No último texto que escrevemos, dávamos conta, a propósito de Mne dvadtsat let (Tenho Vinte Anos, 1965, de Marlen Khutsiev), do “degelo” historicamente situado no qual o filme se inseria (responsável, aliás, pelo baptismo com o mesmo nome das cinematografias soviéticas de então), i.e., o período da era Khrushchev durante o qual se assistiu a um apaziguar das relações entre as superpotências EUA e URSS. Ninotchka (1939) – adaptado por Charles Brackett, Walter Reisch e Billy Wilder a partir do argumento original de Melchior Lengyel -, de Ernst Lubitsch, uma “comédia romântica” realizada numa era – a dita golden age de Hollywood – em que o epíteto não era sinónimo de enjoo, acaba por ensaiar, bem antes da chegada de Khrushchev ao poder (na verdade, em pleno estalinismo!), um “degelo” semelhante entre dois “embaixadores” das duas trincheiras separadas pela famosa iron curtain, fazendo-o através daquele que é, a seguir ao amor (em sentido lato), o melhor modo para reconciliar pessoas e povos: o humor, o riso, a graça, a leveza de espírito. Muitos acordos e tratados podem ser assinados, muitos apertos de mão e palmadas no ombro podem ser dadas, muitas palavras de conveniência podem ser proclamadas; se, porém, nada disto for acompanhado de uma piada, de uma gargalhada, enfim, de um sorriso mínimo (que não amarelo) que seja, talvez isso seja prenúncio de um futuro e inelutável fracasso das celebrações.
“Sorri!”, suplica o Conde Leon d’Algout (Melvyn Douglas) a Ninotchka (Greta Garbo, na primeira comédia e penúltimo filme da sua extraordinária carreira), que, impassível, lhe pergunta a insondável razão para tal pedido, logo aqui sobressaindo uma engraçada remissão extra-diegética: na verdade, até este filme, Garbo só havia desempenhado papéis cuja austeridade e seriedade lhe haviam crismado a sua imagem de marca (Anna Karenina e Rainha Cristina, acima de todos), algo, de resto, condizente com a postura rigidamente ciosa da privacidade que sempre manteve em relação à esfera pública (distante, pois, do modo de vida do star system de Hollywood). Daí não espantar que o slogan escolhido pela MGM para a promoção ao filme tenha sido “Garbo laughs!” (!), em parte semelhante ao “Garbo talks!” que promoveu o seu primeiro filme sonoro [Anna Christie (1930) de Clarence Brown]. Postura, essa, por sua vez concordante com o seu ascético rosto (o que alguém como Bresson poderia ter feito com ele…!), o tal rosto-objecto de que falava Roland Barthes, “com a espessura de uma camada de neve, como se fosse uma máscara; não é um rosto pintado, é um rosto de gesso, defendido pela superfície da cor e não pelas suas linhas; por sobre toda esta neve, ao mesmo tempo frágil e compacta, só os olhos, negros como uma polpa bizarra, mas de maneira nenhuma expressivos (…)” (1).
“Por causa do ridículo espetáculo que é a vida, por causa das pessoas que se levam tão a sério, só porque sim!”, insiste Leon, o aristocrata “capitalista” engatatão, com Garbo, aqui uma agente espartanamente soviética que, até descobrir as delícias do humor e do riso (mais do que as delícias exclusivamente materialistas do capitalismo, é nossa convicção), se comporta como se de um autêntico cyborg se tratasse, perfeitamente robotizada, estatística, fria e sem um pingo de emoção – é dizer, sem um pingo de “subjectividade”, de individualidade, completamente anuladas pela “objectividade histórica” instruída pela doutrina soviética, onde o interesse de cada um é o interesse de todos e este o interesse do Partido (e este, por sua vez, o da revolução, num encadeamento infinito que há-de ir dar ao interesse, quiçá, do Marx que um dia escreveu O Capital). Há, claro, um enorme exagero no retrato de Ninotchka e, metonimicamente, do homem soviético, mas isso é consciente e deliberado: esse exagero (em si mesmo um recurso cómico, de resto) é utilizado não tanto como máquina de propaganda (pintando intencionalmente os comunistas como monstros alienígenas desprovidos de coração, como o mccarthismo viria mais tarde a pintar), mas como sátira e crítica; e, acima de tudo, como forma de, através do poder da caricatura, da hipérbole, do grotesco, fazer-nos rir e encarar as coisas sem a gravidade que elas naturalmente têm. É, pois, essa “caricaturização” que faz também Leone rir e espantar-se com a figura de Ninotchka, melhor, com a personagem (no duplo sentido) que é Ninotchka – não fosse essa caricatura a traço grosso (grossíssimo) e provavelmente Leone não se apaixonaria por ela (e nós não simpatizaríamos com Ninotchka de certeza). Prova a intenção não propagandista do filme esse facto muito simples e no qual reside um dos efeitos quintessenciais do humor: caricaturando e gozando à exaustão com a URSS e seu aparato ideológico, Lubitsch acaba, na verdade, por humanizar os soviéticos (algo inovador para o formatado público americano), por lhes reconhecer os mesmos tiques e manias, enfim, a mesma vulnerabilidade existente em todas as pessoas, forçosamente “coladas” a um determinado regime político apenas em função do aleatório local onde calharam de nascer.
