Luís Mendonça (LM) e João Lameira (JL) concluem a cobertura ao DocLisboa.
Listen to me Marlon (2015) de Stevan Riley
Listen to me Marlon faz lembrar o também recente Kurt Cobain: Montage of Heck (2015). Stevan Riley aproveita-se de gravações caseiras de Marlon Brando a conversar consigo mesmo (daí o título) – houvesse ou não interlocutor, estando ou não sob o estado de hipnose -, entrevistas e outros registos sonoros para montar a biografia do actor. Apesar de querer parecer sofisticado, o filme é muito pouco inventivo visualmente: sequências de filmes, entrevistas televisivas, fotografias e, para colmatar os buracos, umas imagens filmadas agora, funcionais e ilustrativas. Listen to me Marlon não é completamente desinteressante. Dificilmente qualquer coisa sobre Brando seria desinteressante. No entanto, ao contrário de Montage of Heck, o resultado é uma espécie de autobiografia por interposta pessoa. Riley toma o papel de ghost director, responsável por dar sentido às ideias dispersas de Brando, ordenando-as cronológica e tematicamente. Assim, o fantasma fica à vontade para racionalizar, inventar desculpas para qualquer acto mais reprovável, sem contraditório ou outro ponto de vista, livre para criar a sua imagem para a posteridade. (JL)
I don’t Belong Anywhere – Le Cinéma de Chantal Akerman (2015) de Marianne Lambert
É um complemento importante para No Home Movie (2015). Akerman fala sobre a sua obra a partir deste que acabou por ser o seu derradeiro filme. Dizer que é um auto-retrato e, ao mesmo tempo, um documento fundamental sobre o seu cinema é apenas confirmar aquilo que já era óbvio nos seus (melhores) filmes: a estreita ligação entre a memória pessoal e o gesto formal, puramente cinematográfico. Neste documentário, ouvimos Akerman dizer que a sua mãe é o âmago da sua obra. Ao mesmo tempo, Akerman, a propósito do tal “gesto cinematográfico”, diz que tudo é ficção a partir do momento em que é enquadrado, ou melhor, a partir do momento em que se põe algo em quadro. A sua montadora Claire Atherton refere que não haverá melhor matéria escolar que poder assistir-se aos rushes de No Home Movie. O filme de Lambert mostra, a seguir, o que Atherton quer dizer: a câmara, colocada sobre uma mesa, é manipulada por Akerman até fixar um ângulo onde tudo se harmoniza. É aqui que nasce a força e coerência de um olhar. O enquadramento é a alma do cinema de Akerman. A partir daí o seu cinema pode tudo. E pôde, de facto. É um elogio a Akerman e uma aula para se pensar as coisas do cinema. (LM)
Die Innere Sicherheit (The State I Am In, 2001) de Christian Petzold
Em Die Innere Sicherheit, um dos primeiros filmes de Christian Perzold (o primeiro sem ser para a televisão), o realizador apresenta já algumas das qualidades dos seus filmes vindouros: a secura, a economia narrativa, num cinema que deixa umas pistas sobre o contexto social e político do enredo, para se delimitar quase unicamente àquilo que se vê no ecrã. O espectador percebe que os pais da rapariga têm um passado terrorista, que estão escondidos no Algarve, talvez a preparar outro golpe, talvez não. Que rapariga sonha em ser normal, viver sem o peso desse passado que não é o dela, ter paixonetas adolescentes e vestir roupas da moda. E o espectador segue somente aqueles gestos, aqueles rostos, aquelas acções, com o mínimo de perturbação dramática possível. A protagonista é, mais uma vez (pela primeira vez?), a personificação da Alemanha, essa ideia de um país, tema obsessivo da obra de Petzold. (JL)
El botón de nácar (O Botão de Nácar, 2015) de Patricio Guzmán
O protagonista deste filme é o grande protagonista da, paradoxalmente nomeada, Terra: a água. Ela tem alma, corpo, voz (música!), memória, ela é medium do cosmos neste deslumbrante filme de Patricio Guzmán realizado no seguimento do igualmente magnífico Nostalgia de la luz (2010). El botón de nácar é uma viagem serena, mas de uma imensa (ia escrever “oceânica”) riqueza filosófica e estética, entre as memórias pessoais do realizador (que narra esta história épica misturando ciência, história e alguma fantasia) e a memória universal do cosmos (a paisagem de estrelas sobre o inqualificavelmente belo arquipélago gelado da Patagónia). É também, como esse seu anterior filme, uma tentativa de exercício de escavação sobre o passado terrível do Chile, debaixo do regime brutal de Pinochet. O texto e as imagens de Guzmán encontram sempre portas quer para as estrelas, que ali se avistam como em mais nenhum outro lugar no mundo, quer para as profundezas do mar, que testemunhou o extermínio dos índios e, salto na história impressionante mas feito sem sobressaltos neste filme, dos resistentes à ditadura de 1973-1990. É digna de todos os elogios a forma como Guzmán cola as peças deste puzzle sem forçar, por um instante que seja, um discurso que não pertença às imagens belíssimas que nos vai dando a ver e a percorrer. Com o olho e com a mente. Magnífico, magnífico e magnífico! (LM)
O filme terá distribuição comercial em Portugal a cargo da Midas Filmes.
