Montanha (2015) é a primeira longa-metragem de João Salaviza. Contudo, esta não é a primeira vez que o realizador filma a adolescência e faz desta paisagem para uma errância que conduz as personagens para ruas sem saída. Viagens que não vão a lado nenhum, que põem as personagens a desenhar círculos no espaço, que, por sua vez, verticalizam a acção no tempo, seguindo, deste modo, parte do programa do cinema moderno tal como o viu o subestimado Christian Metz: transformar os tempos mortos em tempos vivos.
Também já viramos que há um problema de locomoção por trás da crise que assola, como uma tempestade ininterrupta, o espírito desassossegado das suas personagens. Em Arena (2009) temos um homem preso em casa que, a certa altura, saído do seu covil, ameaça desfazer em pedaços uma bicicleta, atirando-a do alto do edifício. Ele vai obrigar ainda o miúdo que lhe atazana a paciência a fechar-se no porta-bagagens de um carro. Em Rafa (2012) a mota permite a ligação entre duas paisagens, que cindem estruturalmente o filme em duas partes: por um lado, o tempo repousado, mole e funesto, de um bairro residencial na margem sul; por outro lado, o centro lisboeta que irradia movimento e se abre à confrontação. A mota de Rafa não é bem a mota de Montanha, porque esta é uma obra feita em altitude. Um filme com os pés fora do chão. Por isso, o quadro aperta sobre os rostos, de Rafa e David, quando os dois se põem em fuga em cima da motoreta furtada. Eles podem bem estar a flutuar. O gesto faz lembrar Larry Clark e Gus Van Sant: a adolescência como limbo. Melhor: a adolescência como nuvem. A vida de David, dividida entre a rua e os altos e monumentais edifícios em betão que fazem a paisagem suburbana, tende a essa elevação, íngreme, vertical, totémica na imagem.
Por vezes, a mão do jovem realizador, que aqui se estreia no formato longo, aparece para reivindicar uma assinatura autoral, chocando com essa pretensão de se colar – de se render – aos corpos e às vivências/coabitações.
Vasco Câmara, na entrevista que fez ao realizador, insiste na ideia de que esta paisagem dos Olivais remete para o imaginário do western fordiano. Os Olivais, avança, são o Monument Valley de Salaviza. Que as referências cinéfilas abundam, mas em surdina, no tecido das imagens, isso parece-me evidente. O próprio Salaviza reconhece influências de Akerman, Antonioni e até Wiseman na conversa que teve comigo e restantes editores do À pala de Walsh. Todavia, chega a dizer que mudou o nome da actriz que interpreta a personagem feminina, objecto de fascínio e disputa entre os dois rapazes no filme, para evitar a analogia directa com Ford. Cheyenne Domingues faz de Paulinha em Montanha. Que há qualquer coisa de reserva índia ou de território identitariamente desenraizado no habitat destes adolescentes, isso também é certo e, por aí, é possível a remissão para Ford, em especial, para o seu Cheyenne Autumn (O Grande Combate, 1964). No entanto, Salaviza escala aqui outras montanhas. A grande paisagem que ele encontra não está nos edifícios e ruas dos Olivais, mas no tronco, costas, braços e pernas dos seus actores, enquanto estes “matam o tempo” fazendo nada, isto é, enquanto “matam o tempo” fazendo-o fluir e agarrar-se às coisas, aos gestos, à própria pele, que, subitamente, se transforma numa paisagem por direito próprio. O mais luminoso plano do filme é precisamente um dos que abrem Montanha: um plano médio, que na realidade é um master shot, das costas de David estendido na cama, virado para a escuridão.
Este é, assim, um western de interiores. Portanto, mais hawksiano do que fordiano; mais sobre a concentração (vertical) do tempo do que o espraiamento (horizontal) do espaço. Filme mais fechado do que aberto. Os grandes planos, de pormenor, são – revelam-se como – master shots que apelam a uma monumentalidade esvaziada. É o tempo e o espaço da adolescência. Tempo e espaço abertos à coabitação dos corpos, aos gestos inúteis, langorosos, beijos furtivos, risos estúpidos e olhares tímidos. Trocam-se adereços, sussurram-se confissões, partilham-se segredos. Tudo debaixo do mesmo tecto. Isto é Hawks. Não é Ford. Ao mesmo tempo, há o sonambulismo, a tal flutuação de corpos à deriva. É Hawks, é Romero? Nem tanto. Montanha, um filme de alturas, em altura, não se chega a desprender o suficiente do seu próprio gesto para nos fazer aceder a um retrato universal (político) da adolescência. Todo o filme vive numa tensão – que já existia, mas em regra mais ligeiramente resolvida, nas curtas-metragens de Salaviza – entre o controlo total e a liberdade total. Por vezes, a mão do jovem realizador, que aqui se estreia no formato longo, aparece para reivindicar uma assinatura autoral, chocando com essa pretensão de se colar – de se render – aos corpos e às vivências/coabitações.
Pelo menos dois planos evidenciam esta tentação de excessivo controlo, que se vai detectando ao longo de todo o filme nem que episodicamente. Desde logo, temos a mais vistosa de todas as sequências de Montanha: a panorâmica circular, de 360 graus, sobre a qual Salaviza nos confidenciou ter ido buscar inspiração a La chambre (1972) de Chantal Akerman. A câmara desenha uma coreografia perfeita – leia-se, de timing demasiado exacto – numa cena de intimidade entre David e Paulinha. Há uma distância, um pudor diria, que é belo e, também por isso mesmo, o movimento de câmara é insinuante, mas não há como não sentir essa pulsão formalista, essa vontade em ser vistoso face ao que se desenrola à sua frente, no mundo de onde o filme se propusera não (nos fazer) sair. Outro plano em que sinto por demasiado a mão do realizador – no caso, do guarda-roupa – é aquele em que vemos David contra a fachada do edifício, que tem uma cor próxima à da sua camisola. Há um interessante diálogo entre “a pele e a fachada” ao longo do filme – já desenvolvi esta ideia -, mas aqui, subitamente, há qualquer coisa que se coreografa até ao ponto da auto-promoção. Como se se vendesse mais a “boniteza” do gesto por trás da ideia do que a ideia propriamente dita. Montanha é um filme envolvente, por vezes poderosamente atmosférico e tocante – o “sexo em surdina”, no final, entre Paulinha e David, por exemplo -, mas não escapa ileso à tentação de (quase) todos os estreantes: a de exibir a mão, que impede que chegue a outras alturas um filme íngreme, levitante, que pede menos chão e mais nuvens.