Por tudo isto é que, obviamente, um filme como este, que brinca e se diverte com coisas sérias (numerosas e deliciosas piadas sobre os planos quinquenais, as purgas estalinistas, a censura, etc.), nunca poderia ser feito na URSS (tendo inclusivamente a sua distribuição sido proibida por Moscovo), mesmo se os “capitalistas” são igualmente alvo do lápis univocamente caricatural de Lubitsch: fúteis, snobes, gananciosos, parasitários, aldrabões (pelo contrário, os soviéticos, especialmente Ninotchka, são sempre francos nas suas intenções). Ou seja, bem vistas as coisas, ninguém sai bem na fotografia e isso só demonstra, uma vez mais, o lado desprendido e nada self-counsciouness do filme, não “alinhando” com ninguém e gozando com todos, ao mesmo tempo que os compreende e como que os desculpa pelas suas idiossincrasias. Como sabemos – ou como, pelo menos, alguns de nós sentem –, são aqueles que têm a certeza de tudo, que estão perfeitamente convictos das suas ideias, que querem convencer a todo o custo os outros da bondade ou razão dos seus argumentos as pessoas mais chatas e fastidiosas que por aí pululam. Nesta perspectiva, é o desembrutecer progressivo de Ninotchka que a tornará em alguém interessante e engraçada e por quem sentiremos ternura, alguém, enfim, com quem gostaríamos de trocar dois dedos de conversa. Dizendo de outro modo, e adulterando a famosa formulação de Emil Cioran, “O humor [em vez da conversação] só é fecundo entre seres empenhados em consolidar as suas perplexidades [e não, precisamente, as suas certezas]”, sendo precisamente o cruzamento destas “perplexidades” de sinal contrário (o “comunismo” de Ninotchka e o “capitalismo” de Leon) que fecundará a relação entre os dois e entre eles e o espectador (o filme seria muito menos interessante se ambos fossem rigidamente “soviéticos” e “capitalistas” até ao fim).
Se esse é o tom de todo o filme, a narrativa resume-se numa penada: três oficiais soviéticos – impossível não ver neles três dos irmãos Marx, de tão desajeitados e aselhas – estão em Paris para vender umas joias do regime, a braços com dificuldades de tesouraria. São, literalmente, as “joias da coroa”, dado que pertenciam, até à Revolução de 1917, à Duquesa Swana (Ina Claire), antiga figura do regime czarista, entretanto exilada em Paris, coisa que, claro, eles não sabem. Face à imperícia dos oficiais, que se deixam enrolar pela teia legal de Leon (namorado da duquesa), Moscovo envia Garbo ao local dos acontecimentos para que resolva a situação com a eficiência “cyborguiana” que lhe é reconhecida. O que Garbo não sabe é que o problema dos seus camaradas é bem maior do que a venda das joias, é “político”: seduzidos pelos “encantos vis” do capitalismo, os três foliões renderam-se ao bem-estar ocidental e à boémia, numa sequência de admiráveis e deliciosos gags com o famoso touch de Lubitsch (o qual, à falta de melhor, traduziríamos por charme). Mas, na verdade, Garbo também não lhes resistirá – aos encantos, a Paris, a Leon –, pelo que assistiremos, para retomar as famosas palavras de Rui Gomes da Silva, a um “aburguesamento” colectivo que, mais do que material (embora lindamente vestida para o jantar com Leon, o vestido de Ninotchka é o usado pelas operárias soviéticas, como faz questão de frisar à duquesa), é existencial, relacional, e tem como epicentro, insista-se, o humor, o (sor)riso, a capacidade (e a felicidade!) de nos rirmos dos outros mas também de nós próprios. Porque, enfim, como alguém famoso nunca disse, “A vida é uma coisa demasiado séria para ser levada a sério”.
