A 16 de Abril de 1746, em Culloden, perto de Inverness (Escócia), teve lugar a última batalha terrestre na Grã-Bretanha, protagonizada entre as leais tropas inglesas (protestantes, lideradas por William Augustus, Duque de Cumberland) ao trono e os rebeldes jacobitas (católicos, liderados pelo pretendente à coroa Charles Edward Stuart). A vitória dos ingleses foi esmagadora, não só no campo de batalha (batalha essa que durou menos de uma hora), como sobretudo nos desenvolvimentos após a contenda militar, em que Cumberland e seus pares realizaram uma singela limpeza étnica nas Highlands escocesas, rebentando o sistema de clãs e os seus costumes por mais de cem anos. Peter Watkins esteve lá e contou-nos como foi.
Mas, por agora, avancemos no tempo, uns duzentos e dezoito anos, e para uns bons milhares de quilómetros a Sudeste, tempo e espaço de uma guerra que abarca a atenção da sociedade (ocidental), via imprensa e, particularmente, via um brinquedo tecnológico ainda nos seus primeiros e frescos anos de vida, chamado televisão. Noticiários, debates, newsreels, diverso circo mediático a dar conta de um conflito em que havia os “bons” e havia os “maus”, e em que a personalização do soldado era tarefa desconsiderada e de somenos importância, submersa que estava na propaganda reinante e na glória de uma vitória provável.
Não é apenas possível, como uma segura certeza, que as imagens mediáticas da cobertura da Guerra do Vietname estariam a criar frenesim na cabeça do jovem Peter Watkins, que decidiu (com o “selo de qualidade da BBC”, já lá vamos) empregar essa forma de enquadramento “jornalístico” na “transmissão” da batalha de Culloden (1964), daí resultando o primeiro grande capítulo de uma filmografia que nos faz hoje escrever, sem olhar para trás das costas, que o Watkins é o maior cineasta inglês desde o Hitchcock, sem melindre dos fãs do Mike Leigh, que também o somos. Só pelo Watkins se prova que a frase do César Monteiro de que não sabe porque é que os ingleses nasceram é de uma profunda injustiça e até um bocadinho acintosa. Pelo Watkins e pela Lilly Allen.
Grandes planos de soldados imundos, amarfanhados física e psicologicamente; entrevistas pré-batalhas (por parte do repórter Watkins) a esses mesmos soldados e aos seus superiores, tipo conferência de imprensa em pleno terreno de jogo; reportagens durante a batalha, abrindo um universo paralelo de surrealismo; um historiador que observa a distância relativamente segura os sucessos e insucessos da luta, qual comentador desportivo em acção, continuando o seu relato mesmo quando a fumarada dos canhões obscurece o seu campo de visão. Se se poderá colocar a hipótese do tratamento televisivo do conflito vietnamita ter providenciado ideias a Peter, então queremos fantasiar a hipótese de Culloden ter influenciado , nos anos vindouros, as reportagens desportivas em directo, especificamente, os jogos da bola. E regressando ao início deste parágrafo: grandes planos como identificação e personalização do soldado, toque de humanismo paradoxalmente reforçado pela narração “fria”, factual e aparentemente neutra de Watkins.
Um humanismo anti-guerra que nunca dá o flanco do sentimentalismo das inenarráveis reportagens televisivas dos dias de hoje, com as suas miseráveis performances musicais lacrimejantes em volta de corpos esfarrapados.
“Isto é um tiro. Isto é o que faz”, diz Watkins, antes de ouvirmos o estrepitoso som da bala de um canhão a ser disparada e os seus resultados na carne do soldado. Quase poderia ser o mote do Unforgiven (Imperdoável, 1992) do Eastwood, este ”Isto é um tiro. Isto é o que faz”. Um humanismo anti-guerra que nunca dá o flanco do sentimentalismo das inenarráveis reportagens televisivas dos dias de hoje, com as suas miseráveis performances musicais lacrimejantes em volta de corpos esfarrapados. Portanto, Culloden como apreensão das técnicas televisivas (e ainda mais da cobertura televisiva de um determinado conflito) para as melhor colocar em cheque. Além disso, o sentimentalismo sonoro serviria para tornar invisível os belos sons das Bagpipes e das gotas de chuva a cair na relva e nos chapéus dos soldados. E isto com um tratamento sonoro (com o “selo de qualidade” da BBC, já lá vamos) que deve ter ter tido um preço de meia dúzia de libras.
Culloden é um ponto importante na “história do cinema”, pela ambiguidade do seu registo, um vaivém entre ficção, documento e reportagem televisiva que se tornaria mais tarde moda nos docudramas televisivos, mas faz figura de obra “menor” (sacrilégio) diante de, pelo menos, quatro obras-primas subsequentes de Watkins: The War Game (1965) – banida pelo “selo de qualidade” da BBC, já lá vamos -, Punishment Park (1971), Edvard Munch (1974) – um dos melhores telefilmes de sempre -, e o seu último trabalho, o monumental La Commune (Paris, 1871) (2000), todos eles amplificando e refinando as técnicas de Culloden, todos eles, também, partilhando o mesmo inconformismo perante a ordem estabelecida, onde poder político e os media andam quase sempre de mãos alegremente dadas. Peter Watkins, ao que se sabe, vive hoje na Lituânia , tem um site e parece ter desistido do cinema e da televisão. Agora, vamos até à BBC.