O Porto/Post/Doc continua até ao próximo dia 8 de Dezembro, terça-feira, e não faltam motivos para uma visita ao Teatro Municipal Rivoli ou ao Cinema Passos Manuel, locais onde decorrem as várias sessões destes dias. Se Domingo é o último dia para assistir aos vários filmes que estão na secção de Competição, até ao final do Festival ainda será possível assistir aos novos filmes de Thom Andersen, The Thoughts That Once We Had (Os Pensamentos que Outrora Tivemos, 2015), de José Luis Guerín, L’Accademia Delle Muse (A Academia das Musas, 2015) ou de Frederick Wiseman In Jackson Heights (Em Jackson Heights, 2015).
A grande descoberta dos primeiros dias do festival foi The Wolfpack (A Matilha, 2015) de Crystal Moselle, exibido na sessão de abertura fora de competição. Um documentário sobre um grupo de seis irmãos que chega à adolescência sem quase nunca ter saído do apartamento em Manhattan onde vivem, e cujo único acesso ao mundo exterior é através dos filmes que vêem e que passam os dias a recriar apaixonadamente. Este documentário mostra uma das mais bizarras e fascinantes histórias dos últimos tempos, e um olhar inesperado sobre a cinefilia. Uma história surpreendente a todos níveis, para a qual muito ajuda a abordagem de Crystal Moselle, que não dá qualquer contexto à acção, excepto as próprias palavras dos diferentes irmãos.
Filhos de um pai religioso que os fechava à chave em casa, em vez de irem à escola eram ensinados pela sua mãe, e o único ponto de contacto com o mundo fora do apartamento é uma extensa colecção de filmes, através da qual constroem a sua própria mitologia de como funciona o mundo lá fora: a família é importante por causa do The Godfather (O Padrinho, 1972), a história americana é aprendida a partir de JFK (1991), etc, ou seja, todos os filmes eram para eles como documentários. É o cinema como meio de educação e ensinamento moral, como encarregado de educação. Se o cinema sempre foi uma forma de escape, torna-se aqui também como um meio de expressão, de sobrevivência perante a sua realidade mais próxima. A forma como Crystal Moselle analisa as relações familiares evoca o espanto de Grey Gardens (1975) ou Capturing the Friedmans (2003), mas o que fica desta história extraordinária é a esperança nestes irmãos na sua redenção.
Com In Jackson Heights (Em Jackson Heights, 2015), Frederick Wiseman, cuja carreira se aproxima dos 50 anos, continua o seu mapeamento exaustivo da sociedade americana, detendo-se, desta vez, sobre um bairro profundamente multicultural em Nova Iorque. Na sua procura contínua de histórias, encontra uma comunidade vibrante mas também um bairro que atravessa uma crise de identidade. Por um lado, a ameaça económica da gentrificação, simbólica de uma uniformização ao estilo de vida americano, empurra aos poucos os habitantes e os pequenos negócios para fora do bairro, dando lugar a rendas mais altas e multinacionais. Por outro lado, a população não deixa de celebrar a sua diversidade e origens, como forma de afirmação cultural e de subsistência, ao mesmo tempo que procura integrar-se na sociedade americana. Wiseman ocupa o filme com diferentes episódios, que ora ilustram a enorme diversidade étnica presente no bairro, ora retratam as tentativas de manter uma identidade própria debaixo da ameaça de mudança.
É nesta resistência ao abandono da cultura que dá identidade ao bairro, e na sua vontade paralela de abraçar o estilo de vida americano, que Wiseman encontra a sua história. No fundo, Wiseman procura afirmar que a resistência, este lutar pelos interesses próprios, é tipicamente americana e o tecido da sociedade americana. É um regresso de Wiseman a temas anteriormente explorados nos seus melhores filmes, onde contrasta a conduta exigida pela sociedade com a rebeldia a essa formatação. Esta é uma questão já presente no seu segundo filme, High School (1968), agora apresentada noutra escala. É quando Wiseman filma as diferentes formas de resistência política, presente nos vários encontros de grupos de activistas, que este parece fornecer uma resposta para a crise que encontra. Apesar da duração excessiva (e de algumas imagens mais impressionáveis) é uma aventura recompensadora. In Jackson Heights é exibido dia 8, às 19h, no Passos Manuel.