Ainda a este respeito, Lubitsch deixa bem claro o seu tributo aos grandes cineastas-palhaços do passado (Chaplin e Keaton à cabeça): depois de contar inúmeras piadas para arrancar, sem sucesso, uma gargalhada a Ninotchka, Leon, exasperado com a sua impassividade, desequilibra-se na cadeira em que está sentado e cai ao chão desajeitadamente. Ninotchka desmancha-se, então, finalmente a rir, uma e outra vez, cheia de vontade e cumplicidade [a rigidez de Garbo era a tal ponto famosa que se chegou a discutir se as gargalhadas haviam sido dobradas (!) e uma pesquisa no Google e no Youtube por “Greta Garbo + smile” evidencia esse mesmo mito]. O statement está feito: ao humor palavroso (essa coisa tão indigesta, e actualmente com tanto palco, que é a de “dizer piadas”), oral, auto-consciente, Ninotchka – i.e., Lubitsch – prefere o humor silencioso, físico, gestual, numa palavra, slapstick.
Dissemos acima que o humor era, a seguir ao amor (em sentido lato), o melhor modo para reconciliar povos desavindos. Mas o amor em sentido mais estrito, o amor-romance, também tem aqui uma importante palavra a dizer, pois é ele, enquanto fonte de carinho, desejo, compreensão, enfim, de tolerância entre duas pessoas, que lhes permite aceitarem-se nas suas diferenças, superarem os pontos mais ou menos distantes de que partem. Garbo, já abraçada por Baco, diz, a certa altura, que chega de punhos cerrados (o seu socialismo) e de braços esticados (o fascismo, naquela que é uma aproximação, involuntária ou não, dessa ideologia ao capitalismo personificado por Leon), que, no partido que ela e Leon fundarão, a única coisa a que se mostrará continência é ao amor e a única saudação admissível o beijo. É a afirmação da primazia de uma utopia individual (o amor) sobre as utopias colectivas que varreram o século XX, é a crença de que, pelo menos entre duas pessoas (e às vezes já é tão difícil…!), é possível uma comunhão total, é possível alcançar – ainda que momentaneamente – a felicidade, a plenitude, o tal “paraíso na terra”. De alguma forma, a tirada de Ninotchka acaba por ser, retrospectivamente falando, quase premonitória, na medida em que seria justamente a falência das grandes propostas programáticas do século passado que levaria ao desacreditar, em geral, da política, e cujo efeito ricochete é um autêntico “recolher” ao que de mais tangível e proximamente “utópico” temos de nós: o outro, o amor-com-o-outro, a promessa de uma vida feliz a dois.
Que o amor seja hoje, portanto, o último grande reduto do impossível, a última grande utopia do mundo contemporâneo, não é propriamente surpreendente – mas também não propriamente positivo. E é a própria tecnocracia instalada – situada em termos politicamente assépticos ao “centro” (como se tal posicionamento fosse, por si só, meritório de coisa alguma) – que, nos tempos que correm, chega mesmo a proclamar, como o fez muito resolutamente Paulo Portas há dias atrás , que os jovens devem deixar as utopias “aos revolucionários” e que se devem concentrar na “realidade” (!), enfim, que devem continuar na obscura e militante ignorância de que falavam os versos da “Pedra Filosofal” de Gedeão. Isto tudo no deliberado pressuposto de que toda a utopia é gérmen finalístico da tirania e do mal, quando ela, como Gedeão tão bem glosou, é apenas um motor, um “alimentador” de ideias, um “contra-campo” de desafio e estímulo ao estado das coisas, e nunca um fim em si mesmo. A resignação e o esmagamento pela “realidade” – algo, de resto, facilmente susceptível de ser apoderado como bandeira ideológica por figuras de diversas cores –, essa sim, é que pode ser veículo de estagnação e asfixia. Felizmente para nós, no filme de Lubitsch, Garbo não se deixa conformar com a “realidade” e, em vez de voltar para a Moscovo estalinista, decide escolher o amor (o seu “personal interest” em vez do “good of the country”, como explicitamente se ouve) e ficar com Leon, talvez em Constantinopla, talvez de volta a Paris (they will have Paris… again). Que coisa mais… utópica, hein?
Ninotchka, uma das mais inspiradas comédias de Lubitsch, será exibido dia 18 de Dezembro de 2015 (sexta-feira) pelo Cineclube Locus Cinemae, em Caminha, e dia 19 de Dezembro de 2015 pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
(1) Roland Barthes, “O Rosto de Garbo”, in Mitologias, Edições 70, 2007, p. 124.