Numa recente entrevista que Augusto M. Seabra fez a Manni Moretti a pergunta final era se a palavra “maturidade” lhe dizia alguma coisa. Este respondeu que a sua maturidade nunca envolveria uma mudança brusca, nem uma serenidade. Basta aliás pensar na convulsão da tristeza, da raiva, da dúvida, da protagonista-realizadora deste seu último filme para que tudo seja evidente. Maturidade, confessou, só mesmo no sentido de uma maior tolerância. Passados que estão os anos contestatários, da luta de esquerda e das coisas que a partir dela deviam ser ditas, Moretti ficou com o presente para filmar de forma mais compreensiva e distante as certezas do seu passado. Mia madre (Minha Mãe, 2015) começa com uma cena de luta de trabalhadores de uma fábrica, uma cena do filme de realismo social que Margherita está a rodar. Esta arque-típica cena de juventude é vista pelo olhar da realizadora com a preocupação de Rivette: o seu câmara quer captar a violência em zoom? Não está certo. Reconheçamos que o dilema político de Moretti sempre foi político-cinematográfico. Mas outro sinais põem certezas de outrora em lugares de cepticismo actual. As mensagens políticas como ilustradoras de um “ódio à retórica” ou a incerteza de se poder ter uma visão clara sobre o presente.
Se esse nível de tolerância é claro no olhar para trás, no que se viveu, não o é menos no olhar para a frente, para o futuro. Não por acaso essa maturidade implicaria a aceitação derradeira: a da morte. Margherita (Margherita Buy ), juntamente com o seu irmão Giovanni (Nanni Moretti, ele próprio) e a sua filha Livia, terá de lidar com a morte de sua mãe, Ada. Mas essa aceitação é o sinal derradeiro de um movimento mais vasto de aceitação do descontrolo motivado pela vida, tarefa árdua de engolir numa profissão de realizador, onde se dirigem pessoas e se constroem mundos. Por isso, a realizadora já não vê os extras contratados para uma cena do seu filme como espelho do mundo real e se agarra à ideia de que pelo menos ali, no confortável mundo da ficção, as coisas podem ser como ela quer que sejam, ignorando essa “ultrapassagem pela direita” do real. Por isso ainda, o comic relief da star norte-americana que vem “abrilhantar” o filme, Barry Huggings. Um John Turturro que vem romper os esquemas mentais e profissionais de uma filha que parece só conseguir organizar o mundo para o tornar cinema, enquanto tiver a certeza do abrigo maternal. “Abrilhantar” com aspas no primeiro caso, do filme dentro do filme, pois o actor de facto nem uma só fala consegue recordar, e abrilhantar sem aspas no segundo, uma vez que também ele é uma crítica, que já é uma recorrência em Moretti, às ridicularias do sistema cinematográfico industrial norte-americano.
Moretti trabalha a profundidade de campo que é uma profundidade moral de habitação dos espaços de amizade familiar e profissional. Aqui a profundidade de campo verte-se em profundidade de olhar, o semblante triste e desamparado da actriz Marguerita Buy.
Falo agora de perdas. Em 2012, Nanni Moretti presidiu ao júri do Festival de Cannes e deu a palma de ouro a Amour (Amor, 2012) de Michael Haneke. Neste, o marido matava a esposa catatónica, no fundo, uma não aceitação da perda. Para Moretti, pelo contrário, há esse “pensar no amanhã” que faz reflectir a perda como algo doloroso mas que necessariamente se inscreve num processo mais vasto. Por isso Mia madre é um filme tão tocante. A perda de uma mãe inscreve-se necessariamente, quando falamos de uma aceitação da perda, num longo caminho do próprio tempo como perda, que as vai agenciando, ora maiores ora menores. A mãe morre, mas o latim perde-se pois ninguém sabe bem explicar para que serve. Mas é importante. Os livros da mãe, o que lhes acontecerá? Quem os vai ler, quem lhes vai tocar agora? É esse o dilema da perda da perspectiva de quem fica.
Perda que não é ponto final em Moretti que vem fazendo de outras perdas outros tantos grandes filmes. Margherita aqui perde as certezas, quase perde o controlo sobre o filme, “perdeu o marido” (é divorciada). Assim como Bruno Bonomo em Il caimano, (O Caimão, 2006) perde o seu realizador, o seu actor, a sua esposa, ou, para nos aproximar-mos do filme com o qual Mia madre mais rima, em La stanza del figlio (No Quarto do Filho, 2001) em que se dá a perda de um filho no seio de uma até ali feliz família de Ancona. Cinema de Moretti que funciona como um manual de gestão de perdas num mundo de autoficção onde cada tragédia contém em si um potencial de sátira e viceversa. É o que acontece em Il caimano, uma vez mais, com a tragédia da Itália de Berlusconi vista pelos olhos da sua situação, o do cineasta em “crise”, mas também a partir das entranhas do processo de fazer filmes que são no fundo as suas próprias entranhas.
Em Mia madre, como de resto em todo o seu cinema, a alternância da comédia e do drama são os impulsos que baralham uma falsa superfície para uma verdadeira profundidade. Com uma escrita estilística aparentemente simples (as câmaras fixas, os diálogos mordazes, as sequências de montagem a deixar entrar o ar nos espaços familiares dos quartos, dos estúdios, dos carros) Moretti trabalha a profundidade de campo que é uma profundidade moral de habitação dos espaços de amizade familiar e profissional. E por isso, profundidade de quarto, de casa, de sala, etc. Aqui a profundidade de campo verte-se em profundidade de olhar, o semblante triste e desamparado da actriz Marguerita Buy. Olhar que, desde a cena pós separação em Il caimano na qual se ouvia “I can’t take my eyes off of you” de Damien Rice com ex-marido e ex-mulher a conduzirem lado a lado já em carros separados, Moretti não mais largou.
Nas primeiras obras tipicamente qualquer cineasta se vê a braços com a escolha de um duplo caminho: ou o da pura experimentação para achar o seu traço ou o esforço para fazer do íntimo e pessoal um espaço universal. O que Mia madre nos dá, como todo o cinema de Moretti o vem fazendo de forma única desde o início, é esta segunda escolha. A de verter o pessoal sob a lente do ficcional, da transformação das grandezas da intimidade da sua família e do seu trabalho em espaços de todos, acolhendo o espectador como mais um membro da sua família. Quando Moretti perde a mãe todos nós a perdemos. Esse choque emocional é um trajecto que já há muito acompanhamos e que há muito celebramos na certeza sempre de o ver filmar cada amanhã, como ganho convicto por cada perda que lhe (nos) acontece. Soberba perda em filme aquela que ganhamos ao assistir a esta sua última obra.