Por onde começar? Essa é a questão que se impõe a qualquer cinéfilo quando olha para o programa do Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril em cada ano. São só nomes grandes, cada qual maior que o outro, numa escadinha de grandeza que vai de Wenders a Syberberg: o artista, o grande artista, esse monstro ao qual todos devemos respeito, vénias e um pedido de desculpa por lhe respirarmos o mesmo ar. É pois complicado organizar um périplo pessoal pelas dezenas de filmes organizados numa miríade de secções paralelas, entre retrospectivas, descobertas, homenagens, focos, sessões-aula e sessões especiais, e selecção oficial (30 no total, 13 em competição e 17 fora dela). Por tudo isto impõe-se ao incauto cinéfilo um momento de pausa e demorada reflexão diante da brochura do evento, reflexão essa que deverá ter em consideração que a lida doméstica não pode ser adiada por uma semana, que os gatos têm que ser alimentados, que a louça não se pode acumular em pilhas periclitantes e que as sete cuecas da semana têm que ser postas na máquina. Por isso há que considerar alguns aspectos, as sobreposições da programação, os filmes que eventualmente estrearão nas salas nacionais por oposição àqueles que nunca mais poderemos ver, as homenagens e retrospectivas que não se repetem e aquelas que se fazem com regularidade (ou se fazem a qualquer momento num Youtube), os convidados que queremos ouvir e aqueles com os quais já não podemos mais. Serve este texto de antevisão para orientar o leitor, pelo prisma do que lhe escreve – que pretende igualmente orientar-se no decorrer do processo… -, sobre estas condicionantes.
Comecemos pela selecção oficial. Dos 17 filmes fora de competição todos têm os direitos de distribuição comprados em Portugal com uma excepção, Rabin, the Last Day (2015) de Amos Gitai, filme vindo directamente da última edição do Lido. Entre material de arquivo, cenas reconstituídas e entrevistas o filme constrói um retrato dos eventos que antecederam e se seguiram aos tiros de Yigal Amir que mataram Yitzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, no dia 4 de Novembro de 1995. Por ter sido encarado por vários como um dos candidatos mais fortes da competição do Festival de Veneza e por ser quase certo que não mais uma sala de cinema em Portugal o acolherá (pelo menos tão depressa) parece-me que a sessão única no dia 14 às 22:00 no Cinema Monumental (apresentada pelo realizador) será um momento a não perder. Mas se o leitor tomar a mesma decisão que eu há que arcar com as consequências, que é como quem diz, perder Heart of a Dog (2015) de Laurie Anderson (também vindo do mesmo festival italiano) e Francofonia (2015) de Aleksandr Sokurov (idem) já que os três títulos têm exibições únicas no festival em sessões concorrentes (e estes dois últimos prevê-se que estreiem).
Ainda fora das competições posso desde já desaconselhar o terrível filme que Wim Wenders realizou este ano (e que não será nomeado…) e, por outro lado, aconselhar vivamente o novo filme de Nanni Moretti, Mia Madre (2015) que é certamente um dos objectos de cinema mais tocantes deste ano e que mostra como o realizador italiano é talvez o maior e melhor observador de rostos humanos a trabalhar hoje em dia. E depois há as apostas, seguras claro, não podia ser doutra forma, no laureado (pelo Leopardo) novo filme de Hong Sang-soo, Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Right Now, Wrong Then, 2015), o estranho e misterioso novo filme – de animação – de Charlie Kaufman, Anomalisa (2015), e mais duas apostas, menos seguras, num realizador que acarinho, Pablo Trapero, que regressa com El Clan (2015) – vencedor do Leão de Prata para melhor realizador no Festival de Veneza que tanto e tão bem alimenta a programação do LEFFest 2015 – e num outro do qual vi apenas um filme – o louvado e bem lavado Weekend (2011) de Andrew Haigh, que agora realiza 45 Years (2015) mostrado no último Festival de Berlim onde o actor e actriz que protagonizam a relação quadragenária do título venceram cada um o Urso de Ouro para melhor actriz e actor (respectivamente).
Quanto à competição a proporção entre filmes com e sem distribuição nacional é um pouco melhor, mais ainda assim dos 13 apenas 4 se extinguirão no nosso mercado de distribuição, entre eles dois títulos que não perderei: La Academia de las Musas (2015) de José Luis Gerín e Kaili Blues (2015) de Gan Bi, ambos provenientes do Festival de Locarno onde o segundo venceu o Lmguugjjvuvveopardo para melhor primeira obra (e quanto ao primeiro não há grandes apresentações a fazer, mas diz quem viu que é um filme altamente reflexivo – e reflexo). A não deixar escapar está também o novo filme de Jerry Skolimowski, 11 minut (2015) que como o título dá a entender descreve sucessivamente os mesmos 11 minutos da vida de um conjunto de personagens naquele que se espera ser uma espécie de filme puzzle de acção pela mão do realizador polaco; e também o mais recente filme de Kiyoshi Kurosawa, que parece definitivamente afastado do contornos bem definidos do J-horror preferindo os objectos que se hibridizam entre a fantasia e o drama romântico, Kishibe no tabi (Journey to the Shore, 2015) parece ser, pela sinopse, um cruzamento entre The Ghost and Mrs. Muir (1947), P.S. I Love You (2007) e Creature from the Black Lagoon (1954). Verei.
