Últimos três dias de festival, e últimos três filmes da cobertura: entre o virtuosismo exibicionista do estreante e a clareza política do juiz, as manipulações do chico-esperto.
Lu bian ye can (Kaili Blues, 2015) de Gan Bi
Em Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) de Ingmar Bergman a membrana que separa a realidade sonhada daquele que não o precisa é várias vezes rompida entre transvisualizações, analepses e demais mecanismos clássicos de dar a ver o pensamento de um personagem. Nesse vai e vem de imagens, ora realistas ora fantasistas, uma se fixa: um relógio sem ponteiros que não cessa de tic-tar. Esse relógio marca um tempo já sem ritmo, o final da vida do personagem de Sjöström que se dirige para o momento de afirmação do seu próprio fim, uma graduação honorária. Ou seja, a fronteira entre sonho e memória esbate-se num filme que tem como propósito colocar um homem perto da morte a reconsiderar a vida que teve. Kaili Blues também trata de viagens à/da terra natal e também se enche de relógios: ao início um menino, Weiwei, desenha um círculo com os doze algarismos em roda sem ponteiros, como se na infância o tempo não tic-tasse da mesma forma, daí em diante o tempo não pára, o pai do menino é preso durante nove anos e o filme faz-se sobre esse intervalo, entre a fantasia de uma passado dourado e a acidez do presente na China ultra-industrializada, entre a memória de uma vida simples e o desaparecimento dessa memória – comboios sonhados que invadem o real e a memória deste e relógios que se multiplicam em reflexos sombrios.
Kaili Blues é então um filme partido em dois, ou melhor, um filme que trabalha sempre o binário na esperança que surja algo do choque entre o um e o zero: confunde-se passado com memória e o real com o sonho através de simbolismo vários e sempre subtis, uma bola de espelhos, a tintagem para o vermelho e o azul, a oposição entre planos curtos e planos longos (ou muito longos, no presente, já na segunda metade do filme, assistimos a um momento de virtuosismo técnico em que durante mais de 20 minutos acompanhamos, sem cortes, as personagens de uma pequena povoação, entre viagens de carro, de mota, de barco, travessias de pontes, cortes de cabelo, concertos pop na rua, um almoço numa tasquinha e a costura de uma par de botões tresmalhados) – a esse respeito o poster do filme é particularmente significativo na forma como desenha o retrato de um homem dividido pela enorme elipse que o separa do presente representado o seu tumultuoso mundo interior. E se essa é a sua maior força é também por aí que me relembro que Kaili Blues é a primeira longa metragem de Gan Bi; o virtuosismo vira com frequência para o exibicionismo das formas que o realizador coreografa impecavelmente.
Rabin, the Last Days (2015) de Amos Gitai
É sempre bom começar pela afirmação da ignorância: nunca tinha visto um filme de Amos Gitai, esse que é um dos nomes mais importantes do actual cinema israelita, em parte por desatenção (certamente), mas também porque o circuito da exibição comercial e dos festivais em Portugal raramente encontra lugar no seu seio para os filmes do realizador. Posto isto recorro às palavras do realizador que respondeu a algumas perguntas no final da sessão: questionado sobre o porquê de contar agora a história do assassinato de Yitzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel morto no dia 4 de Novembro de 1995 num atentado (com motivações de extrema direita ultra conservadoras), passadas duas décadas do incidente, Gitai explica que fez este filme como realizador e como cidadão – afirmando portanto que Rabin, the Last Days é um objecto simultaneamente artístico e político -, em particular porque, segundo ele, a melhor oposição à autoridade de Benjamin Netanyahu é, infelizmente, um homem que já morreu e que parece não ter deixado descendência. Gitai, que acompanhara Rabin em algumas da suas viagens políticas, clama pelo regresso de uma figura política que trabalhe o seu discurso sobre a clareza (por oposição àquela que a cada dia muda o seu discurso consoante as tracking pois), de forma franca e destemida, mais idealista e menos ideológica.
Se estas são as considerações políticas de Amos Gitai, o que me interessa é a forma como essas mesmas convicções se integram na forma de fazer cinema e nas próprias formas do seu cinema. E de facto Rabin é um monumento político algures entre JFK (1991) e Vladimir et Rosa (1971), um objecto que integra entrevistas, imagens de arquivo, transcrições de documentos oficiais das comissões judiciais e encenações de momentos chave da vida de Yigal Amir e do seu contexto social que culminaram nos fatídicos disparos. Há um lado profundamente objectivo na mão de Gitai que impressiona e é essa estética da claridade (da transparência) que o afasta dos filmes judiciários de Stone e Godard – juntam-se dois judeus e há três opiniões diferentes um provérbio que o realizador citou no final da sessão -, não é portanto um exercício de activismo anarquista nem de comunicação da “verdade”, é uma compilação de testemunhos, uns depois dos outros, numa narrativa feita na ideia de articulação, fragmentária naturalmente, que ainda assim procura encontrar na peças quebradas do passado matéria para pensar a actual situação de Israel e sua vizinhança.
La academia de las musas (2015) de José Luis Guerín
Na troca de correspondências entre mim e o Luís Mendonça a propósito do décimo primeiro encontro do Harvard na Gulbenkian escrevi a certo momento que incomodavam os subprodutos nas ficções de José Luis Guerín, que é como quem diz, mais do que os filmes tenho quase sempre dúvidas sobre as notações de intenções que os motivam (e que o realizador não só não faz por esconder, como exibe com orgulho). Pois bem, em Tren de sombras (O Comboio de Sombras, 1997) era o culto fetichista pela falsa degradação da película em particular a “dramatização da decomposição do rosto humano”, em Unas fotos en la ciudad de Sylvia (2007) era o lado predatório da câmara que “caça” as mulheres com que se cruza – caça grossa -, La academia de las musas encontra-se na intersecção destas duas intenções: de novo a plasticidade da imagem sobrepõe-se aos rostos e tudo e todos se vêem transidos de reflexos (auto-reflexivos, como tudo no cinema de Guerín) relegando para segundo plano – literalmente – aqueles que são os protagonistas do seu filme (especialmente elas) e, por outro lado, sente-se um insuportável marialvismo do professor e do realizador que o filma, na sagração da perfeição feminina que castra e cristaliza as mulheres a um ideal masculino barroco (a ideia de elevar a mulher a musa activista encarregando-a de devolver ao homens o apreço pela beleza é não só estúpida como perigosa).
Dir-me-ão que nem tudo o que o professor Raffaele Pinto afirma é reflexo (!) do que pensa José Luis Guerín, respondo que essa é a maior fraqueza do filme, que Guerín se escusa a comprometer-se com a sua visão do mundo, partilhando-a ainda assim. Tudo é feito no sentido do distanciamento artístico, o dispositivo do falso (?) documentário, a incursão pela novela de pequenas traições domésticas, o lado antropológico dos cantares pastorais e os reflexos também, tudo isto trabalho no sentido de colocar no espectador a dúvida da natureza das formas, formas essas que escondem os intentos (e as intenções…) do cineasta – ao ponto de Guerín “sacrificar” no final o seu protagonista a bem da estabilidade do próprio filme. O Luís Mendonça terminava a nossa correspondência com uma citação de Jonas Mekas que rezava “os filmes são inocentes, as pessoas não”. Se isso pode ser verdade para Mekas não o é para Guerín, o mais chico-esperto dos realizadores contemporâneos que teima em ludibriar-nos a cada filme. Filmes não-inocentes que inocentemente acreditam que o espectador se deixa sempre enganar. Não mais, não mais.