Esta entrevista aconteceu no dia 16 de Abril deste ano no Porto, à volta de uma das mesas do magnífico Café Guarany. Foi motivada pela minha investigação de doutoramento que durou cinco anos e que se encontra, neste momento, na sua fase final. A culminação deste trabalho foi a vinda de Michael Rogosin – e da sua filha, Céleste Rogosin, jovem realizadora que, assim, segue os caminhos do avô – ao Porto e, agora, entre os dias 9 e 10 deste mês, a Lisboa para apresentar dois dos filmes mais importantes de Lionel Rogosin mais um documentário que o próprio Michael realizou acerca da produção de On the Bowery (No Bowery, 1956): The Perfect Time: The Making of ‘On the Bowery’ (A Equipa Perfeita, 2009). Quando inicialmente entrei em contacto com o Michael estava muito longe de adivinhar que seria tão imediata e eficaz a possibilidade de trazer os magníficos filmes – e as fotografias inéditas – do pai a Portugal e a tão valiosos lugares: Porto/Post/Doc e Cinemateca Portuguesa. A entrevista que publico abaixo é um excerto da conversa longa que tivemos, eu, Michael Rogosin e a sua mulher, Pascale Rivault, em torno desta figura maior do cinema, que carece de uma maior valorização. Claro que toda a minha gratidão vai para a família Rogosin por toda a sua disponibilidade, simpatia e, penso que posso dizê-lo, amizade.
Num artigo importante que o seu pai escreveu em 1960 para a Film Culture, «Interpreting Reality», ele fala sobre a sua maneira de fazer filmes como uma maneira de dar uma forma cinematográfica à liberdade, começando pelas pessoas sobre as quais os filmes se debruçavam. Isto é, claro, algo que o seu pai refinou a partir das lições dos neo-realistas italianos, sobretudo De Sica e Rossellini, e, mesmo antes, de Robert Flaherty. Contudo, eu gostaria de lhe perguntar se isto foi, também, algo de inato ou até intuitivo no seu pai.
A minha opinião mudou consideravelmente. Eu sabia que o meu pai era sofisticado. Mas eu pensava que a realização não era uma coisa tão intuitiva como a pintura. Ele era muito mais artístico do que eu inicialmente julguei. Mas, muitas vezes, um filme é um esforço colaborativo. Quando vês os últimos filmes, que ainda ninguém viu, vês uma séries de coisas que são semelhantes, vês que vem do olho de alguém. Lendo as suas aulas percebi imenso sobre os seus métodos. O que faz sentido com as fotografias que descobri [estas fotografias foram apresentadas, pela primeira vez ao público, no âmbito do Porto/Post/Doc]. Ele estava a tirar muitas fotografias não com o objectivo de ser fotógrafo. Ele comprou uma câmara Linhof. Ele estava claramente interessado em fotografia, mas sem a pretensão de ser um fotógrafo. Morris Engel e alguns outros vinham mais completamente da fotografia sofisticada. O meu pai não surge nessa linha.
Ele usava a fotografia como método de repérage?
É difícil de dizer. Não estou certo quanto a isso. Penso que contei [no documentário The Perfect Team] a história sobre ele ir aos bares com uma câmara, [um método] que ele abandonou. Claro, ele não era um realizador quando começou a fazer o filme, ele entrou com uma ideia e começou a experimentar, pensando: “Bem, tenho de esconder a câmara, porque ninguém fez isto”. O método que ele desenvolveu [consistia em] conhecer as pessoas de um modo muito profundo, passando seis meses com elas.
A outra coisa que me aparece como particularmente fascinante é que, sendo ele um realizador politica e socialmente consciencioso, não foi por isso que reduziu o seu gesto cinematográfico a uma simples maneira de “enviar mensagens” ou de formar ideias de um modo retórico. Ele é, na realidade, um caso singular na história do cinema documental, dado que os seus filmes têm uma estrutura ficcional muito clara. Ele não está apenas a “usar” a realidade para dizer algo, ele está a interpretar a realidade, sendo esta o alcoolismo em On the Bowery ou o apartheid (racismo e injustiça social) em Come Back, Africa (Volta, África, 1959), por forma a que esta “fale por si mesma”.
