Na última Civic TV do ano – de balanço, portanto -, faço uma marcha-atrás curtíssima, porque parece que os grandes acontecimentos de 2015, na televisão nacional, ficaram guardados para o mês de Dezembro. Primeiro, vamos à actualidade. Uma boa notícia: a tutela da televisão pública passa do ministério da Presidência para o regressado ministério da Cultura. Uma notícia não-tão-imediatamente-boa: o novo ministro da Cultura é João Soares. A primeira pergunta que procurarei responder: porquê João Soares? E o que pode, politicamente, significar a sua primeira iniciativa pública no âmbito do cinema: a ida do ministro à ante-estreia da Amor Impossível (2015) desse “deslumbrante” e “notável” cineasta chamado António-Pedro Vasconcelos? Segunda questão, esta uma não boa, mas óptima notícia: a maratona Manoel de Oliveira que o canal TVCine 2 levou a cabo em celebração dos seus 107 anos, no fim-de-semana de 11 a 13 de Dezembro. 60 horas consecutivas, com filmes entrecortados com entrevistas exclusivas, que foram dedicadas ao cineasta português desaparecido este ano. Nenhuma entidade levou até hoje tão alto a memória de Manoel de Oliveira. A exibição de (quase) todos os seus filmes, para uma ampla audiência, é um marco não só de este ano como de toda a história da programação televisiva em Portugal. Um esforço notável de perpetuar a admiração por uma obra, ela que se deu inteira à descoberta não do público – que públicos são urinóis, já dizia Oliveira, e recordava João Botelho no testemunho gravado pelo canal -, mas de todas as pessoas que amam o cinema. Com isso, voltou a passar na televisão a versão mini-série de Amor de Perdição (1979), obra que tem sido remetida para uma inexplicável obscuridade.

(1) A Cultura costuma ser a principal fonte de lamentos no final das legislaturas. Um dos poucos arrependimentos que me lembro de saírem da boca de José Sócrates foi aquando do fim do primeiro mandato do governo que chefiou. Referia que a sua maior falha na legislatura anterior havia sido o pouco investimento feito na Cultura. Pois bem, no primeiro governo de Passos Coelho, a Cultura foi jogada para uma secretaria de Estado, ficado sem ministério próprio. A restauração do ministério da Cultura pelo recém indigitado governo de António Costa vem corrigir o rumo no sentido da re-dignificação do sector. O que veio a seguir trouxe, contudo, algumas – se não muitas – dúvidas. João Soares, novo ministro da Cultura. A primeira questão que me assaltou quando soube desta escolha foi: porquê João Soares? O que podemos esperar desta “raposa velha” do Partido Socialista à frente de um ministério que exige uma sensibilidade e experiência muito particulares?
Olhando para o currículo de João Soares, é curioso verificar como a actividade cultural de relevo que desenvolveu se concentra no período em que foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa, entre 1990 e 1995. Soares assume o pelouro da Cultura e dinamiza a rede de bibliotecas, cria instituições importantes como a Videoteca e a Casa Fernando Pessoa. Foi também responsável pela reabilitação do Teatro S. Luiz, do Museu da Cidade e enceta o projecto de recuperação do Cinema São Jorge. Antes de tudo isto, e encontro esta informação no currículo disponível na página do governo, João Soares dedicara-se à sua principal paixão, os livros. Fundou a editora Perspectivas e Realidades, que lançou livros de autores diversos, tais como Mário Cesariny e George Orwell. Esta informação aparece nas primeiras linhas do currículo de Soares, caracterizando-se este logo como “licenciado em Direito e Editor”. É este o dado que se segue imediatamente ao facto de ter nascido, em Lisboa, em 1949. Olhando para este seu currículo colocado na página do governo, fica clara qual é a mensagem que se quer transmitir. Qualquer coisa como: “deve andar distraído, porque João Soares é um homem que nasceu para a cultura“.
Olhando friamente para os factos, poder-se-á dizer que João Soares é um bom operacional neste domínio. Ele é, como toda a gente sabe, um homem da política, algo que foi recebido com expectativa por parte de alguns ilustres nomes da cultura, tais como Rui Vieira Nery, que, na sua conta de Facebook, teve a perspicácia – que eu inicialmente não tive, confesso – de ver nesta nomeação uma tentativa de dar capacidade de influência e poder decisório a quem lidera os assuntos da Cultura em Portugal. O facto de António Costa lhe ter passado a pasta RTP é outro sinal, diria positivo, deste redimensionamento político do ministério da Cultura. Pela parte que me – e nos – diz respeito, resta saber por onde se moveu, move e moverá João Soares no território da Sétima Arte. Sei que é um frequentador das salas comerciais, especialmente as das Amoreiras. Mas, de resto, pergunto-me: “o que é o cinema” para João Soares?
