Foi numa tarde apressada que me encontrei com Jean Douchet, antes da sua entrada em sala para falar sobre La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939), um dos três filmes que nomeou para a programação do LEFFest. Levei comigo o meu amarelinho Cahiers do cinéma nº 95, com uma aparência frágil nas primeiras páginas – edição dedicada a Ingmar Bergman – onde figura um texto de Douchet sobre Fängelse (A Prisão, 1948). Intitula-se “L’instant privilégié”. Sem mais, percebi que a conversa, contraída pela definição laboriosa do dia, não poderia corresponder a mais do que esse premonitório título: um momento fugaz e especial. Com a chávena de café numa mão e a esferográfica mediana que desencantei de dentro da mala, na outra, o crítico deixou-me um cumprimento cinéfilo assinado ao lado desse título. Aproveitei então a dádiva do instante, para colher algumas palavras.
Jean Douchet, estamos aqui com uma sessão de La règle du jeu (A regra do jogo, 1939) a decorrer no andar de cima… não resisto a começar por perguntar-lhe a razão desta escolha, a apresentar no LEFFest, ao lado de outras duas.
Muito simplesmente, tinha de fazer uma escolha entre os imensos filmes que me interessam, e cineastas que me interessam, por isso, fui ao grande clássico entre os clássicos do cinema francês, Jean Renoir, e ao La règle du jeu, que ainda hoje permanece um filme difícil, costumo até dizer “para adultos”, na sua aparência de nada, c’est rien… Poderia trazer qualquer filme de Renoir, mas La règle é “o” grande filme. Depois escolhi outro mais tardio, dos anos 50, do período de Fritz Lang nos Estados Unidos, The Big Heat (Corrupção, 1953), um noir com o seu tema-motor favorito, a vingança. Portanto, o clássico Renoir, o igualmente clássico Fritz Lang, e uma terceira opção: o moderno – que para mim é o grande clássico dos nossos dias – Coppola, The Godfather: Part III (O Padrinho: Parte III, 1990). Numa breve explicação, estas minhas escolhas acabam por ser uma maneira de falar um pouco da história do cinema, deixando de parte, claro, outros nomes óbvios, como Griffith, John Ford, Mizoguchi… bem, é um sem fim.
Voltando ao “clássico” Jean Renoir, que memórias guarda do cineasta, no contacto pessoal?
Era um homem extremamente aberto, sempre a procurar agradar aos outros, mas, na verdade, muito… muito secreto. Podia-se conversar com ele sobre tudo, e se falávamos do seu cinema e sentia que não estávamos longe do que fazia, nesses momentos ele deixava-se envolver um pouco mais. Mas era, de facto, alguém que se escondia muito, é isso que retenho. A fórmula dele era sempre: “Ah oui, c’est comme ci… c’est comme ça…”, voilá. (risos)
O cinema contemporâneo tem para si nomes tão grandes quanto aqueles com que fez uma certa escola crítica, nos Cahiers du cinéma?
Sem dúvida. Não acredito em épocas de arte superior ou de arte inferior, de todo. É claro que se estivermos a falar da pintura, essa distinção pode fazer-se, sei lá, a época de Velázquez é colossal. Mas penso que o cinema, na sua evolução ao longo do tempo, mantém a grandeza. Não acredito na chamada idade de ouro. Hoje, para além de novos talentos, temos os americanos, lá está, Coppola, Michael Mann… o inevitável e imenso Godard, o Desplechin, etc.
O Jean Douchet mantém ou manteve um cineclube na Cinemateca Francesa…
Sim, mas já deixei.
O que lhe queria perguntar é se considera que é uma forma de manter viva a chama do diálogo sobre cinema. Digo isto porque, em Portugal, de um modo geral, as pessoas não procuram muito as ocasiões em que se fale de um filme, o interesse é apenas ver. Falar de cinema, com memória, é uma forma de resistência do modelo da oralidade?
Bem, eu já vim muitas vezes a Lisboa, e em particular à Cinemateca, inclusive para falar de Jean Renoir. Vocês têm uma excelente Cinemateca, que faz um bom trabalho. Mas sim, é verdade, e isso é notório por toda a parte. Em França o que acontece é que existe uma espécie de paixão genuína dos cinéfilos pelo cinema, sobretudo os estudantes da área – mas é só isso, o que é uma pena… Enfim, não dramatizemos, não é grave.
Existe uma fórmula de análise de um filme, no centro da dita sensibilidade?
O prazer de analisar um filme é forçosamente qualquer coisa de muito interior, ligada às impressões e ao sentimento. Eu tenho uma fórmula muito simples: não podemos compreender um filme se nos interessarmos apenas pela intriga dentro da história, compreendemo-lo sim quando olhamos para a sua escrita, para o modo como a câmara revela essa escrita. Aí estamos a ser fiéis ao imaginário do cineasta, que tentamos perscrutar através do seu movimento. Então, quando eu faço a análise de La règle du jeu, penso em como posso falar da sua escrita, por exemplo, em como a câmara é a morte.
Como nasceu o cinema na sua vida?
Foi a guerra que mudou as coisas. Os meus pais gostavam muito de teatro, e por isso eu tive as benesses do teatro. Depois, durante a guerra, eles foram viver para o norte da França e eu fiquei a viver em Paris, numa pensão. Saía à quinta-feira e ao domingo, pagava o meu bilhete para ir ao teatro, mas nessas ocasiões ia também ao cinema. E foi assim que aprendi a gostar do cinema. Portanto, para mim, o teatro e o cinema têm a mesma origem, mas no final, mantém-se sobretudo o cinema.
Tem um “filme da sua vida”, ou não é capaz de fazer tal selecção?
Há demasiados filmes importantes, não consigo ter um filme da minha vida.
O que lhe agrada no Lisbon & Estoril Film Festival?
Primeiro, há muitos filmes, muitas pessoas interessantes, com horizontes muito diferentes, vindos das mais diversas áreas – cinema, pintura, música, poesia, literatura… – o único problema é não existirem muitos espectadores. Na minha opinião, era urgente pedir às autoridades policiais que obrigassem todos os habitantes da cidade a ir ao cinema. (risos)