Há um lado humanista e poético que é claramente uma inspiração do neo-realismo e de Flaherty. Ele não cresceu numa família com muita cultura, mas ele viu muitos filmes quando era criança. Ele teve de percorrer um longo caminho para saber onde estavam as suas inspirações. Tinha expectativas sobre o trabalho do seu pai na empresa [da indústria têxtil]. O seu lado político começa quando era uma criança. Com seis ou sete anos de idade tinha sempre presente o racismo e o anti-semitismo. Quando trabalhava no On the Bowery o meu pai tinha um pouco de experiência no cinema, não muita, mas ele teve um encontro com [Richard] Bagley [o director de fotografia], durante o qual lhe descreveu o filme. Ele fez essas fotografias. Logo, havia nele uma ideia estética. Enfim, em On the Bowery houve sempre esta simbiose entre o meu pai e Bagley.
Mas se compararmos On the Bowery com The Quiet One (1949), que foi filmado também por Bagley, vemos duas estéticas completamente diferentes.
Isso é verdade. Fiquei surpreendido quando vi isso.
Pensando ainda em The Quiet One, para mim é muito interessante o choque que houve entre Helen Levitt e o seu pai [Rogosin contratou Levitt como montadora, mas acabou por a despedir]. Existe uma pureza em Levitt, ao passo que no seu pai existe uma ideia muito clara, e até precisa, dos planos e da estrutura do filme. Ela não trabalhava assim, era muito espontânea.
Estás muito certo sobre isso. A chave aí é a consciência que o meu pai tinha do cineasta russo Eisenstein.
A escala das pessoas e, em particular, dos rostos!
Exacto. De facto, quando falas dessa coisa estrutural isso tem que ver com isso. Claro, ele lia muito. E tinha esse talento natural que eu desconhecia quando era criança. Tenho uma gravação áudio onde ele fala sobre intuição. É uma coisa muito curta. Portanto, penso que o que dizes é correcto. The Quiet One é mais flat; não tem o mesmo dinamismo. E a coisa do meu pai por rostos… Arranjei há pouco tempo uma cópia de Woodcutters from the Deep South (1973), que é um dos seus últimos filmes. Cheguei ao fim de a ver e aparecem estes rostos de novo! É preciso seres incrivelmente corajoso para simplesmente colocares uma câmara em frente a alguém e filmares o seu rosto. E vês Black Roots (1970): continua a acontecer. Cassavetes percebeu isso.
Estava a pensar agora sobre a importância do enquadramento. Comparando com Jean Rouch ou mesmo Wiseman, e ainda que haja lampejos de um pensamento fotogramatical por trás das imagens destes realizadores, no seu pai a ênfase está menos no “documentário” e mais na “direcção” (directing).
Nesse artigo que mencionei, o seu pai diz que ele enquanto realizador (director) procurava pôr em evidência o “poeta desconhecido que existe em qualquer indivíduo”. Na minha opinião, um dos realizadores contemporâneos mais próximos do seu pai é o cineasta português Pedro Costa. Ele apresenta a mesma estrutura ficcional, que, de certo modo, legitima a sua consciência fortemente fotográfica do “quadro”. Pedro Costa também diz que os seus argumentistas são os seus actores.
O que dizes cola com muitas coisas. Muitas coisas a incluir em documentários sobre a história do cinema, que serviriam para ensinar nas escolas de cinema. Há muitos debates que eu penso que permanecem por explorar hoje em dia ou que as pessoas não reflectiram suficientemente. O trabalho do meu pai era conhecido de um grupo de pessoas durante alguns períodos da história e depois ele foi esquecido. E depois houve o movimento do New American Cinema. Claro, Jean Rouch e Henri Langlois estavam constantemente a mostrar Come Back, Africa e eram grandes fãs. Diz-se, aliás, que Come Back, Africa é o filme que Jean Rouch nunca conseguiu fazer. Todas as cenas em que eles estão sentados à mesa em Chronique d’un été (1961) são baseadas em Come Back, Africa. O que surpreende muita gente é quão reais e ao mesmo tempo poéticas elas são. O mais perto disto é Flaherty, porque ele cultivava essa proximidade com as pessoas, excepto que não creio que em Flaherty haja a mesma consciência política. Depois temos Eisenstein. Todas estas referências a trabalharem em conjunto. É uma história rica que precisa de ser explorada.
