Uma das muitas coisas que Jules et Jim (1962) nos conta é que Une vie (Uma vida, 1958) é certamente um dos filmes preferidos de Truffaut (mentira, não faço ideia). Alexandre Astruc, realizador e crítico, pai da nouvelle vague e poeta do caméra-stylo, é responsável por uma das melhores surpresas da minha curta vida, que espero que não acabe daqui a pouco, já que vos escrevo de um Boeing 737 rumo a Roma. Quase tão trágico como o meu medo de andar de avião é este voo sobre uma vida desperdiçada com um amor nefasto. É incrível o estado de subnutrição a que um amor pode chegar sem querer morrer, ainda que desde o primeiro instante tenha sido alimentado com gestos de nada. Na (fascinante) abertura do filme Jeanne corre pelas dunas em direcção ao mar enquanto Rosalie a segue, a gritar, numa exasperada preocupação com tal obstinação infantil. O quadro é, sem dúvida, alegre, apesar de melancólico, mas pende sobre ele um prumo de lâmina afiada que anuncia a tragédia. Fica decidido que será sobre o o mar que a mesma acontecerá. O vento, omnipresente Coro e mensageiro da tristeza, assobia desde o primeiro plano, marcando presença. Avisar-nos-á sobre o terrível amor de Jeanne e Julien. Adoptamo-lo de imediato, qual adamastor que comanda e abre a porta às turbulências (estou a tentar focar-me no texto e não no sinal dos cintos que se acende) da acção. Acostumamo-nos a ele como nos acostumamos aos desalentos da vida, para os quais preferimos estar preparados do que ser apanhados de surpresa. Assim nos acompanha este general, que avisa carinhosamente quando é hora de levantar o escudo e montar guarda de espada na mão e olhos postos no horizonte. Assim está Jeanne, em vigília à cama da moribunda mãe – aqui o general entra de rompante, sugerindo mais do que a anunciada morte. O metal já não é reluzente mas sobreviverá às batalhas.
Sobrevoamos atentamente este cinema: a grave melancolia de Sirk sem o espectacular, uma tristeza que não se banha em lágrimas mas respira em silêncio. Os tons de Minnelli que aqui exercem sobre nós um efeito semelhante ao do álcool. O feitiço divide – se carregarmos no pause para devorar um plano e as cores o tempo suficiente para as gravar na memória, corremos o risco de sair do colo que nos raptou. Não fossem estas sublimes cores, planos e movimentos de câmara, talvez estivesse perdida a esperança na morte de Julien, na expectativa de que Jeanne seja ainda jovem o suficiente para encontrar uma cura. A força do filme (fora o vento, verdadeiro herói e de longe a personagem favorita) está na malevolência das cenas. Não é que Jeanne não desperte compaixão na sua miséria mas há na maldade uma qualidade deadpan, um desprezo total pela moral em si que transtorna e hipnotiza. É o embrião da nouvelle vague, algo que não tinha despertado no cinema ainda. Há uma qualidade especial neste sofrimento que, apesar de atroz, é vivido como opção mais do que resignação. Uma qualidade heróica que permite aos intervenientes escolher o mal em vez do bem sem nenhum tipo de justificação, da qual não sentimos falta. E é fascinante assistir ao seu nascimento pois, repetido que tenha sido este mecanismo, aqui é primordial, irrepetível. Neste estado puro não voltaremos a vê-lo.
Guy de Maupassant doou não só estes como outros corações partidos ao cinema, em inúmeras adaptações literárias. Os que protagonizam este filme são-nos atirados já com enormes fendas, como o do execrável douchebag Julien, que parece cantar em desespero – Sometimes I Wish We Were an Eagle – a Jeanne, carregando o peso de quem viajou com um íman às costas desde o centro da terra. Façamos então um levantamento: pais que deixam a casa que sempre habitaram sabendo que irão regressar à mesma para morrer e que neste interregno a filha não viverá naquele local nada senão dor. Mulher que se submete a torturas emocionais sem uma explicação para o amor que parece não ter raízes para tamanha dedicação (blasfémia!) sustentar. Homem destruído por um terramoto que não conhecemos – cujo semblante é a única prova – e que é uma raiz malévola, apodrecendo a vida à sua volta. Aia fiel que sucumbe à traição por nunca lhe ter sido apresentado um escudo ou uma espada, colocando-se voluntariamente a poucos metros do precipício. Crianças que crescem na presença de um desastre que talvez não tenham ainda tido tempo de reter na memória – assim esperamos, esquecendo-nos de que estamos apenas (blasfémia!) a olhar para um ecrã. Mulher forte e determinada que se deixa morrer por um punhado de abraços.
Como provar que este é um dos mais importantes filmes jamais feitos, precursor de um cinema que mudou o mundo. Que a tristeza não demova as almas mais sensíveis de descobrir Une vie, pois quem não souber viver com a mesma não merece transitar para outro estado. No voo sobre o último embate, fecha-se o ciclo de violentas repetições que não caíram no risco de maçadores padrões dramáticos. Jeanne corre de novo em direcção ao mar, que contempla o duplo homicídio com a calma de quem soube esperar por um desfecho que trouxesse paz a quem a merecia.
Outra dádiva (talvez não maior do que a das cores) que me trouxe este filme: a certeza de que será sempre possível fazer descobertas. Nunca tinha visto um filme de Alexandre Astruc. Entretanto ouço a voz vinda da cabine – informa simpaticamente que vamos aterrar. E eu agradeço a Astruc, porque, pela primeira vez na vida, consegui aproveitar um voo. Este feito está para mim como Une vie está para cinema, nunca se viu nada assim. Infelizmente, Astruc não filma regularmente desde os anos 80.
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