O problema para o espectador cinéfilo ressurge quando repara que existem 15 ciclos paralelos entre retrospectivas a nomes conhecidos de todos até outros que dificilmente ressoam no ouvido, ciclos temáticos em redor da doença mental e outro em redor do polo cinematográfico centrado em Austin no estado americano do Texas, mas também mostras e cartas brancas a críticos-realizadores como Jean Douchet e John Berger e ainda umas tantas sessões especiais em formato filme-aula em redor de Lang e Losey. Por onde começar? Talvez por aquele que é um dos nomes mais curiosos do cinema americano contemporâneo acima de tudo pela heterogenia dos filmes que compõem a sua obra, David Gordon Green, que como já no ano passado estreia dois filmes consecutivamente nas nossas salas, ambos exibidos em ante-estreia no festival, Manglehorn (2014) e Our Brand is Crisis (2015), ambos de uma precisão tarefeira sempre a resvalar para o mau-gosto à Korine mas sem nunca lá chegar. Mas talvez, mais importante seja o pequeno ciclo dedicado a Alain Fleischer, fotógrafo, escritor e realizador, fundador e director da mais interessante escola de cinema em França, a Fresnoy, Studio national des arts contemporains, que com apenas três títulos exibe dois dos seus filmes fundacionais, Dehors-dedans (1974) e Zoo zéro (1979).
Não sendo motivo para idêntica descoberta, Martín Rejtman que já havia apresentado na edição do ano passado o seu filme Dos disparos (2014) regressa este ano com um pequeno ciclo de quatro outros filmes seus que poderão lançar alguma luz nos espectadores que de forma impositiva quiseram encontrar formas de causalidade no cinema do realizador argentino na sessão a que assisti no ano passado – mas talvez os interessados já tenham satisfeito o gosto quando o realizador passou por Lisboa com os seus filmes na primeira edição do Harvard na Gulbenkian. E se mais não fosse, uma aula de Elia Suleiman sobre Metropolis (1927) parece indispensável, assim como a oportunidade de ver em sala alguns dos títulos mais marcantes do cineasta Hans-Jürgen Syberberg, com a ressalva de que já em anos anteriores outras exibições de filmes seus neste festival pecaram pela pobre qualidade dos suportes exibidos, coisa que a presença do realizador em Lisboa este ano certamente evitará. E servirá também a homenagem ao agora já retirado de palco Luís Miguel Cintra para ver e rever alguns dos títulos mais marcantes do cinema português dos últimos 45 anos, com filmes de Joaquim Pinto, Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Paulo Rocha e José Álvaro Morais, entre tantos mais.
Outro aspecto recorrente da programação do LEFFest é o gosto por programar os monumentos do cinema, que é como quem diz, de programar filmes muito longos que raramente encontram espaço numa sala de exibição comercial. Syberberg é um nome recorrente, mas este ano haverá também a versão director’s cut de Bis ans Ende der Welt (1991) de Wim Wenders com as suas quase cinco horas de duração, as quase quatro horas das The Charles Bukowski Tapes (1987) de Barbet Schroeder – que juntamente com Barfly (1987), igualmente presente no festival a propósito da retrospectiva ao realizador, e uma cópia de Hollywood do respectivo romancista formam uma excelente entrada no mundo bukowskiano -, e também Smoking/No Smoking (1993) de Alain Resnais com as suas mais de 5 horas de duração, as 4 horas de Ludwig (Luís da Baviera, 1972) de Visconti a emparelhar com o homónimo de Syberberg (um pouco mais curto…), e por falar em sessões duplas: as mais de três horas do projecto Grindhouse de Tarantino e Rodriguez também encontram espaço no festival no ciclo dedicado a Austin. Monumentos num festival que se quer afirmar monumental (e que ocorre em parte no cinema Monumental).
E quantos filmes não ficaram de fora? America America (1963), a epopeia de Elia Kazan que passa numa sessão especial que põe em debate o drama dos migrantes refugiados, assim como cópias restauradas de Tarkovsky num ciclo que junta o cineasta russo com o seu pai poeta, uma sessão dedicada a Jean Genet com a sua única incursão na realização, uma sessão dupla à volta de Van Gogh entre Minnelli e Pialat ou a possibilidade de descobrir Sara Driver e as realizações de Douchet. São mais que as mães os filmes que passam no LEFFest e essa é simultaneamente a sua força e a sua maior fraqueza: com tantos filmes, tão dispersos, distantes e lançados de forma quasi-aleatória, o que o festival consegue é garantir que qualquer espectador consegue formar a sua própria programação, consegue, se tiver vontade e paciência (e uns trocos valentes), organizar uma expedição trans-seccional e assim formar uma visão pessoal e intransmissível a cada edição – o que é algo estranho quando por norma os festivais são espaços em que o público regressa à sala e partilha conjuntamente a experiência de cinema na sala escura com restolhares, segredos sussurrados e papeis de rebuçados e onde os corredores e os halls são espaços de tertúlia e aceso debate. Se esse é o possível lado bom desta programação “randômica”, o outro talvez se prenda no facto de se sentir menos o espírito de um festival no LEFFest, no sentido de ser um espaço onde se mergulha para descobrir o novo ou o que o passado soube esconder, e mais a presença de uma mostra ou de uma festa-do-cinema altamente efunada entre infinitas ante-estreias e outras tantas retrospectivas díspares. Espero que as minhas apostas se mostrem acertadas e que os meus dilemas se desfaçam atempadamente e que o caro leitor tenha o mesmo sucesso que me desejo. Boas sessões.