Vou agora citar uma das últimas palavras que o seu pai diz no documentário que o Michael realizou, The Perfect Team: “Em certa maneira, eu vivi como se estivesse a tentar destruir Auschwitz. Todos os dias da minha vida”. Penso que existe uma consciência histórica muito forte por trás da decisão do seu pai de começar a fazer filmes. Sem esta sua dimensão humanista provavelmente ele continuaria as pisadas do seu pai, enquanto um grande homem da indústria. Estou sempre a perguntar a mim mesmo: porquê destruir Auschwitz com filmes? Porque é que o seu pai não escolheu outro campo de acção?
Acho que ele próprio não sabia.
[Pascale toma a palavra] Ele próprio sofreu na pele o anti-semitismo. Não foi apenas o Holocausto. Nós, europeus [Pascale é francesa, tal como a filha do casal, Céleste], não pensamos que houve imenso anti-semitismo nos Estados Unidos. Mas houve. Ele não conseguia entrar em certos sítios por ser judeu.
É uma complexa história familiar… Havia muito anti-semitismo, claro. Mas eu não creio que o meu pai sofresse directamente assim tanto. Foi mais uma coisa que ele extraiu do seu meio ambiente. Porque os meus avós mudaram-se de uma área judia para um bairro anglo-saxão. Logo, é provável que ele se tenha sentido só, ele interagia com os outros miúdos, mas ele tinha de se defender no pátio da escola. No primeiro dia de aulas teve de dar tareia a um tipo para não ser “o judeu da turma”. Assim, em certa medida, ele tinha consciência disso. Ele relacionava-se com crianças negras e com a comunidade negra. Isto podia acontecer com milhares de crianças, mas não as obcecar tanto. Mas o meu pai tinha uma aguda consciência política.
O seu pai fala do Inferno de Dante como uma inspiração sua para a realização da muito perturbante sequência no bar, uma visão muito gráfica sobre a degradação humana. Li uma crítica que vê a personagem de Doc como uma espécie de Virgílio que apresenta Ray (o Dante no filme) à vida infernal da Bowery. O filósofo Georges Didi-Huberman, no seu livro Images malgré tout, afirma que a palavra mais frequentemente invocada pelos sobreviventes para descrever a realidade dos campos de concentração era, exactamente, inferno. As primeiras imagens de On the Bowery, de homens e mulheres sem idade, alguns esqueléticos, prostrados nas ruas, imediatamente criam uma ressonância com as imagens horrendas dos campos de concentração. Terá sido esta uma maneira do seu pai dizer que Auschwitz não havia terminado?
Pode ser uma coisa inconsciente. Há claramente uma crítica ao imperialismo e à sociedade americana. Ele tinha completa consciência disso, mas ele não o dizia a muita gente directamente. Ele não era um intelectual. Não era politicamente sofisticado per se. Quer dizer: não era um intelectual com esta ideia “isto vem da teoria marxista”. Ele não encaixa em nenhuma categoria política. O meu pai era um pragmático, verdadeiramente. Ele queria encontrar uma solução.
Ele era um realizador pragmático e intuitivo. Como o podemos relacionar com o grupo do New American Cinema, composto sobretudo por artistas muito “sensoriais”?
Ele não vinha de uma escola de cinema ou de arte. Hoje seria diferente. Mesmo a escola de cinema para eles não é igual à escola de cinema hoje. Era sobretudo [como] uma universidade com algumas aulas de cinema. E depois iam ao Bleecker Street Cinema ver filmes. É surpreendente que ele tenha sido tão artístico. Mas, bem visto, como em qualquer arte, não consegues nunca dizer ao certo “porquê”.
É muito interessante. Ele disse qualquer coisa como: “Quero mudar o mundo, vou fazer filmes”. Nos anos 50 é uma coisa muito corajosa, quase irresponsável, de se dizer.
