Objecto nostálgico por excelência. Toca músicas antigas, algumas delas esquecidas. Sempre em troca de uma moeda. A contrapartida do pagamento é a música que invade o espaço enquanto ela permanece, luminosa e elegante, a um canto, a observar quem consegue pôr a mexer. Uma fazedora de movimentos langorosos, a jukebox é máquina de música e máquina de cinema. Em honra aos bons velhos tempos, vamos ligá-la outra vez!
Chove torrencialmente. E é bom que chova assim. Esqueçamos Big Trouble (A Grande Burla, 1986). Provavelmente, Love Streams (Amantes, 1984) foi feito, muito prescientemente, para fazer esquecer esse filme irrelevante. Não tem nada que enganar: este é mesmo o último filme de John Cassavetes. Tratado sobre a decadência – a morte mesmo, como chega o próprio a pronunciar – do amor. Melhor: o seu estado de irreversível podridão. No plano terminal – é mais terminal do que final, de facto -, o fluxo é contínuo, ou melhor, os fluxos são contínuos: o vertical (a chuva incessante), o horizontal (a corrente que liga irmão a irmã, Cassavetes a Rowlands no filme) e o que está por todo o lado (a música que passa na jukebox). Esse plano desenha, num push in apressado, quase convulso, uma aproximação tímida à “última imagem” que Cassavetes nos quer dar de si e do seu cinema: “o homem” bebe sozinho ao som da sua jukebox. Pega no chapéu de palha ridículo para se despedir não tanto da sua irmã no filme, mas mais do espectador e do seu mundo para lá dele: “So I’ll leave it up to you”, diz a música na jukebox. Durante Love Streams, Robert Harmon, o escritor financeiramente abonado interpretado por Cassavetes, está sempre vestido com um impecável smoking. Para que festa vai ele? Nenhuma. A pergunta deve ser outra: de quem é o funeral? É dele, Harmon, e é dele, Cassavetes. O caixão é a jukebox, a caixa que canta palavras de despedida. Este quadro de morte, depois do quadro de podridão, só chegou ao meu espírito de forma absolutamente clara há dias quando apanhei, no rodapé de um livro sobre fotografia, esta observação de Jack Kerouac sobre o famoso photo book de Robert Frank The Americans: “Depois de vermos essas imagens acaba por não se saber o que é mais triste, se uma jukebox se um caixão”. Estas palavras são, simultaneamente, a melhor crítica possível a Love Streams e, em particular, a esse plano terminal, que, assim, o contém.
Luís Mendonça
Revela-se um exercício muito ingrato ter de escolher apenas um plano, se o cinema de Aki Kaurismäki se presta a tantas e expressivas oportunidades de encontrar uma jukebox em plena orgânica de encenação. Não será um objeto que apenas actua como figura, mas sim um elemento de escrita. Lembremos Hamlet liikemaailmassa (Hamlet Vai à Luta, 1987) ou Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990) onde, por exemplo nesse último, Kati Outinen – a actriz de Kaurismaki que vemos também neste plano – surge um par de vezes acompanhada de uma jukebox, a fazer um luto pessoal, estático, através da música (Tchaikovsky) que provém da máquina. Aliás, dir-se-ia mesmo que música e cigarros são duas marcas bastante notórias e repetitivas… “Vamos sentar-nos no sofá e ouvir um pouco de música?”, pergunta um homem a uma mulher, como se o propósito fosse o de vermos o contraste entre a sua camisa amarela e o sofá vermelho. No entanto, ao enfrentarmos este plano de Mies vailla menneisyyttä (O Homem Sem Passado, 2002), é quase impossível não compreender imediatamente a tomada de posse visual da jukebox: ela opera na composição do quadro romântico (sim, Kaurismäki tem aqui as suas formas de romantismo bem activas), e a música, efectivamente, traduz-se numa força totalizante da própria cena, erradicando a necessidade de diálogo. A música é, assim, a única coisa que acontece e que estimula outra ocorrência: a posterior aproximação dos rostos. O que este plano guarda é ainda uma postura fotográfica, de antecipação ao gesto humano, onde a jukebox se insinua como fonte de alimentação. É dela que emana a luz e o som que não ouvimos – ou se calhar ouvimos.
