Começa hoje no Cinema São Jorge mais uma edição da Mostra de Cinema da América Latina (e que se prolonga em Janeiro a Loulé), um evento que apresenta uma série de filmes recentes dessa região do mundo, dando especial atenção, este ano, aos filmes indicados pelos respectivos países para o Oscar de melhor filmes estrangeiro. Assim sendo esta edição terá o último filme de Pablo Trapero, El Clan (2015) [12 de Dezembro, 21h30, Cinema São Jorge – Sala Manoel de Oliveira e 28 de Janeiro, 18h00, Cine-Teatro Louletano], indicado pela Argentina e que tem direitos de distribuição em Portugal [o que talvez se traduza numa estreia dentro de alguns meses, sendo que um dos filmes do realizador já estreou por cá, Carancho (2010)]. O filme, pelo que se percebe pela sinopse (já que não me foi possível vê-lo antecipadamente), trata de uma história baseada num caso criminal em que uma família raptou uma série de pessoas tendo morto grande parte delas. El Clan esteve em competição na última edição do Festival de Veneza, de onde saiu com o Leão de Prata para melhor realização. Outros dos títulos indicados para o Oscar é El abrazo de la serpiente (2015) pela Colombia e Que Horas Ela Volta? (2015) pelo Brazil, filmes que pude ver e sobre os quais escrevo de seguida. No entanto, destaque desta mostra é, sem dúvidas, La mujer de barro (2015) uma co-produção entre o Chile e a Argentina.
O filme de abertura da Mostra de Cinema da América Latina é El abrazo de la serpiente de Ciro Guerra [10 de Dezembro, 21h00, Sala Manoel de Oliveira – Cinema São Jorge] estreou na Quinzena dos Realizadores no passado Festival de Cannes e desde então tem percorrido o circuito dos festivais. De facto, é um filme de festival por combinar um certo nacionalismo etnográfico com um olhar distante e contemporâneo [ainda que com as devidas distâncias o filme tem vários paralelos com outros drama de época em preto-e-branco deste ano, Aferim! (2015) de Radu Jude]. No entanto, há uma série de operações no filme de Guerra que convém explorar: baseado em dois diários de viagem de dois exploradores-etnógrafos Theodor Koch-Grunberg e Richard Evan Schultes (o segundo no encalce do primeiro, largas décadas depois) à Amazónia, este é um filme que recusa o olhar etnográfico do ocidente sobre as tribos nativas que retrata, isto é, em vez de, como os exploradores, retratar fetichisticamente o outro como primitivo, o filme encontra um espaço entre esse olhar e o cinema observacional. Aliás, chega mesmo a contrariar o mito do primitivo e o do cientista quando é o homem de ciência do ocidente quem relembra ao índio como se praticam certos rituais, como se procedem certas práticas ou onde se encontram certas plantas sagradas.
O mais interessante de El abrazo de la serpeinte é certamente o jogo constante entre estas duas facetas: a influência do homem branco nas populações indígenas e a forma como o primeiro tenta evitá-la e o segundo a anseia – um exemplo particularmente explícito disto é o momento em que o cientista não quer deixar para trás a sua bússola porque esta fará esquecer o saber ancestral da leitura dos astros ao que o índio lhe responde que tal imposição de não mudança só preserva a imagem do ocidente sobre o quão primitivos eles são, não os podemos impedir de aprender. Outro aspecto interessante do filme prende-se com as consequências desta intervenção globalizante e de como as memórias se perdem com o desaparecimento dos últimos testemunhos de certas tradições. O filme representa isso várias vezes, quer seja por um mural que o índio já não sabe ler, pela forma como o trabalho dos missionários é absorvido pela cultura amzónica (absorção essa que leva a um dos momentos mais intensos do filme – a fazer lembrar a maníaca civilização de Brando em Apocalipse Now (1979) – onde o mito do índio canibal se introduz através do corpo de cristo levado às ultimas consequências, o pior de dois mundos) ou ainda pela fixação em imagens que os cientistas praticam com as suas câmaras e os seus desenhos, imagens que fixam o outro no seu “verdadeiro”estado natural – aliás, um dos índios refere mesmo que ele já não passa de uma imagem vazia, sem memória, um Chullachaki.
