Primeiros três dias de festival, três filmes vistos: entre o mau e o terrível a simpatia do tarefeiro.
Every Thing Will Be Fine (Tudo Vai Ficar Bem, 2015) de Wim Wenders
Como se pode ver pela imagem acima, há dois aspectos que não se pode deixar de valorizar em Every Thing Will Be Fine, a saber, um trabalho de iluminação a fazer lembrar (porque é referência directa e homenagem de Wenders) os melodramas de Douglas Sirk – onde a luz quente que por vezes invade as cenas tem como especial função “iluminar” o espírito dos personagens -, e por outro lado a consciência de que o dispositivo do 3D (ainda que não tenha sido essa a versão que me foi dada a ver) não é simplesmente gratuito – o que leva o realizador a enquadrar repetidamente os seus actores através de janelas, portas, e outras aberturas, sempre no sentido de uma encenação em profundidade. Mas talvez a única grande inteligência neste filme seja de facto o jogo com o dispositivo, é que Wenders brinca com o espectador quando decide fazer um filme com a terceira dimensão sem que haja qualquer forma de espetacularidade no drama de interiores que vai contar. Aliás, Wenders contraria exactamente a ideia feita de que o 3D deixa ver mais e mais além, aqui o 3D serve sempre para esconder, para interpor, para retardar a revelação, por exemplo, a sequência do acidente é toda construída sobre a ideia do olhar que não vê além.
O problema de Every Thing Will Be Fine é que fora esses momentos “iluminados” a realização de Wim Wenders limita-se a filmar um episódio estendido de Brothers and Sisters ao qual se acrescentam uma série de actores cada um mais esquemático que o anterior, e um insuportável James Franco sempre em pose, sempre com os olhinhos franzidos, a fazer de um escritor de sucesso sem que ninguém alguma vez acredite nisso. Mais anda, toda o filme se sustenta em três elipses de vários anos confirmando a ideia de que daqui sairá (ou poderia sair) uma mini-série televisiva em três episódios. Talvez seja exactamente esse anonimato televisivo exacerbante que transforma os poucos momentos virtuosos em algo de significativo, veja-se, já perto do final, o jogo com os reflexos de uma janela que se abre para deixar entrar o larápio traumatizado (e com daddy issues) de novo trabalhando exemplarmente a profundidade de campo. Mas contam-se pelos dedos de uma mão esses momentos, o que não chega para arrancar Every Thing Will Be Fine do marasmo criativo onde Wenders anda metido há vários anos.
Manglehorn (O Senhor Manglehorn, 2014) de David Gordon Green
Podemos encarar Manglehorn como o final de uma trilogia de Gordon Green dedicada a homens solitários na América rural, seguindo-se portanto a Pince Avalanche (2013) e Joe (2013), sendo que cada um destes títulos funciona também como veículo para o seu actor principal, Paul Rudd, Nicolas Cage e agora Al Pacino. Como é típico neste filmes propulsionados pela presença de (grandes) actores, os realizadores tendem à indulgência e aqui sente-se um certo anonimato de tarefeiro típico de Gordon Green (se é que o anonimato pode ser uma característica identificativa, não me parece…). Por outro lado também se sente a sua tendência para sobrecarregar os filmes de símbolos: Pacino faz chaves e todo o filme se faz na sua busca por uma “chave” para o quotidiano, para o amor não correspondido, para uma nova vida (chave essa que está dentro da sua gata, através da qual conhece Holly Hunter a sua “chave”). E a juntar a isto o seu gosto pelo universo brega da América redneck, não é pois por mero acaso que Harmony Korine é um dos personagens secundários, dono de um salão de bronzeamento – ele é o tan man – que vira prostíbulo com massagens e happy endings.
E por falar em finais felizes… aqui o desenlace que revela o quarto-capela, a gata que volta a comer e o date que tem uma segunda oportunidade são de uma sinceridade tocante. Gordon Green encontra sempre a margarida por entre o estrume e por entre os decrépitos dinners, as panquecas requentadas de domingo e os cemitérios de barcos encontra-se uma serenata num banco e um Pacino de coração dilacerado a pedir uma second chance. Claro que isso implica que tenhamos que assistir a sequências de montagem em corridinho à Korine e câmaras lentas a olhar a natureza à Malick, mas sinceramente já estou habituado ao lado de anúncio de cerveja do cinema de Gordon Green, é que ao menos é sincero. Assim como é sincera a mais inteligente sequência do filme que opõe o simplório chaveiro com o filho ensimesmado que montou um negócio em pirâmide e agora é investigado pela polícia: Gordon Green é mais vezes simples que ensimesmado e isso nota-se nos seus filmes, mesmo quando mete o piloto automático.
11 minut (2015) de Jerzy Skolimowski
Jerzy Skolimowski regressara, 17 anos depois, à realização com Cztery noce z Anna (Quatro Noites com Anna, 2008), um drama íntimo, triste mas encantado. A delicadeza desse filme inspirou-lhe um novo fôlego e depois veio Essential Killing (Essential Killing – Matar para Viver, 2010) onde já se sente, em estado ainda embrionário, tudo aquilo que agora 11 minut cristaliza de forma insuportável. Pois bem, nesse filme incomodava a velocidade da primeira parte, tudo à pressa, tudo a mata cavalos, pois bem, agora não é só a primeira parte, é todo o filme que corre sem nunca parar, contra o relógio, a contra-relógio. O outro aspecto duvidoso do filme protagonizado por Vincent Gallo era o tom demasiado explicativo que se introduzia pelos flashbacks, aqui não há esse recurso mas também não há pontas soltas, tudo se cose num ramalhete certinho com um desenlace em câmara lenta para que nada fique por ver. O outro aspecto definidor do personagem de Gallo era o seu lado grotesco, apalhaçado, ridículo – comer formigas e mamar na teta de uma senhora gorda -, agora todo o filme se faz de coisas grotescas, tudo é de mau-gosto, já não há sequer a lentidão da câmara para atenuar as salsichas longas e as freiras gulosas, os vários homens com as calças pelos tornozelos, as grandes angulares com rostos deformados, as linhas de coca e as gajas boazudas e claro os momentos meta a piscar o olho: o falso suicídio, o casting, os múltiplos ecrãs e as várias câmaras de telemóvel e webcams a dar o lado moderninho.
Mas se Skolimowski quer ser moderninho, certo é que o filme já está ultrapassado quando ainda não chegou ao fim, um filme desenterrado da vala comum do cinema meta-narrativo do início dos anos 2000’s, uma espécie de Crash (Colisão, 2004) meets Requiem for a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000) – e se nenhum desses títulos envelheceu bem, este já está enrugado antes de ser parido. Talvez tenha sido o cameo em The Avengers (2012) que lhe tenha feito mal… Mas pior que tentar ser um filme de acção tosco é o lado evangelista pela igreja do niilismo do sétimo dia que mais asco causa: Skolimowski funde o pensamento de uma grande prosista da língua portuguesa – não há coincidências – com a ideia do glitch informático, como que dizendo que a nossa vida é toda um erro de computador um lapso, e se algum de nós desaparecer pouca diferença faz, é só menos um pixel no grande ecrã da vigilância global. Uma espécie de new age catastrofista na era do digital, salve-se quem puder.
11 minut é de novo exibido na próxima sexta-feira, dia 13, às 18:00 no Casino Estoril.