Inês Lourenço
Por vezes certos aparelhos electrónicos, em especial aqueles que acolhemos em nossas casas, recusam-se a colaborar e em consequência são admoestados pelos seus donos com umas valentes pancadas correctivas que não raras vezes resultam na retoma do seu natural funcionamento: é assim com a televisão que insiste em deixar escapar uma imagem ou com a torradeira que quer guardar no seu quente seio o pedaço de pão que lhe emprestámos. Por vezes é o contrário que sucede e o electrodoméstico insiste em operar quando as circunstâncias assim não o desejam, o rádio que solta a sua chinfrineira quando não é chamado, o candeeiro que regressa à luz sem que ninguém lho peça. As jukeboxes não estão presentes em muitos lares nacionais, mas através do cinema sabemos como elas funcionam, por vezes é preciso uma pancada, doutras o seu trinado chega nos momentos mais inapropriados. É assim em Shaun of the Dead (Zombie Party – Uma Noite… de Morte, 2004) de Edgar Wright – o primeiro tomo daquela que se tornaria a trilogia dos cornetos – em que um grupo de sobreviventes de um apocalipse zombie vê o seu esconderijo descoberto pelo funcionamento automático do terrível aparelho que canta provocadoramente Don’t Stop Me Now (ao que Simon Pegg exclama, com o seu sotaque britânico, “Kill the Queen!). Daí em diante entramos num número musical (com luzes a acender e a apagar) pontuado pelas cronometradas marretadas na fuça de um idoso-morto-vivo, fuça essa que despenhará de frente na tal maldita geringonça, terminando a infernal musiqueta. TV killed the radio star ganha aqui contornos literais, já que todos sabemos que o resultado de uma prolongada exposição às tardes de fim-de-semana da televisão nacional é a morte cerebral, brain dead.
Ricardo Vieira Lisboa
The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) é filme de uma coralidade imensa e no qual a música utilizada – a country e o folk americanos – serve de comentário permanente às cenas, umas vezes de forma explícita, outras de forma mais subtil. Ouvimos, por exemplo, “Cold, Cold Heart”, de Hank Williams, perfeitamente em linha com os corações dos homens e mulheres, velhos e novos, que habitam o filme de Bogdanovich, todos carentes e solitários, desesperadamente desejosos de uma chama que os aqueça mas já quase sem esperança (mesmo os corações dos mais jovens, como o de Sonny, numa contradição tão melancólica quanto todo o filme). “Cold”, também, porque, lá fora, o frio é muito, o vento não pára de assobiar e o calor da lareira não chega, é preciso outro tipo de calor (ou de fogo). O plano acima pertence a uma cena em que duas dessas lost souls se encontram e deixam, por uns instantes, de estar tão sozinhos, porque é irredutivelmente na comunicação, da mais profunda à mais corriqueira, que nos sentimos próximos uns dos outros, logo mais quentes, mais aconchegados. Enquanto come o prato que Genevieve lhe preparou, Sonny olha-a de alto a baixo (e… “mastiga-a” de alto a baixo), cheio de desejo (pelo seu corpo e pelo mito da “mulher mais velha” que ela carrega), e ela, com gosto, apercebendo-se disso mesmo, “apanha-o” olhando-o diretamente nos olhos (os olhos envergonhados de Sonny que fogem para a jukebox no plano acima), como quem diz “Hey Good Lookin’”, o título da música do mesmo Hank Williams que a jukebox insinua no ar. “(…) what ya got cookin’? / How’s about cooking somethin’ up with me?”, poderia ser a resposta musical-gastronómica de Sonny.
Francisco Noronha