Dupe od mramora (Marble Ass, 1995) de Želimir Žilnik
Ao apresentar a sessão na Cinemateca, Želimir Žilnik falou da guerra civil que assolava a Jugoslávia a desfazer-se na altura da rodagem de Duper od mramora. De como funcionou como resposta à barbárie, de catarse, talvez. Ou, simplesmente, como escape. Nesse aspecto, é um filme de guerrilha. Essa sensação tem a ver com o ar amador da obra, feita com poucos meios, sem actores profissionais, com o medo permanente da violência à porta. E também com a temática: a prostituição masculina, o travestismo, a transexualidade, numa parte da Europa ainda hoje pouco aberta a essas “novidades”. Mas sobretudo pela radical liberdade que Žilnik dá aos seus actores principais, em constante e delicioso overacting, pelo tom delirante de tudo, pela sucessão quase aleatória de cenas que extraordinariamente nunca perde a coesão. Duper od mramora tinha tudo para descambar no camp divertido mas inconsequente. No entanto, é resgatado pelo prazer de todos os participantes, contagiando o espectador, desarmado pela ingenuidade e excentricidade do filme. (JL)
Ornette Coleman: Made in USA (1985) de Shirley Clarke
Pode-se dizer que o jazz faz parte do ADN do cinema de Shirley Clarke? Sim, se pensarmos num filme musical, em estilo improvisado, sobre as pontes de Nova Iorque como é Bridges-Go-Round (1958) ou, mais obviamente, nas jam sessions que intercalam a história do “falso documentário” The Connection (1962). Estes títulos têm a energia – e a loucura criativa – de um Ornette Coleman? Talvez por aqui se explique este último gesto de Clarke na sua carreira: o de contar a história de vida de um dos mais renomados saxofonistas do seu tempo, nome maior do jazz e figura singular que, sob inspiração de alguns dos mais notáveis intelectuais do seu tempo – Buckminster Fuller e William Burroughs – procurou emprestar à sua música uma visão multidisciplinar, cruzando arte, ciência e educação. Ornette Coleman: Made in USA é um filme amalgamante, cheio de ideias – talvez demasiadas – que resultam em momentos mais ou menos anedóticos – a história da vontade de Coleman em ser “castrado” – e visualmente insólitos – exemplo do datado jogo visual com uma certa estética televisiva, muito eighties. É pouco mais que uma curiosidade para fãs de Coleman e/ou Clarke. (LM)
O filme volta a passar no dia 3 de Novembro, às 22h15, no Cinema Ideal.
Johnson & Co Und Der Fleudzug Gegen Die Armut (Johnson & Co e a Campanha Contra a Pobreza, 1968) de Hartmut Bitomsky
Underground (1976) de Emile de Antonio, Haskell Wexler e Mary Lampson
Percebe-se o casamento entre a curta-metragem de Harmut Bitomsky e a longa de Wexler, de Antonio e Lampson: ambos os filmes são a expressão de uma tentativa de fazer cinema revolucionário, numa altura da História em que a revolução explodia no dia-a-dia da Europa e dos Estados Unidos. Johnson & Co Und Der Fleudzug Gegen Die Armut aponta para um não-cinema, em negação de todas as convenções do cinema mais tradicional: a identificação nos grandes planos, o entretenimento na montagem, e por aí fora. Como o próprio Bitomsky recordou na Cinemateca, é um projecto de escola. E, como tal, é incipiente, derivativo e, à custa de tanto querer destruir todos os clichés, profundamente datado. A Escola, essa, foi lugar de inúmeros protestos e manifestações, de radicalismos vários (o Grupo Baader-Meinhof também nasceu aqui), e as memórias do realizador alemão acabam por ser mais interessantes do que o filme em si. Underground é de outra estirpe. O objecto do documentário é o Weather Underrgound, grupo terrorista norte-americano, responsável por diversos atentados à bomba, sem outras vítimas mortais que não alguns membros do mesmo, num acidente. À altura em que o documentário foi filmado, a Guerra do Vietname já tinha acabado, e os resistentes do Weather Underground, vivem na clandestinidade, à espera sabe-se lá de quê, fantasmas de uma revolução falhada (ou já desnecessária). Emile de Antonio, Haskell Wexler e Mary Lampson filmam-nos veladamente, sem lhes mostrar a cara (a pedido). Percebe-se que estão do lado deles, que procuram dar-lhes uma réstia de legitimidade. Discute-se a melhor forma de os dar a ver, até, que forma um filme revolucionário deve assumir. Todavia, não escondem as contradições, as falhas, os passos em falso destes revolucionários mais ou menos inocentes, senão mesmo ingénuos. No mínimo, Underground é um documento histórico importante. Mas, apesar da parcialidade, ou mesmo por causa dela, transforma-se em algo mais: na elegia de uma geração, das suas esperanças e correspondentes desilusões. (JL)