Aniki Bóbó (1942). Foi o filme de Manoel de Oliveira que a associação Os Filhos de Lumière (criada no âmbito do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura por um grupo de cineastas e cinéfilos para promover diversas actividades junto de crianças e adolescentes sensibilizando-as para o cinema) decidiu exibir há uns anos a um grupo de crianças problemáticas de etnia cigana na região do Porto. A ideia era mostrar à experiência um pequeno excerto do filme, conta Teresa Garcia, da associação, para ver a reacção das crianças, muitas delas sem electricidade em casa, quanto mais televisão, quanto mais cinema… Os minutos da “experiência” foram passando e, estupefactos, adultos e crianças encaravam o resultado: os meninos sossegaram-se, fitando o ecrã, em silêncio, durante a hora e picos de filme (a preto e branco, lembre-se). E mais estupefactos ficaram os organizadores quando nos próximos encontros as crianças lhes pediram para ver o mesmo filme. Alguns vinham de longe, muitos a pé, para rever e discutir o que acontecia naquela tela mágica. Teresa lembra que devem ter visto Aniki, pelo menos, umas dez vezes.
Está-se portanto no domínio do imprevisível, da navegação sem bússola, quando começamos a pensar na relação entre o cinema e as crianças. Para iniciar os jovens à arte do cinema deve começar-se pelas animações e sucessos que eles conhecem? Esta seria a teoria, que o francês Alain Bergala, nome maior no campo da pedagogia cinematográfica com crianças e jovens, denominou de “de Pokemon a Dreyer”, no seu incontornável livro L’ hypothèse cinéma. Segundo esta, a ideia seria ir progredindo de grau de complexidade nos objectos a mostrar às crianças, partindo do fácil e chegando ao difícil. Bergala rejeita esta ideia sobretudo porque considera uma ilusão que as crianças consigam por si só sair da sua “zona de conforto” para o complexo e o desconhecido. Além disso, parte desta pedagogia implica criar uma separação, um rasgo com o hábito, de forma a produzir novas identidades e reacções.
A escolha do filme do realizador português mostra esse desafio emotivo e sensorial ao olhar das crianças mas também coloca a questão do que deve ou não ser mostrado às crianças. Estes e outros temas foram o ponto forte do momento de discussão e reflexão da primeira parte do ciclo “Nos Caminhos da Infância”, um ciclo de cinema que o Programa Gulbenkian Qualificação das Novas Gerações propôs à associação “Os Filhos de Lumière” organizar. Nesta primeira mesa redonda (que digo já não era redonda), estavam precisamente Teresa Garcia, Alain Bergala, mas também Marcos Uzal, programador do Museu D’Orsay, cineasta e crítico de cinema e ainda Maria Luís Borges de Castro, na qualidade de especialista em psicanálise e pedopsiquiatria.
Então o que mostrar às crianças? Se é verdade, como disse Maria Luís, que há uma formatação de uma habituação ao frisson dos thrillers e dos videojogos violentos de hoje, Bergala também chama a atenção que não é tanto a violência ou o sexo o que deve ser interdito. Mais perniciosos são, segundo ele, os filmes oníricos de animação que não contêm nenhum tipo de confrontação. Confrontação que não tem de ser violenta, que está na dualidade do “eu gosto, mas odeio” dos bons filmes românticos que ajudam a criança a compreender as suas próprias mecânicas relacionais e emocionais com o outro.
Ao pegar na noção de confronto podemos precisamente separar o filme “para crianças”, do filme que lhes deve ser mostrado, nomeadamente por este pôr em causa um determinado ponto de vista desta no seu processo de crescimento. Na forma como se embate com o mundo, e vai fechando hipóteses, saindo do “tudo possível” e concentrando-se nas suas possibilidades de identidade. É o caso de Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955) de Fritz Lang, um dos filmes favoritos de Bergala que, sendo de aventuras, é sobre a amizade, a procura de um pai de substituição, sobre a colocação do espectador de cinema no espaço mágico-mítico da criança, só ela capaz desse olhar “virgem e inaugural, de fora da cultura”, como referiu Marcos Uzal.
