O dia 28 de Dezembro de 1895, data histórica da primeira projecção pública dos irmãos Lumière, que teve lugar no Grand Café do Boulevard des Capucines em Lyon, foi também o dia em que o físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen entregou à editora da sua universidade o artigo “Uma nova espécie de raios”, com o qual revelou ao mundo científico a sua extraordinária descoberta. Esta curiosa simultaneidade entre o nascimento do cinema e a descoberta dos raios-X [Sicard, 1994], longe de ser uma mera coincidência, envolveu também os mesmos protagonistas, interpelando e aproximando âmbitos e saberes que só aparentemente parecem hoje em dia inconciliáveis entre si. Com efeito, foi um dos irmãos Lumière, Auguste, a realizar, no início de 1896 em Lyon, a primeira radiografia [Grimaud, 1983], dedicando-se assiduamente a esta nova forma de fotografia ao ponto de ser nomeado, posteriormente, responsável pelo serviço radiográfico do Hospital Militar instalado no Hotel Dieu durante a primeira guerra mundial [Mérieux em Bouchet, 1987]. De resto, ao longo de muitos anos, a fábrica dos Lumière foi a principal produtora de películas radiográficas em França, demonstrando, mais uma vez, que a invenção do cinematógrafo foi para os irmãos de Lyon uma simples curiosidade, embora o nome destes tivesse ficado na história por esta “invenção sem futuro”
Outra similaridade entre as duas invenções diz respeito à natureza híbrida que as caracteriza, já que ambas pertenciam tanto ao domínio científico quanto aos espectáculos de entretenimento [Gunning, 1995]. No início do seu aparecimento, os raios-X eram a principal atracção da época, reinvocando e inspirando-se nas fantasmagorias da primeira metade do século XIX por meios de vidros e cristais que apareciam fluorescentes sob o efeito dos raios, entusiasmando os espectadores de todo o mundo. Estas exibições tinham uma dupla natureza: ou eram encenações com o objectivo de impressionar o espectador, evocando o mundo do oculto e do sobrenatural, ou tinham a função de divulgar, de um ponto de vista científico, uma invenção que poderia não estar ao alcance do grande público. De qualquer forma, os raios-X suscitaram um enorme interesse, sobretudo por introduzir no campo da ciência uma técnica perturbadora de representação do corpo, que por muitos séculos tinha alimentado a fantasia popular.
Muitas das primeiras crónicas sobre os raios-X descreviam o fenómeno como uma vibração etérea e magnética, em tudo semelhante ao fluido subtil que impregna o universo e que une harmoniosamente todas as coisas, parafraseando Franz Anton Mesmer, pai da teoria do “magnetismo animal”, posteriormente conhecido como mesmerismo [Darnton, 1968; Kaplan, 1974; Winter, 1998]. Esta doutrina, nascida na segunda metade do século XVII em Viena e difundida logo em Paris, além de ter impulsionado o estudo da hipnose (o iniciador dessa técnica, o Marquês de Puységur, descobriu, em 1784, um fenómeno por ele chamado “sonambulismo artificial”, prática essa utilizada com finalidades terapêuticas) [Ellenberger, 1965], estava relacionada com a teoria do “fluido vital”: uma força invisível que sustentava o universo inteiro. Neste sentido, a descoberta de Röntgen parecia confirmar a existência de forças e energias imperceptíveis ao olho humano que, ao longo do século XIX, muitos fotógrafos mesmeristas tentaram registar mediante a infalível e extraordinária sensibilidade das chapas fotográficas. De resto, a fotografia desempenhou um papel fundamental nas tentativas – acrescentaria eu – frustradas de demonstrar objectiva e cientificamente a existência do assim chamado fluido universal. O austríaco Karl Ludwig Freiherr Reichenbach, por exemplo, foi um dos primeiros entre os sucessores de Mesmer a utilizar o meio fotográfico para registar o fluido que, por causa da escassa sensibilidade dos seus olhos, não conseguia ver, realizando entre 1861 e 1862 diversas experiências na Universidade de Berlim. Mas as relações entre fotografia e mesmerismo não se limitaram aos trabalhos de Reichenbach. Ainda nos meados do século XIX, o movimento espiritista começou a usar a fotografia para documentar a existência das manifestações ectoplasmáticas [Grove, 1997]. O primeiro caso documentado está relacionado com o americano William Howard Mumler que, em 1861, declarou ter descoberto a fotografia dos espíritos. Outra personalidade ligada ao mesmerismo e ocultismo foi Jules Bernard Luys, que, entre 1893 e o início do século XX, repropôs a teoria dos fluidos através da autoridade e infalibilidade do registo fotográfico [Chéroux et alii, 2005].