A estranheza do filme passa então pela forma como todo esse trabalho de miscigenação cultural (assistimos a certa altura a uma canção indígena acompanhada por uma dança ao estilo do Tirol) percorre todo o texto do filme mas não se manifesta de igual forma no olhar da câmara, sempre distante, sempre presa a uma fotografia altamente contrastada e a um virtuosismo incómodo – diria sem grande rigor que o filme de Guerra está algures entre a frieza de Das weiße Band – Eine deutsche Kindergeschichte (O Laço Branco, 2009) e a plasticidade de Apocalypto (2006). Ao ponto de já mais para o final do filme termos um plano subjectivo em que se toma coca e a câmara entra em modo narcotizado em voos rasantes pelas copas da floresta, enche-se de cores numa trip a imitar (em probrezinho) a “viagem interior” do final de 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968). Essa é a grande fraqueza do filme, a forma como no sentido de destruir o mito do indígena primitivo constrói o mito do índio sábio, dono dos segredos do universo, com o qual o ocidental tem tudo a aprender – o homem branco recusa-se a ouvir a música do real, está demasiado preso à sua música (moral essa que Ciro Guerra não parece ter ouvido…), a luz do conhecimento está dentro de nós e na ligação ao mundo e à natureza, todos nós somos um milagre do universo; tudo frases feitas de uma cultura new age proto-ambientalista que cai para o lamechas e para o pedagógico.
Que Horas Ela Volta? de Anna Muylaert [29 de Janeiro, 21h00, Cine-Teatro Louletano] é um filme cujo título se explica logo no primeiro plano e que portanto logo se situa: uma empregada doméstica toma conta de uma criança, esta aproxima-se e pergunta a que hora ela volta referindo-se à mãe que está fora, trabalhando. Aí já sabemos que o centro do filme será a relação entre patrão e dona de casa, entre mãe de sangue e mãe afectiva, entre uma geração que foi criada pelos pais e uma que foi criada por figuras outras que por os criarem deixaram de criar as suas. É conhecido que o espaço de patrões e empregadas é o fundo para grande parte das telenovelas brasileiras ou portuguesas (os temas e as formas pouco variam), Anna Muylaert trabalha sempre no sentido de fazer esquecer isso, isto é, de tentar esconder a natureza popular da sua trama. Assim no filme existem duas forças que trabalham em áreas distintas e por vezes opostas: um certo histerismo emotivo vindo da telenovela que se nota nas discussões onde as personagens “se revelam” ou na forma como se passa a traço grosso os patrões ou se recorre ao ralenti; do outro lado temos um formalismo de câmara que se evidência nos enquadramentos altamente arquitecturados e na elegância de certos planos contínuos quase sempre fixos.
O filme de Muylaert faz-se portanto de oposições numa exercício dialético entre o popular e o erudito, entre o patrão e o empregado, entre uma geração e outra, entre o urbano e o rural, entre as chávenas pretas e os pires brancos, ou vice-versa. Daí que acima de tudo se sinta no filme uma série de gestos e opções dissonantes que quase sempre pendem para a manipulação emocional: veja-se a forma como a realizadora, para evidenciar a assimetria de forças entre a empregada e os patrões faz da criada uma figura atolambada apenas para produzir momentos cómicos que aliviem as situações extremamente incómodas, ou como a filha desta vem juntar-se ao lar com o intuito de “derrubar barreiras sociais” sendo que o filme trabalha sempre no sentido da ascenção social dela pelo esforço e nunca pela abolição dessas mesmas barreiras, posto doutro modo, há um discurso anti-classes que se corporiza num desejo de subir para a classe dos outros, uma versão marxista do quem desdenha quer comprar. Mas se as linhas com que o filme se cose são complexas e por vezes o discurso e a forma seguem direcções trocadas para que o todo agrade o olho e o espectador (não é certamente acaso que o filme tenha recebido tantos prémios do públicos em vários festivais de cinema espalhados por esse mundo fora), também é certo que esse efeito altamente trabalhado não deixa de ser sedutor mesmo quando lhe notamos os tentáculos. E sim, Que Horas Ela Volta? é um feel good movie onde, de facto, o good não passa da sensação, pois a sociedade utópica proposta e o “final feliz” com pés de barro são indícios de que todo o projecto está mais preocupado com a lágrima no canto do olho e menos com as preocupações políticas que falsamente enverga.
