Outros três dias de festival se seguiram, e outros três filmes se viram: entre o a afirmação do novo e a confirmação do mestre, os desvios sinceros do tarefeiro.
Montanha (2015) de João Salaviza
Verão. Calor. Uma ventoinha vai e volta bufando o ar morno sobre os corpos, sobre o corpo de David Mourato, sobre as suas costas nuas. Estamos de fronte da montanha, o corpo como paisagem, o adolescente como centro narrativo, à deriva, perdido, correndo: “agarrei-me ao miúdo” diz Salaviza, como já acontecera no retrato de Rafa (2012) onde o calor também escaldava ou igualmente em Arena (2009). E também nos três temos a periferia, o subúrbio como espaço abandonado, preenchido apenas por ermitas envelhecidos e jovens, pequenos delinquentes, sem nada para fazer, furtando isto e aquilo só para esquecer o aborrecido das férias, férias sem fim. São portanto filmes contra a autoridade onde esta recorrentemente é negada pela câmara de Salaviza: o fora de campo como o espaço para o poderoso, para o institucional; no enquadramento só cabem as margens.
Montanha é pois um filme de confirmação que prolonga e continua o trabalho das curtas sem nunca ousar desviar-se (ou fazendo-o subtilmente) do centro formal e narrativo que vem construindo. É nesse sentido um filme que dificilmente se diria ser uma primeira obra, dado o auto-controlo se impor a todo o momento e o desejo natural de mostrar as habilidades e os conhecimentos se restringir ao mínimo. As referências e o virtuosismo estão lá mas sempre como que atenuados por um desejo documental e pela vontade de filmar aqueles jovens e as relações entre eles. Talvez o problema maior do filme seja de facto a necessidade de introduzir uma série de elementos que justifiquem a longa metragem, que é como quem diz, colocar um problema dramático tradicional e introduzir um subtexto que faz progredir a acção, a saber: a morte do avô como o acontecimento que faz regressar a mãe e coloca o miúdo à deriva (em fuga) e por outro lado, a intuição de um triângulo amoroso entre David, Rafa e Paulinha (que se chamando Cheyenne inundaria definitivamente o filme daquilo que já se lhe quis encontrar: um western a cavalo de skates povoado por índios imberbes – e Clark e Van Sant vêm à cabeça). Estes dois elementos trazem ao de cima – isto é, põem em evidência – um trabalho que em tudo o resto se faz de subliminares manipulações intencionalmente invisíveis.
Chant d’hiver (2015) de Otar Iosselliani
No final da sessão Bernard Eisenschitz começa por declarar que Chant d’hiver é um filme que simultaneamente é muito semelhante e muito diferente daquilo que é a obra passada de Iosselliani – acredito na palavra do crítico francês, mais ainda por pouco conhecer do cineasta de origem giorgeana -, explicando-se logo depois que nunca antes houvera tanto sangue, tanta guerra, tantas épocas históricas, uma tão complexa mestiçagem entre vítima e opressor, sendo, apesar de tudo, uma comédia. A palavra é dada ao realizador e o homem de rosto alongado começa por responder que de facto o que Eisenschitz afirma tem razão de ser, ainda que tenha dito bastantes conneries – algo que Paulo Branco se escusou de traduzir. Logo aí foi posta de lado a palavra do crítico (e outras perguntas, de mal-educados espectadores, foram igualmente desaconselhadas). Quem sou eu então para acrescentar o que seja… Por isso escudo-me no que o próprio Otar Iosselliani afirmou, oiçamo-lo.
Para ele o cinema americano, leia-se de Hollywood, é uma fábrica de macarrão e portanto, a expressão cinema de autor não passa de um pleonasmo, já que não há cinema senão o de autor. Acrescenta também que o público se está habituando às fórmulas e aos clichés e que já não sabe ler um cinema que não incorra nessas ferramentas. Esse público perdeu a capacidade de se deixar maravilhar, disse em certo momento, ele, por seu lado, maravilhou-se com o galo no final de Belle toujours (2006), ali, na surpresa surrealista, encontrava-se o cinema. O que Iosselliani não disse é que o seu cinema é feito desses momentos de maravilhamento, que são no fundo uma forma de reavivar um certo deslumbramento infantil pelo inesperado. Essa é a força do seu cinema, o gag em que dois homens adultos tocam música com os tilintares dos seus copos de vinho é um desses momentos. Ele bem pode dizer que é um cinema para pensar, bem nos pode aconselhar a ir para casa e beber uma água ardente e reflectir nas questões de poder, mas em boa verdade vos digo que são tudo conneries. É o pueril que lhe interessa.
Kishibe no tabi (Journey to the Shore, 2015) de Kiyoshi Kurosawa
Na antevisão ao festival especulei que Journey to the Shore deveria ser algo entre The Ghost and Mrs. Muir (1947) e P.S. I Love You (2007), que é como quem diz, um filme entre o classicismo de Mankiewicz – a forma como em dois minutos o problema dramático, as personagens principais e o motor da acção estão já revelados e todos os trunfos postos em cima da mesa ou por outro lado o trabalho cénico da luz e uma banda sonora vinda de outros tempos – e o romantismo delicodoce de pipoca que vem enchendo salas nas últimas décadas, e onde a presença da morte é um dado de partida e todo o filme acompanhará a despedida dessa mesma morte (neste caso, desse mesmo morto). À saída explicaram-me que provavelmente Kurosawa se terá encontrado preso entre uma necessidade comercial de adaptar o best-seller de Kazumi Yumoto (na senda dos amores românticos de despedida que vêm engrossando o box office japonês) e simultaneamente ousou fazer um filme que parece contornar, pelos serviços mínimos, essa mesma lista de encargos introduzindo o fantástico no quotidiano com surpreendente naturalidade, negando uma e outra vez o romantismo latente, recusando qualquer tensão sexual e torpedeado a sua obra de género com mais que uma piscadela de olho que funciona como coito interrompido para sedentos do J-horror – há que deixar a nota de que o cinema do realizador nipónico se adocicou com Tôkyô sonata (Tóquio Sonata, 2008), o seu único filme distribuído em Portugal, em DVD…
“Um fantasma é o medo que a gente tem dele” escrevia Bénard e aqui não há nunca medo porque o espectral não ganha nunca forma, pelo contrário, a carne do espectro é muito concreta. É exactamente essa presença física dos que já partiram aquilo que mais encanta em Journey to the Shore, por ser intrinsecamente contra a natureza do quotidiano: assim quando o fantasma do marido se esquece de descalçar os sapatos em casa e a mulher-viúva o repreende, um sorriso não pode deixar de se fazer esboçar, ou quando o fantasma se pela por bolinhas de arroz e ajuda nas lides e paga bilhete de comboio. Um mundo em que os vivos se confundem com os mortos – e os mortos por vezes se confundem com os vivos (e por vezes nem se apercebem que morreram) – é um espaço onde a memória e a sua presença se tornam corpóreas ao ponto de um espaço só se preservar enquanto o espírito o habita, ou por outro lado, uma memória que só continua a ser traumática porque o vivo se recusa a acolher de novo o espírito do falecido. “[D]eixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o único amor que existe – porque é o único em que acreditamos que existe – é o amor surreal”.