Ao pegar na noção de confronto podemos precisamente separar o filme “para crianças” do filme que lhes deve ser mostrado, nomeadamente por este pôr em causa um determinado ponto de vista desta no seu processo de crescimento. Na forma como se embate com o mundo, e vai fechando hipóteses, saindo do “tudo possível” e concentrando-se nas suas possibilidades de identidade. É o caso de Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955) de Fritz Lang, um dos filmes favoritos de Bergala que sendo de aventuras, é sobre a amizade, a procura de um pai de substituição, sobre a colocação do espectador de cinema no espaço mágico-mítico da criança, só ela capaz desse olhar “virgem e inaugural, de fora da cultura”, como referiu Marcos Uzal. Como também disse, o melhor é começar por mostrar às crianças filmes que nós gostemos, que sejam bom cinema.
Mostrar apenas aquilo que achemos que as crianças devem ver é uma atitude paternalista que pode ser estupidificante. Aliás, a escolha dos filmes exibidos neste primeiro fim-de-semana de ciclo exemplifica isto mesmo na medida em que nenhum é um filme feito para crianças. Zéro de conduite (Zero em Comportamento, 1933 ) de Jean Vigo, Tadjrobeh (A Experiência, 1973) de Abbas Kiarostami e a trilogia da infância de Bill Douglas [My Childhood (1972); My Ain Folk (1973); My Way Home (1978)]. Todos estes têm em comum, embora de formas completamente distintas, as “virtudes” da insubmissão. Vigo, na sátira ao sistema educativo, mas também ao poder, fazendo o elogio da camaradagem na infância e da rebelião criativa. Kiarostami, voltando essa insubmissão para um mundo de silêncio, em que as crianças procuram lutar contra uma sociedade fechada que as obriga a trabalhar, sem grande esperança de futuro. E, finalmente, a dura infância nos anos 40 na Escócia de uma criança que, vendo-se sem possibilidade de ter uma família estável, procura no conforto/agressão da avó, dos amigos ou nos lares de acolhimento um conforto e ao mesmo tempo uma resistência.
A insubmissão presente nos três filmes, com exemplo de carne e osso no protagonista da trilogia, o delinquente Stephen Archibald (escolhido por Douglas quando aquele um dia lhe pediu um cigarro numa paragem de autocarro), encerra este dilema da pedagogia no cinema. Por um lado, há algo que provém da conformidade, do ensino em local da instituição, das gerações mais velhas, mas, por outro lado, a verdadeira aprendizagem faz-se sempre “contra a pedagogia”. Como diz Maria Luís, a criança vai ao cinema e pergunta-se ao ver aquelas imagens: “O fantasma está dentro de mim, mas eu preciso de uma confirmação. Será este fantasma representável? Mas também preciso de criar uma resistência ao que vejo, um ‘eu não sou bem assim como eles’, para construir uma identidade”.
A importância da insubmissão tem ainda um outro papel. Como refere Alain Bergala, o professor pode ensinar elementos factuais, mas não pode ensinar ninguém a ser tocado por um determinado filme ou obra. É por isso que decidiu escolher como subtítulo para o seu livro “pequeno tratado de transmissão do cinema na escola e noutros lados.” A transmissão implica uma passagem de uma experiência, uma iniciação por oposição a uma didáctica, formatada e impositiva. Se a rebeldia é condição do crescimento, por maioria de razão, esta, enquanto “reserva de anarquia” constitutiva de qualquer obra de arte, deve ser mantida, custe o que custar, na relação com as crianças. Talvez por esquecer essa latência essencial da insubmissão de qualquer processo educativo, Jean Vigo tenha sido tão duro contra o espaço caricatural e imobilizante da autoridade em Zéro de conduite. Quiçá pela mesma razão, a de ser complicado ao professor gerir esse equilíbrio entre a autoridade e a liberdade, ainda o cinema seja um elemento visto por muitos com reserva no que toca aos currículos nacionais.