A RTP é, agora, um assunto da Cultura. Eis o triunfo da ideia de serviço público – que nunca teve nada de abstracta ou fantasiosa, como muitos a pintaram – em plena estação do Estado.
Os seus dias à frente do ministério são poucos, mas nos jornais já vieram noticiadas duas iniciativas da sua parte. A primeira dá conta da sua vontade de fazer uma exposição dos malfadados quadros de Miró, que ficaram nas mãos do Estado desde a nacionalização do BPN e que foram objecto de querela político-partidária entre PSD/CDS-PP e PS. A outra iniciativa é menos significativa, mas não menos simbólica. Soares foi a Viseu à ante-estreia do mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos (APV), Amor Impossível. Aí, um e outro trocaram elogios: João Soares disse-se um admirador do cineasta, de este como de praticamente todos os seus filmes, que muito o deslumbram; já APV descreve o ministro como um amigo e uma pessoa “pragmática”, “firme” e com capacidade diplomática para introduzir “algumas modificações para as políticas do cinema”. Uma troca de elogios, ou um patrocínio mútuo, que não pode deixar de suscitar leituras. Porque, meanwhile, o assunto do dia era o texto, assinado por várias dezenas de realizadores e produtores, que dava conta de uma situação de iminente ruptura financeira do sector, devido a pagamentos que o ICA tem em atraso e que poderá ter como resultado “(…) a falência de inúmeras empresas produtoras, a destruição dos projectos, o desemprego de um número imprevisível de técnicos e actores”. João Soares, nesse encontro com APV, que não consta da lista de assinantes do comunicado, garante que o cinema é “essencial em tudo o que tem a ver com a cultura” e acrescenta: “O Estado não pode deixar de intervir no cinema, porque nós temos um mercado muito pequeno, muito escasso. Temos uma concorrência muito grande dos filmes americanos e, portanto, o Estado tem obviamente de apoiar”.
Os flirts de APV com o poder político têm sido constantes de há uns anos para cá, sensivelmente desde que deixou de ser comentador de futebol num dos canais do Estado. O seu envolvimento em causas politicamente correctas, como as da não privatização da RTP (que, como já aqui escrevi, também ajudou a promover Nuno Artur Silva a director de conteúdos do canal) e da TAP (esta, seguramente, uma causa, no mínimo, excêntrica para alguém sem ligações profissionais ao sector), fazem parte de um cozinhado que é popular e que tem tudo para agradar às forças que compõem o actual governo. Ironia do destino: lembro-me nestes dias da forma escarninha como APV costumava qualificar o sistema de financiamento do cinema português. Para o realizador de A Bela e o Paparazzo (2010), este tinha uma clara feição “estalinista”, em razão da sua crónica dependência do Estado. Não é que APV seja propriamente um novo “cineasta do regime”, mas talvez seja menos abusivo dizer que dificilmente haverá cineasta mais enamorado pelo Estado e por todas as as suas “grandes causas”. E o amor, que com o governo anterior seria desejavelmente impossível – não era cómodo nem estrategicamente inteligente defendê-lo, convenhamos -, pode começar agora a dar alguns frutos. Veremos, no médio prazo, até onde nos irá conduzir toda esta idiossincrática concepção de cinema como concepção de Estado, e do Estado como concepção de interesses ou estados particulares. Até lá, não fiquemos de olhos TAPados.
(2) Vou repetir, porque é, de facto, uma boa notícia. A RTP é, agora, um assunto da Cultura. Eis o triunfo da ideia de serviço público – que nunca teve nada de abstracta ou fantasiosa, como muitos a pintaram – em plena estação do Estado. A RTP deve dar aos portugueses não “aquilo que eles querem”, velha fórmula dos homens do dinheiro que muito descaracterizou o canal nos últimos anos, mas “aquilo que eles não sabem que querem”. Para formar e educar, para expandir o horizonte, é preciso abrir caminhos, romper com o monolitismo temático e formal que contamina a globalidade do mercado televisivo. Esse monolitismo deve ser, quanto muito, um problema para os privados resolveram por si mesmos e não deve envolver mais ninguém. A RTP faz o seu caminho noutro sentido. Que sentido? De novo, a resposta é óbvia, mas não chega a toda a gente, por isso, repito-a: o sentido do serviço público de televisão.
