Que realizador se esconde por de trás da obra de David Gordon Green? Esta é uma pergunta que a cada novo filme do realizador norte-americano se torna cada vez mais difícil de responder. Primeiro começou com os filmes transidos (e transados) de Malick, Korine e Burnett [George Washington (2000), All the Real Girls (2003) e Undertow (Contra-Corrente, 2004)], depois vieram as comédias da trupe de Jonah Hill e James Franco [Pineapple Express (Alta Pedrada, 2008), Your Highness (Real Desatino, 2011) e The Sitter (A Desbunda, 2011)]. E depois dessas os pequenos retratos de homens solitários e idiossincráticos na ‘Real’ America [Prince Avalanche (2013), Joe (2013) e Manglehorn (O Senhor Manglehorn, 2014)]. As sucessivas curvas e contra-curvas que a sua obra parecem evidenciar tanto um lado de tarefeiro que sabe fazer o filme que o estúdio ordena e sabe construir o filme em redor da estrela que o protagoniza, como ao mesmo tempo demonstra um lado copista que constantemente sabe ver e fazer cinema “à moda de”. O que Our Brand is Crisis (Profissionais da Crise, 2015) parece demonstrar é exactamente a consciência desse trabalho da constante citação.
A começar, Our Brand is Crisis é um spun-off (que é como quem diz uma continuação num formato diferente) de um documentário com o mesmo nome realizado por Rachel Boynton em 2005 sobre um grupo de consultores políticos que ajudaram Gonzalo Sáchez de Lozada a vencer a corrida presidencial na Bolívia em 2002. Assim este filme de Gordon Green engrossa a cada vez mais repleta lista de ficções americanas resultantes de documentários de sucesso. Mas inevitavelmente há uma dose de, pelo menos, homenagem a Power (As Chaves do Poder, 1986) de Sidney Lumet onde também um consultor político dá uma perninha numa campanha presidencial da América do Sul. Mas se se sente um ar do cinema liberal americano dos 1970’s e 1980’s certo é também que o “romance” entre Sandra Bullock e Billy Bob Thorton tem o seu quê de “Katharine Hepburn and Spencer Tracy romance“. E aqui entra o tom leve da comédia (por vezes screwball), certamente injectado pela própria Bullock que produz o filme (e para a qual o papel de protagonista foi escrito, mudando o sexo do protagonista do documentário de 2005), convertendo-o num veículo para a sua figura pública – daí a escabrosa sequência final que inverte o cinismo do seu personagem fazendo de Calamity Jane uma generosa activista pela democracia na América do Sul.
O constante jogo das citações no filme que colocam ao mesmos nível a alta e a baixa cultura, ao ponto de fazer confundir o filósofo com o propagandista é reflexo do próprio trabalho de Gordon Green enquanto realizador de colagens e cópias.
Mas referia a questão da citação. O argumento de Peter Straughan está repleto de citações, as quais a personagem de Bullock profere sem parar, num frankenstein discursivo por entre o qual dificilmente se descobre o seu próprio pensar. Ela tanto descreve a estratégia política através de citações d’A Arte da Guerra de Sun Tzu – “If your opponent is of choleric temper, seek to irritate him. Pretend to be weak, that he may grow arrogant” – como logo depois cita Muhammad Ali sobre o mesmo tema, profere discursos inspiradores recorrendo a Bruce Lee, Warren Beatty e Dolly Parton como cita apocrifamente Mark Twain – “If voting changed anything, they’d make it illegal”. Ao ponto de no momento chave do filme, aquando do debate final entre os três candidatos da frente, Bullock consegue influenciar o candidato da frente a citar Joseph Goebbels como se fosse o Fausto de Goethe – “It may be alright to have a power that is based on guns; however, it is better and more gratifying to win the heart of a nation and keep it.” O constante jogo das citações no filme que colocam ao mesmos nível a alta e a baixa cultura, ao ponto de fazer confundir o filósofo com o propagandista é simultaneamente um reflexo do exercício do tão badalado spinning político, como um reflexo do próprio trabalho de Gordon Green enquanto realizador de colagens e cópias [trabalho esse que não se via deste modo desde… João César Monteiro? – relembre-se por exemplo a citação à famosa cena do café The Big Heat (Corrupção, 1953) em Pineapple Express].
No entanto aquilo que torna relevante Our Brand is Crisis neste momento, pelo menos para o público nacional, são outros reflexos, aqueles nos quais os portugueses se revêem na sua situação política. A começar pela construção da “narrativa da crise” que inverte as prioridades do eleitorado de um candidato que promete esperança para um que garante segurança face ao descalabro, a certa altura um dos consultores diz mesmo “Sometimes a leader has to do what’s right for their country, whether the people want it or not” e não é preciso muito esforço para ouvir esta frase com a voz do nosso actual (ainda que temporariamente) primeiro-ministro. Mais ainda, o presidente da crise é interpretado, nem mais nem menos, por Joaquim de Almeida [que já tinha historial de presidências fílmicas na América do Sul em Che (2008)] e a sua primeira medida quando toma o poder é chamar o FMI. Foi preciso arranjar um actor português para melhor encarar a figura do mártir da finanças públicas. De porposito ou não, Our Brand is Crisis é capaz de nos dizer mais a nós do que a qualquer outra parte do mundo.