao núcleo ideológico que a moeda oca representa. Há um diálogo de um dos generais que aconselha os seus pilotos, caso a situação se proporcione, a usarem o seu dollar, como se se tratasse de usar uma vida num jogo – quase dizendo colocas mais uma moeda e tens outra chance. Colocar a morte dentro da moeda oca revela uma dialética complexa: para o soldado a morte não passa de um recomeço (sem game over à vista), para a instituição a morte de um soldado não passa de um acerto contabilístico (mais dollar menos dollar). Aqui encontra-se a grande diferença ideológica, o capitalismo crê numa eternidade oca propulsionada a moedas enquanto o comunismo só dá valor às moedas ocas na medida do que estas contêm – mas ambos confiam na vacuidade da moeda, seja ela um nickel ou um dollar.