Mas será justo dizer que o serviço público é tutela exclusiva do canal do Estado? Não deve ser e, por vezes, comprovadamente não o é. Este ano o cinema ganhou uma nova dignidade sobretudo no segundo canal. Grandes filmes, curtas e documentários fazem de novo parte da grelha da RTP2. O momento mais feliz de todos: o ciclo Ozu que, acidente tão trágico quanto poético, nos embalou para a notícia da morte da sua musa eterna, Setsuko Hara. Já nos próximos dias 24, 25 e 26 de Dezembro a RTP2 dá novas provas desta mudança exibindo três filmes de Isao Takahata, grande mestre do cinema de animação que este ano estreou nas salas portuguesas o deslumbrante Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguyahime, 2013). A RTP Memória, por sua vez, anuncia um ciclo de filmes em memória de Paulo Rocha, que começa já hoje à meia-noite, com a exibição da sua obra-prima Os Verdes Anos (1963). Mas, como dizia, fora da RTP, no mercado dos privados, os bons exemplos são ainda possíveis. A TVCine 2 superou todas as melhores expectativas neste mês de Dezembro, quando preencheu três dias consecutivos com (quase) toda a obra de Manoel de Oliveira, estreando ainda o notável documentário de Manuel Mozos A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015) e um programa de entrevistas que foi servindo de convite à entrada em cada um dos filmes. Foi um verdadeiro acontecimento cultural em plena televisão privada.
É difícil isolar apenas um momento neste maravilhoso ciclo, mas como esta crónica de final do ano está a ser escrita sob o signo do futuro da nossa política cultural, então é preciso aproveitar este “delírio” da TVCine para sublinhar o que naquela tem estado em nítida falta. Quantas oportunidades, fora da Cinemateca, teve o espectador para ver e apreciar filmes como Benilde ou a Virgem Mãe (1975), Amor de Perdição e Francisca (1981)? Não estando os três títulos editados em DVD e não passando estes na televisão portuguesa – ouviste, RTP? -, posso dizer garantidamente que as oportunidades foram poucas ou nenhumas. O caso mais absurdo é o de Amor de Perdição, não só por ser um filme de enorme relevância histórica – momento de viragem na obra de Oliveira, espécie de primeiro capítulo para a sua “segunda vida”, como, desde logo, está documentado na sua magnífica obra póstuma, vista este ano, e também passada agora na TVCine 2, Visita ou Memórias e Confissões (1982-2015) -, mas acima de tudo por ter sido uma produção feita originalmente para a televisão pública. Precisamente, a TVCine passou (numa cópia a precisar de restauro), sem intervalos, os seis episódios da versão original do filme (um total de quatro horas e vinte), Amor de Perdição: Memórias de uma Família (1978).
O espaço é curto para falar de um filme com esta ambição, que procura (re)adaptar o texto clássico de Camilo Castelo Branco ao cinema – Ricardo Vieira Lisboa traçou aqui os vários paralelos entre as versões de António Lopes Ribeiro, Oliveira e Mário Barroso. Limito-me então a recortar da experiência do filme aquilo que, simultaneamente, mais me fascina e incomoda: a rigidez dos corpos. O corpo da cenografia, que faz de Oliveira o mais moderno dos primitivos, usando cada plano como uma prisão antecipada (para o amor condenado) das suas personagens. A distância teatral da câmara sobre a cena é, muitas vezes, estilhaçada por um zoom opressivo – todos os zooms são opressivos, escreveu Serge Daney – que vem assinalar no espaço a modernidade geral desta proposta, como se num gesto apenas Oliveira quisesse colar os primeiros Griffiths aos últimos Rossellinis (sim, televisivos). Rigidez dos corpos cenográficos e dos corpos propriamente ditos, das personagens que são atraídas para o precipício de um amor danado. Estes corpos sofrem, mas neles habita como que um espírito extinguido por antecipação – por antecipação desse amor impossibilitado, entenda-se.
Uma história de amor latejantemente romântica, mas, notável tensão, toda ela protagonizada por mortos-vivos (modelos bressonianos? Algures por aí). Por isso, não são visíveis o sangue, lágrimas e vómito que lhes saem dos corpos. A principal história de amor aqui não é entre Simão Botelho e Teresa Albuquerque (o estranho caso de…), mas entre Simão e a criada Mariana. O único beijo do filme é entre esta última e um já-absolutamente-cadáver Simão. É aqui que a paixão atinge o paroxismo de todas as impossibilidades. Os derradeiros planos – as águas turvas que engolem os dois amantes – aproximam Oliveira dos grandes cineastas do amor trágico (acima de todos, Borzage, Delluc e Murnau). O filme afunda-se como que puxado pela força dessa evidência. As mais de quatro horas de filme, de “impensável” televisão, valeram bem a pena.