Na apresentação das obras primas de Bill Douglas, Marcos Uzal salientou um aspecto vital. Os filmes do cineasta escocês foram uma forma que ele arranjou de olhar de frente a sua própria infância problemática (nascido de uma união ilegítima, mãe cometida a um asilo, avó abusiva, etc.). Em certa medida podíamos até especular se Douglas não teria sobrevivido apenas para relatar o seu passado, cristalizando-o em filme. Esta “sublimação” fílmica põe a descoberto a importância de relacionar o cinema como arte das imagens, mas também como arte da manufactura. O toque de Midas do cinema na infância passaria pela sua consideração como espelho distorcido de si (nunca o espelho deverá ser total e límpido, como no cinema de ideologia comercial, onde o espectador-consumidor busca uma mera confirmação do que já espera ver) e que tal implicaria uma acção qualquer. Não é fácil ensinar a fazer arte, mas pode iniciar-se ao contacto com a mesma, do ponto de vista dos elementos que estão em jogo na criação de um conjunto de imagens. Aqui reside a diferença entre educar, ensinar ou iniciar a uma arte como o cinema.
Marcos Uzal começou a sua intervenção na já referida mesa (não) redonda com uma citação de Victor Erice: “todos os cinéfilos são órfãos.” Esta procura, símbólica ou real, dos pais, de origem ou de substituição, aproxima o espectador de cinema da condição da crianças. Assim como o aproxima o facto de ambos verem o mundo em grande de baixo para cima. Essa “pequenez” adensa o obsctáculo do mundo que não deve ser minimizado. Ou sequer criticado: veja-se a indiferença com que os adultos tratam as crianças em Tadjrobeh e se que como o próprio Kiarostami se abstém de criticar essa indiferença. É assim, é como é. Cabe a cada um encontrar soluções.
A preservação do enigma dos filmes, da reserva do que não podemos compreender neles, leva o espectador a procurar a sua solução. A mesma coisa com as crianças na estratégia de crescimento, a mesma coisa com as crianças dos filmes de Vigo, Kiarostami e Douglas. O duro real com os seus problemas tem o mesmo papel que o cinema terá com as crianças, o da estimulação do seu imaginário, do encontro de soluções pragmáticas para si. Essas soluções estão eminentes em todos estes filmes. No final de Zéro de conduite, como salientou José Manuel Costa após a sessão, as crianças estão, após a rebelião escolar, no alto do telhado e a câmara cá em baixo a filmá-las. Vão cair, ou é o triunfo da rebelião, em ascensão, no local mais elevado onde se pode estar? Na conclusão de Tadjrobeh, o menino vê a possibilidade de ir trabalhar para casa da menina de quem gosta frustrada e Kiarostami, faz o inverso: filma-o no pátio cá em baixo, frustrado, com a câmara lá no alto, “enjaulando-o” cá em baixo, como o faz a sociedade. Final infeliz ou o sair de campo nesse plano será sinal de resiliência final? Finalmente, na conclusão de My Way Home, após ter encontrado a amizade de um amigo no Egipto, Jamie sofre com a separação eminente dos dois. Cada um vai para seu lado. O abandono será recorrente no futuro ou a árvore a florir com que Bill Douglas conclui a trilogia mostra essa capacidade de viver os problemas como passando de estação em estação, idade em idade?
Todos estes enigmas podem e devem ser discutidos com as crianças, envolvendo-as no negro do cinema e na luz da fantasia de um mundo alternativo que é, afinal, o nosso. Numa altura em que o cinema alterna entre as exibições comerciais, as menos comerciais e anónimas ou simplesmente os filmes vistos nas casas de cada um, é bom reencontrar um ciclo como este dedicado a um tema concreto e vital, que junte as pessoas e os olhares (nunca as opiniões) em torno dos filmes e do que eles evocam. E com ele capacidade de poder ignorar a serialização dos eventos culturais e passar o tempo a ver e a falar como se fosse a primeira vez. Como se fôssemos crianças.
Este fim-de-semana há mais.
A segunda metade do ciclo “Nos Caminhos da Infância” terá lugar esta sexta feira, dia 6 de Novembro, pelas 21:00, e no dia seguinte, 7, durante todo o dia, na Sala CAM da Fundação Calouste Gulbenkian. Serão exibidas obras do soviético Nikolai Ekk e de Vittorio de Seta e as apresentações e conversas estarão a cargo de Bernard Eisenschitz, José Manuel Costa, Pierre Léon, Manuela Barros Ferreira e Cláudio Torres. Como na primeira parte, sábado de manhã haverá uma mesa redonda onde além dos filmes se discutirão outros temas ligadas ao cinema, educação e infância.