De Jean Douchet li alguns dos mais frescos textos de cinema. A sua escrita combina como poucas elegância, conhecimento e amor à arte. Douchet entrou nos Cahiers du cinéma em 1957, tendo desde aí assinado alguns dos textos mais imprescindíveis sobre os principais autores da nova cinefilia francesa: Renoir, Rossellini, Hitchcock, Lang… É também justamente conhecido como “o Sócrates do cinema”, por ter privilegiado a transmissão oral do seu amor ao cinema no âmbito da vasta rede de cineclubes existente em França. Por entre a reflexão e a palavra, Douchet experimentou a realização de pequenas filmes que atestam um desejo que os seus colegas dos Cahiers amarelos, Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer, levaram mais longe: trocar a caneta-câmara por uma câmara-caneta. Para Douchet, “l’homme cinéma”, crítico criador, o cinema resulta de uma “escrita”, isto é, do gesto de se escrever, ou inscrever, um certo movimento no tempo. A sua vinda a Lisboa, em sede de LEFFest, foi o pretexto ideal para se perceber o alcance do gesto crítico de Douchet, isto é, para se pôr em evidência os contornos da sua magnífica “arte de amar”.
É esse o nome da “carta branca” que Douchet apresentou ao público do LEFFest: “A Arte de Amar”. A organização do festival retirou este nome de um dos mais significativos textos de Douchet, escrito em 1961 para os Cahiers du cinéma – disponível numa tradução portuguesa, da responsabilidade da revista brasileira Contracampo. Este artigo procura trazer alguma luz ao papel da crítica e a sua relação com a cinefilia, com o criador e a criação cinematográficas. Aí escreve: “O próprio facto de sentir profundamente uma obra, e depois de propagar seu entusiasmo, constitui uma acção crítica, mesmo que ela seja apenas oral”. Percebe-se aqui como o fundamental do gesto crítico de Douchet consiste na propagação do entusiasmo (esse sentimento fervente) por uma obra. Partilhar o cinema, criticar o cinema, é um acto de partilha ou de contágio. Contágio mediado pelo entusiasmo que a obra inspira. O que é o entusiasmo? Voltaire definiu-o no seu Dicionário Filosófico recorrendo à origem grega da palavra: “Terão os Gregos inventado esta palavra para exprimir a agitação que nos sacode os nervos, a dilatação e o retraimento dos intestinos, os violentos apertos do coração, a corrida precipitada desse ânimo ardente que sobe das entranhas até ao cérebro quando nos sentimos vivamente afectados”. Afecção é a palavra-chave nesta “arte de amar” que faz práxis na escrita – e na oralidade – de Douchet. Não que seja um pregador fanatizado pelo cinema, mas toda a sua escrita foge da frieza analítica da academia ou do típico provador, “thumbs up, thumbs down”, dos jornais.
Por via dessa “arte de amar”, o crítico torna-se co-criador, implica-se na construção do que a obra é ou do que a obra pode.
Para Douchet, o verdadeiro crítico, ou melhor, o amador do cinema deve procurar “a harmonia no interior da dupla paixão-lucidez. Um dos dois termos sendo mais forte que o outro, a crítica perde uma grande parte de seu valor. É necessário que ela possua esses dois motores”. Não se trata, pois, de aniquilação desse entusiasmo originário, como acontece com o académico e o crítico jornalista (provador), mas de uma tentativa de tornar lúcida – e clara – a paixão que um objecto pode despertar. Douchet gosta, como já se viu, de falar daquilo que ama, e que o entusiasma por via desse amor. O crítico torna-se criador, ou parte do processo de criação, quando acede a esse dimensão sensível de si mesmo e da obra; de si mesmo com a obra. Portanto, ele, crítico, tem de estar disponível para ela, obra. “A verdadeira crítica ‘inventa’ uma obra, com se faria com um tesouro: ela capta, mantém e prolonga sua vitalidade. Ela descobre, por um incessante requestionamento, o valor dos artistas e da arte. Ela pertence indissoluvelmente ao domínio da criação e, arte ela própria, torna-se criativa”. O crítico não contagia apenas o leitor, ele também participa na formação da obra. Por via dessa “arte de amar”, o crítico torna-se co-criador, implica-se na construção do que a obra é ou do que a obra pode. Sublinhando uma palavra cara a Douchet nesse texto, o crítico participa – molda, por vezes, directamente – “a ressonância que as obras, e por consequência a arte, provocam na consciência dos homens”. Douchet remata: “É nela e por ela que as obras vivem”.
