O termo meta-ficção foi introduzido em 1970 pot William H. Gass como forma de descrever a ficção americana dos anos 1960 que então ocupava territórios experimentais muito distintos dos realismo literário dominante no pós-guerra – território esse povoado à época por escritores como John Barth, Donald Barthelme, Raymond Federman ou Ronald Sukenick. Não demorou muito a que as formas explícitas das suas narrativas se virassem para o cinema e pouco passou até se cunhasse a expressão meta-narrativa para descrever as estruturas em que assentavam esses filmes. Por ignorância não sei bem estabelecer o paralelo entre a meta-ficção americana e o nosso conhecido Nouveau roman, mas diz-me a Wikipédia que o segundo termo foi cunhado em 1957 por Émile Henriot num artigo do Le monde. O que me parece importante para o caso de Cosmos (2015) – o regresso de Andrzej Żuławski 15 anos depois da sua última longa metragem – é usar exactamente as formas disruptivas da literatura (e por sua vez do cinema) como ponto de vista privilegiado para olhar o filme.
Não se pode deixar de olhar a meta-ficção como uma último espasmo de uma ideia de destino que era transversal às artes modernas, de que tudo caminhava para o abstracto – daí a muito citada boutade de Walter Pater de que “All art constantly aspires towards the condition of music”. Assim, a concretização máxima da literatura passava inevitavelmente por fazer ruir a estrutura, assim como no cinema Resnais e Robbe-Grillet fizeram por deitar abaixo a gramática da montagem transparente, da leitura linear, do supremacia do story. Tudo isso faliu, Resnais virou-se para os comics e Robbe-Grillet continuou sozinho e deixou pouca descendência. Por tudo isto há um misto de surpresa e nostalgia (uma combinação rara) neste regresso de Żuławski, adaptando o romance homónimo (e meta-ficcional) de Witold Gombrowicz, escrito em 1965 – anacronia essa que trespassa todo filme das mais variadas formas.
Aquilo que mais me fascina em Cosmos é a forma como Andrzej Żuławski é capaz de retirar a força simbólica de todas as imagens que constrói através do excesso.
Não tendo lido o romance do escritor polaco posso apenas transmitir aquilo que é a opinião geral: em vez de adaptar fielmente o tumultuosos romance Żuławski, optou por uma reprodução das premissas da escrita nos seus “jogos epistemológicos” através de uma torrente de imagens e sons que se prolonga por uma hora e meia de alucinante e extenuante de puro fluir; os actores constantemente gritam as suas linhas de diálogo e os seus pensamentos, todos estão esgazeados, com falta de ar, irrequietos; a câmara não repousa um instante sempre em imparáveis movimentos de câmara, planos curtíssimos, imagens cheias de carga emocional; a narrativa é semelhante aos policiais de Robbe-Grillet, um par de rapazes alojados numa estalagem teimam em descobrir pistas de uma conspiração assassina, pistas essas que variam entre pássaros enforcados, manchas de bolor insidiosas, ancinhos dispostos de forma suspeita; as anacronias introduzidas pelo realizador passam pela presença de um computador portátil infestado de letras garrafais, jaguares e uma séries de referências (pós-modernas, o que no fundo é a forma de actualizar o romance e simultaneamente a compreensão de que todo o “sonho do destino da arte” se tornou em simples mastigação) a Tolstoy, Sartre, Ophüls (o pai…), Pasolini e Star Wars.
Mas aquilo que mais me fascina em Cosmos é a forma como Andrzej Żuławski é capaz de retirar a força simbólica de todas as imagens que constrói através desse excesso: um pássaro enforcado não é mais que isso, uma mão coberta de sal, uma lesma a cavalo de um croissant, tudo é apenas o que é. Essa pureza anti-interpretativa é uma força que raramente se encontra no cinema. Por isso escolher um fragmento do filme é uma tarefa que em nada ajuda a percebê-lo, nenhum plano o sumariza, nenhum momento reflecte sobre si próprio ou sobre o todo e, no entanto, escolho um: todos os personagens andam perdidos pela floresta de Sintra à noite, um deles mostra um ovo na sua mão e afirma “tanto tenho este ovo como logo depois o deixo de ter”, apertando a mão e esborrachando em ranho o dito. O gérmen narrativo desfaz-se em nada, não há princípio porque nada ainda terminou. O incompossível ganha forma e tudo termina como n’O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam de Borges: ele fica e não fica com ela, um drama e uma comédia, um fim que não cessa.
Na cobertura da Art Forum do festival de Locarno em que o filme se estreou mundialmente chamaram-lhe “annoying masterpiece“, de facto é impossível assistir a Cosmos com prazer. É um filme-experiência que não tem qualquer interesse em convidar o espectador a gostar dele, é tanto excessivo como farçolas, poético como disparatado, solene como estapafúrdio – e é exactamente esse desprendimento de quem não tem que provar nada a ninguém que o enche de graça.