Como podemos reparar, as fronteiras entre a ciência e a arte, o pensamento científico e a crença popular foram sempre subtis, ao ponto de o próprio inventor do tubo utilizado por Röntgen para produzir os raios-X, William Crookes, já anteriormente se ter dedicado ao estudo de um medium e de um espectro, tendo até tirado algumas fotografias como prova. Além disso, quando Röntgen fez a sua descoberta, Crookes era presidente da Society for Psychical Research. Na verdade, este foi o contexto e o imaginário de referência em que os raios-X surgiram. De qualquer forma, os raios-X, tal como o registo foto-cinematográfico, foram sempre percepcionados pelos seus contemporâneos como instrumentos capazes de expandir a visão humana além dos seus limites naturais. Desde o início, os cientistas tentaram integrar os raios-X no cinematógrafo para criar um novo dispositivo que pudesse atravessar a opacidade do corpo para filmar a sua interioridade.
Esta curiosa simultaneidade entre o nascimento do cinema e a descoberta dos raios-X, longe de ser uma mera coincidência, envolveu também os mesmos protagonistas, interpelando e aproximando âmbitos e saberes que só aparentemente parecem hoje em dia inconciliáveis entre si
Entre os pioneiros [Tosi, 2007], para além dos Lumière que já mencionei, não posso deixar de citar Thomas Edison, que ideou e fabricou, em 1896, o fluoroscópio, um aparelho que permitia observar a imagem radiológica em tempo real. O instrumento de Edison, ao contrário da cinematografia dos raios-X, permitia uma visão imediata, como se fosse um binóculo, sem passar pelo processo de gravação e sucessiva projecção da película. Outro percursor da utilização dos raios-X, desta vez no âmbito da fotografia científica, foi Albert Londe, que constituiu o Laboratoire Municipal de Radiographie et de Photographie, ligado ao Hospital da Salpêtrière, contribuindo também a nível teórico com a publicação de um importante manual, o Traité pratique de radiographie et radioscopie, adoptado em inúmeras universidades da época [Bernard, 2005]. No início de 1897, o cientista escocês John Macintyre realizou as primeiras roentgencinematografias através de uma técnica de filmagem “directa”, que consistia em deixar imprimir a película directamente pelos raios-X. Nos primeiros anos do séc. XX, no Instituto Marey, o cientista e médico Joaquin-Léon Carvallo projectou um complexo aparato para a filmagem com raios-X, baseando-se na técnica directa, inventada por Macintyre, e na película especial preparada para o efeito pelos irmãos Lumière. Para ultrapassar as dificuldades ligadas à técnica da roentgencinematografia directa, os cientistas tentaram elaborar também um novo método, dito indirecto, que consistia em filmar a imagem que se formava sobre um ecrã fluorescente accionado pelos raios-X. O primeiro investigador que conseguiu obter imagens definidas no âmbito da roentgencinematografia foi Jean Comandon (1911), contribuindo com as suas filmagens aos raios X ao enriquecimento do catálogo da Pathé Frères. Estas duas tipologias de filmes científicos eram incluídas nas mesmas programações das actualidades científicas, sendo consideradas, por um lado, prodígios científicos, capazes de penetrar e tornar visíveis os processos vitais do corpo, e por outro atrações de espectáculos góticos, semelhantes às visitas à morgue [Schwartz em Charney e Schwartz, 1995].