Para este LEFFest, como amostra desta “arte de amar”, Douchet trouxe as suas curtas-metragens, realizadas entre 1962 e 2009, mais três filmes que o afectaram especialmente: The Godfather: Part III (O Padrinho: Parte III, 1990), La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939) e The Big Heat (Corrupção, 1953). O crítico apresentou ainda L’avocat de la terreur (O Advogado do Terror, 2007), do seu amigo – também presente no festival – Barbet Schroeder. De que forma, nestas sessões, Douchet comunicou a sua visão do cinema? Desde logo, através dessa generosidade em falar, pela enésima vez, sobre alguns dos autores que mais ama. Acima de tudo, essa “arte de amar” fez-se prova no entusiasmo com que Douchet, com 86 anos, falou de La règle du jeu, um filme que já viu 300 vezes. Este número é avançado no fim da conversa, com humor mas também com algum orgulho, em jeito de resposta à “provocação” do moderador, Roberto Turigliatto, que referira que haviam sido 100 as vezes que Chabrol viu a obra-prima de Renoir. Esta pequena blague dita entredentes é significativa. Renoir foi o grande autor axial da geração dos Cahiers amarelos. Bazin considerara Renoir “o maior realizador francês do sonoro” e os seus pupilos secundaram essa convicção ao ponto de entre eles se gerar uma competição tácita para se saber “quem mais amava Renoir”, isto é, para se saber “quem mais arte tinha em amar Renoir”.
Douchet resume o desafio político e filosófico que La règle du jeu lança ao espectador com a seguinte frase: “somos todos representação”. O desabafo de Octave, leia-se, da personagem incarnada por Renoir no filme, ajuda-nos a perceber por onde vai a reflexão de Douchet: “On est à une époque où tout le monde ment: les prospectus des pharmaciens, les gouvernements, le cinéma, la radio, les journaux… Alors pourquoi veux-tu que nous autres les simples particuliers, on ne mente pas aussi?”. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, Renoir elevava a mentira a bem mais que um mero “sintoma de classe”. Octave falava em representação da humanidade: por via da propaganda e da retórica, ela estava pronta a deixar-se levar pelas mais inomináveis maquinações do espírito. A humanidade aparece, nas palavras de Octave, a falar a linguagem dos Estados e dos media; a linguagem da mentira ou, como diz Douchet, a linguagem do falso. De facto, tudo é fingido naquele jantar faustoso, preparado por uma aristocracia que já não mais é que uma sombra de si mesma (vide o último plano). Douchet esclarece: “não são os actores que interpretam mal as personagens, mas as personagens que interpretam mal os seus papéis na sociedade”. Mentira e decadência? La règle du jeu tresanda a morte por todos os lados, mas, ao mesmo tempo, tudo nele flui ininterruptamente, como um “jogo de máscaras” que tem a escrita de um carrossel.
Nas duas sessões de curtas realizadas por Douchet, conseguimos detectar alguma desta “pesada ligeireza”: por exemplo, nas palavras degustadas à mesa por Alexandre “ciné-stylo” Astruc no episódio de Cineastes de notre temps, onde Douchet surge, por vezes, como interlocutor activo e provocador. No raro documentário pedagógico em que Douchet aparece em amena cavaqueira com Eric Rohmer discutindo Boudu sauvé des eaux (Boudu Querido, 1932), damos de caras com aquilo que faz as suas curtas cómicas, tais como Le mannequin de Bellville (1962) e Et crac (1969): uma atracção do apolíneo pelo dionisíaco, um ao lado do outro. Renoir parece ser a medida comum aqui, sob vários aspectos. Posto isto, onde cabe nesta “carta branca” o menos amado dos filmes da trilogia The Godfather? Bem, desde logo, cabe por este ser o tomo que mais triunfalmente celebra a nostalgia pelo classicismo de Hollywood. O que comove – e entusiasma – o crítico Douchet é, acima de tudo, o seu desenlace “não-happy“, isto é, já-não-simplesmente-feliz. É belo o crepúsculo do padrinho, leia-se, do Cinema. Também cheira a morte aqui? Coppola, “o melhor cineasta da sua geração”, será um dos primeiros a mostrar as sombras que regressam ao castelo do Cinema. O jogo continua a ser jogado, mesmo que as velhas – e adoradas – regras já não façam sentido.
Faltou ouvir falar Douchet a propósito do mais expurgado e violento noir de Lang, The Big Heat. Douchet voltou para Paris um dia antes da passagem do clássico languiano no festival. As últimas palavras do crítico neste LEFFest foram para L’avocat de la terreur, documentário algo saturante sobre o advogado “sem escrúpulos” Jacques Vergès, o homem que defendeu (entusiasticamente?) Pol Pot, Klaus Barbie, “Carlos, o Chacal” e Slobodan Milošević. Sabemos como pode ser diabólica a instância judicial no cinema de Lang. Talvez estivesse aqui a pista para a sessão de Lang do dia seguinte, realizada já na ausência de Douchet, mas nem por isso na ausência do seu modo de pensar. Foi ele que amámos – e que nos entusiasmou – no passado LEFFest. Passemos a palavra.
Porque só podemos amar em liberdade, quero dedicar este texto às vítimas dos atentados da passada sexta-feira 13, na cidade de Renoir e Voltaire.