Um melodrama muito esquecido do estúdio Shaw Brothers, Hou men (Rear Entrance, 1960) é como uma obra de limbo, entre uma China de outrora e uma de diáspora presente, e com uma sensibilidade transnacional no seu retrato familiar. Há ecos de um brilhante passado cinematográfico – a começar pela protagonista, uma das grandes estrelas do cinema chinês dos anos 1920 e 1930, Hu Die – e a realidade de uma segurança e prosperidade do presente, mas onde se descortinam uma grande incerteza e até alguma tristeza conformada de exílio.
Hou men abre com um plano do enorme relógio da torre da estação de comboios de Kowloon, em Tsim Sha Tsui (o edifício já não existe mas a torre permanece um marco arquitectónico de Hong Kong). A imagem talvez remeta para recordações cinéfilas cómicas, mas será uma atmosfera mais melodramática que se irá consolidar durante o filme, com as suas ideia de limitações do tempo (de juventude, etc.).
No centro de Hou men estão os Tsui (ou Xu, se tivermos em atenção o original em mandarim e não as legendas em inglês), casal de classe média e sem filhos. Embora o marido (o actor e realizador Wang Yin) seja o narrador, o protagonismo é dividido entre ele, a mulher – interpretada pela icónica Hu Die (mais sobre ela adiante) – e uma menina que irão tentar adoptar, Ah Ling (Wong Oi-ming). Outras personagens secundárias têm papéis de alguma importância para a narrativa embora uma das figuras mais relevantes seja um gato que tem neste filme o mesmo efeito de desviar atenções que um outro felino teve no cinema recente – falamos de A Girl Walks Alone Home at Night (de Ana Lily Amirpour, 2014).
Quase todas as divisões do “lar” são filmadas com uma miríade de enquadramentos. Há uma atenção extrema aos pormenores, do guarda-roupa aos décors
O estúdio Shaw Brothers é mais conhecido na Europa por épicos de artes marciais, mas Hou men pertence a um género a que a produtora também se dedicou na sua época de ouro: o melodrama. Hou men é de tal forma um drama doméstico que, pelo menos até à segunda metade do filme, raríssima é a cena que não se passe no interior da residência do casal protagonista. Quase todas as divisões do “lar” são filmadas com uma miríade de enquadramentos. Há uma atenção extrema aos pormenores, do guarda-roupa aos décors – o que é característico da obra do realizador Li Han-hsiang, famoso sobretudo por grandes dramas históricos –, nomeadamente das peças de mobiliário, escadas e janelas. Ali descortina-se facilmente uma combinação de elementos chineses com outros, de inspiração “ocidental”, uma combinação bem típica do cinema chinês de Xangai de que melodramas como este são descendentes, como da (então) colónia britânica de Hong Kong. E claro, o próprio título do filme evoca a “porta das traseiras” que dá para o pátio partilhado, uma versão de tradicionais espaços arquitectónicos de algumas cidades chinesas onde a vida dos vizinhos e familiares era feita em conjunto. A porta das traseiras é o espaço por excelência dos criados – figuras secundárias de inegável importância – e é aí que decorrem os primeiros encontros entre Ah Ling e o casal Tsui.
Hou men centra-se numa família e nada mais interessa ao filme que os seus problemas quotidianos, ou antes, o drama fulcral que é o da adopção ou não de Ah Ling, personagem que liga as acções de todas as outras (inclusive do gato!). Embora o filme tenha algumas cenas mais descontraídas – incluindo uma (quando a mãe biológica de Ah Ling aparece) que, embora de grande tensão, é aligeirada pela presença algo cómica de uma dupla de controladores de pragas (!) – há uma melancolia permanente e irresolúvel.
Hou men, premiado no Asian Film Festival em Tóquio, é um exemplo particularmente bem sucedido do cinema em mandarim de Hong Kong no pós-Segunda Guerra Mundial. A guerra civil chinesa na segunda metade dos anos 1940 levou a que muitos dos profissionais de cinema de Xangai se mudassem para Hong Kong (algo que já havia sucedido durante a guerra sino-japonesa). Entre eles conta-se Hu Die, também conhecida por Butterfly Wu, uma das maiores estrelas nos anos 1920 e 1930 (chegou a ser eleita a “Rainha do Cinema Chinês” numa votação promovida por uma revista) e cuja vida daria boa matéria para um filme: por exemplo, foi uma das poucas actrizes chinesas da época a fazer uma tour pela Europa e, segundo alguns, terá sido amante do chefe da polícia secreta de Chiang Kai-shek.
Após alguns anos de ausência do grande-ecrã, Hou men marcou um regresso de Hu Die aos papéis principais, e não surpreende que o filme seja pontuado por grandes planos que tentam tirar partido de como exprime emoções fortes. No entanto, nota-se a passagem do tempo em Hu. A actriz, na altura com mais de 50 anos, surge quase como uma miragem da jovem que um dia deixara rendido o público chinês. Hu corporiza essa evocação de uma China então perdida, que está latente ao longo de todo o filme. Contudo, a sua recordação não exclui a possibilidade de um presente e futuro que têm lugar no espaço de Hong Kong ou além dele (veja-se a cena no aeroporto no final). Hou men pode, assim, ser visto como um interessante filme de exílio, sem que essa questão seja uma só vez abordada abertamente.
Se a câmara por vezes ousa olhar o mundo exterior, com bonitos travellings sobre a paisagem urbana de Hong Kong, onde montanhas rodeiam prédios e pequenos bairros como o da casa dos Tsui ainda mantêm uma aparência de vida em comunidade, o filme decorre, na maior parte do tempo, dentro de portas, onde a estabilidade e conforto burguês do casal protagonista (ele escritor, ela professora de piano num infantário) é continuamente confrontado com a solidão de não terem filhos. Ah Ling vem preencher esse vazio, mas apenas momentaneamente.
Hou men engloba tantas figuras interessantes que a opção de nunca se afastar do drama central dos protagonistas deixa a sensação de possibilidades desperdiçadas. É fácil imaginar como se poderia alongar o filme maior ou, por que não, fazer dele uma novela. O retrato de diferentes experiencias é também o da cidade que habitam, onde se cruzam sacrifícios e esperanças, enganos e segundas oportunidades, partidas e encontros. Isto é visível nos pais biológicos de Ah Ling, um mulherengo incorrigível e uma jovem que vai no segundo divórcio e trabalha como dançarina num clube para se sustentar, ou no primo dos Tsui que vem de estudar em Inglaterra. Há sempre a tentação de cair no do moralismo, mas ela não triunfa no final ambíguo (nem triste nem feliz, e propenso a diferentes leituras).
Ver Hou men hoje permite ligar este ignorado melodrama a uma série de dramas familiares seus contemporâneos e posteriores, quer em Hong Kong, quer em Taiwan, quer também noutros países asiáticos (sobretudo o Japão) – com os quais tem curiosos pontos em comum. Permite ainda reflectir no que separa este filme do que era produzido na China continental na mesma altura, e o que o une aos populares melodramas que ali são produzidos actualmente. Acima de tudo, Hou men é um exemplo curioso, pela sua imensa contenção, de uma certa modernidade chinesa recriada e revivida no cinema por uma enorme diáspora que ficou associada ao cinema do estúdio Shaw Brothers.