E se soubesses do que ele estava a abdicar… Podes chamar a isso comportamento autodestrutivo. Ou então estava a ser completamente louco. Dizia que se tivesse continuado na empresa têxtil, teria ganho dinheiro suficiente para fazer um filme em cada ano. Mas ele estava completamente obcecado…
A sua luta não se resumia a fazer filmes, mas também a mostrar filmes. Acredito que o Bleecker Street Cinema, que o seu pai fundou e que era uma espécie de janela para as experiências do New American Cinema, foi um lugar decisivo para desafiar as fronteiras muito fechadas do mercado de distribuição de então.
Foi algo importante não apenas para o New American Cinema. O Bleecker Street Cinema é um projecto tão gigantesco que estou a tentar reunir tudo [num filme]. Pode-se escrever um livro inteiro sobre a influência do Bleecker Street Cinema. É um assunto que aparece com muitas das questões actuais em torno da distribuição. Scorsese [numa entrevista feita por Michael Rogosin para o Blu-ray americano de On the Bowery] falava do Bleecker Street Cinema como um lugar onde se podia ver filmes no grande ecrã e notava como isso tem mudado agora. Não sabemos para onde vamos… O meu pai comprou o cinema em 1960 e geriu-o até 1974. Depois, veio Jackie Reynal e manteve-o na mesma tradição, mas um pouco diferente. De 1960 a 1974 atravessou várias fases, com diferentes pessoas responsáveis pelas sessões diárias.
O Lionel não estava envolvido na programação do cinema?
Não exactamente. Ao longo da história, com diferentes programadores, ele diria “podes fazer isto, não podes fazer aquilo”. Mas os princípios básicos, creio, vinham dele. O meu pai deixava os estudantes entrarem gratuitamente a partir da meia-noite. Era gratuito para todos. Não sei bem o que se passava lá dentro. Toda a gente lá ia. Desde rapazes de dezasseis anos que ali viviam, até Woody Allen que via filmes ao fim da tarde. Era uma universidade do cinema. E depois tinhas o cinema não-americano. Scorsese viu ali Senso (Sentimento, 1954) pela primeira vez. Tem piada: Scorsese foi muito afectado por On the Bowery. Ele vivia do outro lado da rua! Vivia na Little italy, que era um bairro contíguo. Ele é a única pessoa que conheci que conhecia algumas pessoas que estão no filme! [O meu pai] também mostrou filmes do New American Cinema. Foi complicado passar filmes de Shirley Clarke. Houve alguns conflitos. Tornou-se complicado. Houve conflitos com toda a gente. Mas a geração que se seguiu ao New American Cinema também lá ia: [para além de Scorsese] Brian De Palma, De Niro… toda a gente. Tenho imagens de Brian De Palma a filmar De Niro à porta do Bleecker Street Cinema. Eles não conheciam o meu pai. Ele fundou o Bleecker Street em 1960, pô-lo em funcionamento e levou-nos para Israel durante 3 anos. Assim, enquanto o Bleecker Street funcionava ele não estava lá. Ele estava a fazer Good Times, Wonderful Times (1966). E – isto é uma loucura, ninguém sabe – ele levou-nos para a Índia durante 6 meses para fundar uma empresa de produção com Satyajit Ray [o que não chegou a acontecer]. E a história continua…
James Agee* foi escolhido pelo seu pai para escrever o argumento de On the Bowery. Contudo, ele morreu prematuramente em 1955. O seu pai conhecia Agee?
Isso está em The Perfect Team. Ele sabia muito bem quem era James Agee, [que ele era] um grande argumentista. Eles conheceram-se num bar. Falaram. Mas Agee faleceu. Muito tempo depois, nos anos 70, ele estava obcecado com um filme sobre Gaugin. Comprou os direitos do argumento de Agee sobre Gaugin e tentou diferentes variações, mas acabou por ter problemas. Uma das coisas em que me envolvi foi um filme sobre os Navajos. Fui com ele muitas vezes às reservas índias. Contactámos Marlon Brando e Jane Fonda para obtermos dinheiro. Penso que David Carradine queria fazer o filme. Mas o meu pai acabou por abandonar [o projecto].
* Em 1980, já na gestão de Jackie Reynal e do marido Sidney Geffen, foi aberta uma segunda sala no Bleecker Street Cinema. Ganhou o nome Agee Room, no que foi uma homenagem ao escritor, crítico e argumentista norte-americano.