Laurie Anderson, artista plástica, performer e filósofa. Ou: Laurie Anderson, a dona de Lolabelle. A partir do laço sentimental que liga a mulher à sua cadela, a narradora de Heart of a Dog (Coração de Cão, 2015) acede a uma série de grandes questões na (sua) vida, entre elas: a relação com a perda, com o amor e com as transformações do mundo. O empreendimento é ambicioso, mas o registo procura não sair do mais sussurrante “eu”. Um “eu” que navega num mar de ideias – ideias que carregam emoções, algumas ainda à flor da pele – que fazem alternar este filme textural, de colagem, com um ensaio metafísico sobre todas as nossas grandes dúvidas existenciais.
Como num ensaio escrito, Laurie Anderson cita os seus mestres. O mais mencionado será o seu mentor budista, qual “personal trainer da alma”. A partir dessa convocação a artista “encena” algumas passagens do Livro dos Mortos, especulando sobre os caminhos que Lolabelle percorre no além-vida. Ao mesmo tempo que Anderson procura aceder aos mistérios da vida vis-à-vis aos mistérios da morte, cita Wittgenstein para falar de como o nosso mundo é feito – e limitado – pela nossa linguagem. Aqui o filósofo racionalista, da lógica, é conduzido a essa mesma ambição de tocar o cosmos. “Todas as histórias de amor são histórias de fantasmas”. Aqui – leia-se, por aqui, no encalço destas palavras de David Foster Wallace – Anderson volta a convidar o espectador a mergulhar na reflexão de que não só somos quem amamos como inexoravelmente somos, e seremos sempre, com quem amamos.
Heart of a Dog parece-se demasiado com um produto simples (um “produto ponto”), que “vende” uma Laurie Anderson que muito gostava que nós amássemos o mundo com(o) ela
Na sua dança de coração e logos, Laurie envolve vários fantasmas: o da cadela, claro, mas também o da sua mãe – que confessa não ter sabido amar quando a viu pela última vez, no leito da morte – e, mais secreta e invisivelmente, o de Lou Reed, seu companheiro desde o início dos anos 90 até ao seu falecimento em 2013, que merece dedicatória no final do filme. Heart of a Dog é Laurie Anderson lendo e dando a ler uma cadeia de “imagens de pensamento” despertada pelo confronto do íntimo com as recordações do passado e os anseios ou inseguranças que o futuro projecta (a morte, acima de todos). Tudo é um pretexto para falar do “eu”. Tudo é um pretexto para falar do “nós”. O mundo está contido, em sinopse, no coração de cão de Laurie Anderson.
Falei em ambição. Mas como pode um filme tão secreto, sussurrado, ser “ambicioso”? Talvez esteja nesta palavra o principal defeito de Heart of a Dog. Anderson acaba por fazer agarrar ao seu exercício auto-revelatório – a um acto corajoso de desnudamento interior – uma espécie de pequena missa New Age sobre “como encarar os desígnios que o destino nos reserva”. Isto é mais evidente na forma como Anderson produz sempre um twist luminoso e light-hearted nas suas memórias pessoais, anexando a estas a sua filosofia de vida, qual mais-elaborado-que-a-norma “manual de auto-ajuda”. Ou: versão gentrificada dos cine-diários de Brakhage ou Mekas, sem a riqueza de linguagem que caracteriza o cinema destas duas figuras de proa do New American Cinema.
O material de base é pobre (imagens caseiras, algo indistintas, de Laurie Anderson com planos fugidios feitos de propósito para o filme, todos eles trabalhados plasticamente), mas o texto tem momentos luminosos, sobretudo quando se deixa penetrar por todos os fantasmas que já referi. Ainda assim, no fim, fico com a sensação de que este é um produto… o leitor espera por um adjectivo: um produto? Que tipo de produto? Bem, o problema é esse: Heart of a Dog parece-se demasiado com um produto simples (um “produto ponto”), que “vende” uma Laurie Anderson que muito gostava que nós amássemos o mundo com(o) ela. E o “eu” torna-se, assim, num espaço publicitário para uma, comprovadamente bem sucedida, filosofia de vida. Resta-nos o vislumbre dos seus fantasmas. Sobretudo aquele que vemos pouco, mas ouvimos tanto quando, justamente, o devemos ouvir: no fim.