Embora não tenhamos aqui dados factuais para o comprovar, não será demasiado arriscado escrever que Nova Iorque é a cidade mais filmada e reimaginada na já bonita história do cinema, desde faustosas produções série A das majors até ao mais obscuro cinema underground realizado à custa de um dólar no bolso e muita fé. Nalguns casos, até, só recorrendo a uma genuína vontade e ainda maior curiosidade, como é o caso de A Walk (1990), de Jonas Mekas, uma obra para a qual a expressão “cinema-directo” foi inventada.
A Walk, para se ter uma justa ideia da sua verdadeira e total independência, nem sequer figura na lista oficial de trabalhos realizados pelo lituano, estando disponível na internet não se sabe como. Não será muito parvo, então, aventar a hipótese de que A Walk não seria mais do que uma obra de um dia para ter como destino os museus se Tim Berners-Lee não tivesse inventado, um ano antes, a maior revolução tecnológica dos últimos cem anos. Eis a magia: estar numa aldeia onde nem sequer há multibanco mas em que se pode ter acesso a uma obra não-oficial de um cineasta avant garde lituano radicado nos EUA. Os melhores dos tempos, os melhores dos tempos.
O que se “conta” em A Walk é muito simples: Jonas, durante uma hora e em tempo real, sem um único corte, filma a sua caminhada de Wooster Street, Soho, até à entrada da Williamsburg Bridge, a ponte que liga Manhattan a Brooklyn. O dia é 15 de Dezembro de 1990, e chove; para termos a certeza absoluta de que está a chover, Mekas diz no seu ainda carregado sotaque lituano:” it is raining in New York”. A caminhada, com longos momentos de silêncio, é entrecortada também muitas das vezes pela boa disposição do man with the movie camera, que vai contando fábulas da mais variada espécie, passando pela sua história na cidade de Nova Iorque, – onde tinha chegado há quarenta anos- desde a plantação de duas árvores na Wooster Street com o seu irmão até a recomendações muito interessantes,” i don’t recommend Brooklyn to anyone”. Entretanto, a chuva cai. Daquela verdadeira, não daquela impostora dos filmes de Hollywood. “It continues to rain in New York”.
Na sua simplicidade de processos (isto parece ter sido escrito pelo Freitas Lobo), A Walk é uma peça de onde se pode extrair várias abordagens. Uma delas, a de documento de uma data específica sobre uma cidade. Sem sinfonias, como os primitivos dos anos vinte, mas de som o mais recatado possível. Uma Nova Iorque a léguas das suas emanações na tela. Nem é preciso pensar nas visões turísticas que muitos realizadores têm oferecido da cidade; os proprios durões como Ferrara, Scorsese, Cassavetes ou Lee parecem uns copinhos de leite perto desta cidade literalmente imunda, onde nas ruas, nos passeios e nas estradas se junta lixo em quantidades muito interessantes. Com a chuva, ainda mais bonito fica. “It’s raining”. Embora seja especulação, voltamos a arriscar, ao escrever que esta Nova Iorque anti-cinematográfica teria o seu fim quando uns anos mais tarde o Rudolph Giuliani entraria em funções como Mayor. Ou no Soho continua a ser assim?
Outra perspectiva interessante em A Walk é a relação umbilical entre a câmara e o corpo; não estamos ainda no campo da fusão genético-molecular, mas há de vir o dia. Todos os solavancos, mudanças bruscas de ângulo, total ausência de visão e inexistente mise-en-scène justificam-se pela câmara como genuíno reflexo de um corpo em movimento.
Outra perspectiva interessante em A Walk é a relação umbilical entre a câmara e o corpo; não estamos ainda no campo da fusão genético-molecular, mas há de vir o dia. Todos os solavancos, mudanças bruscas de ângulo, total ausência de visão e inexistente mise-en-scène justificam-se pela câmara como genuíno reflexo de um corpo em movimento. Não é “câmara Parkinson” porque sim, é “Câmara Parkinson” porque só assim pode ser. Como diz Jonas durante o filme, “eu permito que a câmara seja o seu próprio olho”. Isto quando gotas de chuva não estão a obscurecer o visor durante uns minutos, levando o realizador ora a passar o dedo pelo mesmo (ainda fazendo pior), ora sacando de um lenço e tentando limpar a magia da humidade citadina. Como disse Mekas, In reality, all my film work is one long film which is still continuing… I don’t really make films: I only keep filming. I am a filmer, not a film-maker. And I am not a film ‘director’ because I direct nothing. I just keep filming. Menos aprisionado do que isto será difícil encontrar. A não ser que se filme sem câmara. É o futuro: fazer enquadramentos imaginários e filmar e expor esse trabalho imaginário num festival documental imaginário com o público a imaginar o que foi filmado. E depois teríamos críticas imaginárias. “It’s raining in New York”, continua a dizer-nos o Jonas.
Chuva que, entre outras coisas, é uma das razões do belo naturalismo sonoro de A Walk. A Nova Iorque de todos os dias, experienciada não por personagens mas pelas massas anónimas, e os seus sons. Gotas a cair nas poças, apitos de carros e pneus de carros sobre as estradas molhadas, o som de uma fábrica ao longe, conversas breves e díspares a passar de rajada pela câmara (e aqui, sem fazer nada por isso, Mekas mostra a multiculturalidade da cidade), o estrepitar de uma fogueira à chuva, os passos do próprio lituano na sua aventura pedestre. Razões várias para A Walk também poder servir como registo sonoro ambiente, enquanto se vai à net à procura de noticias fresquinhas sobre assuntos de bola ou assim. Acabamos a ver Brooklyn do outro lado da ponte. Mekas pode não nos recomendar lá ir, mas iremos. A chuva parecia estar a abrandar.
https://www.youtube.com/watch?v=_qj-LMIsM8c