La mujer de barro de Sergio Castro San Martín [11 de Dezembro, 21h30, Sala 3 – Cinema São Jorge e 31 de Janeiro, 21h00, Cine-Teatro Louletano] é talvez, dos três filmes da mostra que pude ver, o mais delicado e é-o por haver nele uma força clássica fundada na elipse. Sergio Castro San Martín conta-nos a história de uma mulher que regressa a um local fundacional do seu passado e todo o filme se faz no jogo onde se atam as pontas soltas deixadas por uma realização sempre distante e sempre desejosa de insuflar cada momento com elementos de outro tempo. Assim Maria deixa a filha adolescente do outro lado da fronteira e parte para o trabalho sazonal nos quintas argentinas na recolha de figos de cato e na vindima (e nas fábricas de processamento de frutos), num percurso que já fizera anos antes e que deixara de fazer por motivos que apenas podemos subentender. Este regresso a um lugar onde não se foi feliz, perceberemos que o seu patrão fora e continua a seu o seu estuprador, faz-se por necessidades económicas e o filme aborda o aspecto social e laboral sempre a uma distância íntima mas que, ainda assim, não deixa de se interessar pelas condições de trabalho destas pessoas, dos riscos para a sua saúde, da organização laboral em internato ou a forma como toda a vida dos trabalhadores se encontra condicionada, incluindo no lazer, quando os dias de folga são ocupados por jogos de futebol obrigatórios.
San Martín tende a filmar os corpos com grande calma, filma Maria com um interesse profundo pelo seu rosto, pela forma como as suas mãos recolhem as uvas ou os seus pés se demolham na água. Note-se a recorrência dos pés ao longo do filme: não sei se no Chile e na Argentina (onde o filme foi rodado) se usa a expressão pés de barro, mas vendo o filme deste lado do Atlântico não deixa de se mostrar evidente a relação entre o barro do título e a insistência por planos de pés, como se o realizador nos fosse avisando que a secura e a aparente força de Maria é uma que resulta do meio em que se encontra. O deserto, os catos ásperos, as condições de trabalho difíceis, a distância da família, tudo isso enforma Maria numa figura ressequida, mas essa figura tem pés de barro que anseia por se demolharem em água morna e na se dissolverem. O arco narrativo de La mujer de barro é esse mesmo, a construção e sucessiva destruição de uma persona, Maria, que tem que enfrentar o outro lado para poder viver de novo no seu.
Sergio Castro San Martín é pois um realizador que segue a tendência estética do novo cinema argentino mas sem no entanto se esquecer de uma função social de retrato de uma realidade mais ou menos escondida (uma espécie de Lucrécia Martel com compromissos sociais), e na boa veia desse cinema argentino o seu filme constrói-se todo de contrastes: entre uma bela paisagem que se revela mortífera com os insecticidas, com uma violação de 30 segundos que tem o peso de vários minutos (e as sequelas de vários anos) ao ponto de percebermos que o maior bem que Maria possuiu, a sua filha, é fruto daquele que é e foi o seu maior mal (uma chama telefónica entre mãe e filha feita de simples trivialidades chorosas é uma cena que tão depressa não me sairá da memória), ou ainda o desenlace que paradoxalmente encerra Maria na lama (uma prisão libertadora). E no jogo de todos estes contrastes fica-nos um filme justo e tocante.