De facto, os raios-X eram associados à morte, ao ponto de a observação de uma radiografia do próprio corpo provocar a sensação perturbadora de assistir à própria morte. Na realidade, ao contrário das fotografias de raios-X, que funcionavam como uma espécie de fetiche de um instante congelado da morte durante o fluir da vida, as roentgencinematografias evocavam o imaginário mais moderno da fisiologia. De facto, o cinema de raios-X oferecia a possibilidade de ver os movimentos escondidos no interior do corpo e tencionava revelar o pulsar da vida por baixo da carne, entrando na intimidade das pessoas. Neste sentido, as imagens radiológicas encontraram no cinema um aliado ideal, sendo ambos semelhantes no que diz respeito ao poder voyeuristico que os caracteriza. Pensava-se até que os raios- X fossem capazes de ler a mente, ver além das paredes e das roupas. Na época vitoriana, acreditava-se que os raios-X pudessem revelar a natureza das pessoas, o seu verdadeiro carácter. Por exemplo, as mulheres casadas ofereciam aos maridos o retrato radiológico da própria mão com o anel nupcial como verdadeira prova de fieldade conjugal [Cartwright, 1995]. Outros até viam nas radiografias cranianas um meio para substituir as impressões digitais para o reconhecimento dos indivíduos [Tartarini, 2010]. De qualquer forma, as imagens radiológicas eram consideradas um testemunho de uma interioridade mais verdadeira, mais objectiva do que o que o olho poderia ver.
Concluindo, a descoberta de Röntgen fez com que se desmoronassem os limites entre espaço público e privado, interno e externo, ciência e espiritismo, humanos e fantasmas. Portanto, a tecnologia dos raios-X aparece com um aparato mais cultural que cientifico, um dispositivo que impregna o imaginário da época e que encontra no cinematógrafo a sua forma mais perturbadora e divertida. Na verdade, muitos protagonistas do cinema de atrações aludiram aos ou simularam os efeitos dos raios-X, mostrando as transformações dos corpos em esqueletos. Os primeiros filmes com este imaginário foram comédias mágicas como The X-Ray Fiend (1897) de George Smith, em que um homem e uma mulher são de repente transformados em esqueletos por uma máquina de filma com raios-X, ou Les Rayons X (1900) de Georges Méliès [a este propósito, vejam-se do mesmo autor também The Startled Lover (1898) e Le Monstre (1903)], no qual, durante uma exposição às radiações, o esqueleto abandona o corpo de um paciente, para grande surpresa e desorientação do radiologista.
Bibliografia essencial
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Bouchet, Alain (org.). La Médecine à Lyon de l’origine à nos jours. Paris: Editions Hervas, 1987.
Cartwright, Lisa. Screening the Body: Tracing Medicine’s Visual Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995.
Clément Chéroux, et alii. The Perfect Medium. Photography and the Occult. New Haven e Londres: Yale University Press, 2005.
Darnton, Robert. Mesmerism and the End of the Enlightenment in France. Cambridge: Harvard University Press, 1968.
Elsaesser, Thomas. Early Cinema: Space, Frame, Narrative. Londres: British Film Institute, 1990.
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Grove, Allen W. “Rontgen’s Ghosts: Photography, X-Rays, and the Victorian Imagination.” Literature ans Medicine, Vol. 16, 2, outono 1997, 141-173.
Gunning, Tom. “Phantom Images and Modern Manifestations. Spirit Photography, Magic Theater, Trick Films, and Photography’s Uncanny.” Patrice Petro (org.). Fugitive Images. From Photography to Video. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1995.
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Knight, Nancy. “The New Light: X-Rays and Medical Futurism.” Imagining tomorrow: History, technology, and the American future. Joseph J. Corn (org.). Cambridge: MIT Press, 1986.
Natale, Simone. “Le spettacolari origini di cinema e radiografia.” Mondo Niovo 18/24 ft/s, 2, 2006, 55-62.
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Schwartz, Vanessa R. “Cinematic Spectatorship before the Apparatus: The Public Taste for Reality in Fin-de-Siècle Paris.” Leo Charney e Vanessa R. Schwartz (orgs.). Cinema and the Invention of Modern Life. Berkeley: University of California Press, 1995.
Sicard, Monique. L’année 1895. L’image écartelée entre voir et savoir. Paris: Synthélabo, 1994.
Tartarini, Chiara. Anatomie fantastiche. Indagini sui rapporti tra il cinema, le arti visive e l’iconografia medica. Bolonha: Clueb, 2010.
Tosi, Virgilio. Il cinema prima del cinema. Milão: Il Castoro, 2007.
Winter, Alison. Mesmerized: Powers of Mind in Victorian England. Chicago: University of Chicago Press, 1998.