É preciso ter fé nos filmes de José Luis Guerín para chegar ao que este propõe, ou pelo menos, ter alguma abertura para ser iludido pelos truques com que este constrói o seu cinema. O seu mais recente filme, L’Accademia Delle Muse é disso exemplo, ao autoproclamar-se como “uma experiência pedagógica filmada”. O filme acompanha as aulas de um professor de filologia, à medida que este e os seus alunos procuram investigar o conceito de musa e de figura da Mulher como fonte de inspiração ao longo da história. Porém, o que começa por assumir-se como um documentário tradicional, acaba por ser posto em causa à medida que, através de diversas conversas com as suas alunas, percebemos que afinal o que era um documentário pode não o ser. Guerín questiona assim a percepção do espectador ao associar o documentário como um género mais próximo da realidade, mais credível. Esse esbater da fronteira entre o documentário e a ficção pode ser interessante, mas é apenas um dos planos em que se desenrola o filme.
O outro plano tem a ver com o discurso do professor e até que ponto essas são as ideias de Guerín e até onde vai o jogo de imagens reflectidas que dominam o lado visual do filme. Para isso é importante considerar os filmes anteriores de Guerín, como Tren de Sombras (Comboio de Sombras (1997), uma simulação de um documentário a partir de supostas imagens antigas entretanto recuperadas, e En la ciudad de Sylvia (2007), que acompanha um rapaz à procura de uma rapariga que conheceu anos antes, mas que se transforma num registo do olhar voyeurista sobre o corpo feminino. São exemplos de um modelo de construção do cinema como fábula. A ideia da Mulher como um objecto de admiração ou exibição é, no mínimo, questionável, contudo, resta saber se esta é a visão de Guerín, ou se pretende apenas registar a obsessão do professor. Desta forma, este filme poderá ser um intrigante puzzle intelectual, ou apenas um exercício vazio, caso Guerín assuma o papel do professor. L’Accademia Delle Muse é exibido dia 7 às 16h30, no Passos Manuel.
Behemoth é o nome de uma criatura mitológica que se alimentava de montanhas e não é por acaso que Beixi Moshuo (Behemoth, 2015), de Zhao Liang, exibido na competição, começa com uma série de explosões numa mina, avisando que neste filme o homem substitui-se ao monstro destruidor. Numa adaptação livre do texto da Divina Comédia de Dante, a terra transformada pela intervenção do homem surge como a imagem de um inferno desolado, numa sucessão de imagens de uma beleza natural aterradora, como uma imagem rasgada a meio pela divisão entre as pastagens verde e o negro do carvão minado. O filme intercala imagens alternadas da realidade, onde um corpo nu deitado no chão rodeado de espelhos serve de ilustração para uma voz-off que entoa frases poéticas, com imagens documentais que mais parecem uma realidade alternativa. Confrontados com os confins negros das minas de carvão, substituto do purgatório, e dos trabalhos infernais numa metalurgia, parece que estamos a ver um filme de ficção científica, como se estivéssemos a observar um planeta estranho e irreconhecível, no meio de uma escala difícil de compreender para o olhar humano.
Perante este panorama desolador, o filme atribui um lado humano à sua composição, que sobressai pela sua mensagem, quer pelos rostos dos mineiros cobertos de negrume, que todos os dias inutilmente tentam lavar da sua cara e dos seus corpos, quer pelas histórias humanas que começam a aparecer, este é o mito de Sísifo moderno. Quando Zhao Liang filma uma cidade fantasma de prédios novos nunca ocupados, perante os rostos e as mãos destruídas dos trabalhadores sacrificados, as consequências desta aniquilação ambiental são assombrosas, como um murro. Apesar de toda a sujidade e negritude que as imagens finais evocam, como os frascos de líquido negro retirados dos pulmões de trabalhadores doentes, estas não podiam ser mais claras: este caminho é o da asfixia. Beixi Moshuo repete dia 6, às 16h30, no Passos Manuel.
Se por vezes precisamos de ser relembrados da aberração que é Las Vegas, quer no cinema, quer na televisão, Las Vegas In 16 Parts (2015) de Luciano Piazza parece preencher esse papel. Dividido por dezasseis vinhetas que são listadas logo no início do filme, o documentário é uma sucessão de absurdos que só fazem sentido nesta fantasia capitalista. Desde o primeiro capítulo, que se afirma a natureza distópica de Vegas, mas é algo o que não é novidade. Cada capítulo funciona com a repetição de várias imagens semelhantes mas nem todos os segmentos se revelam particularmente interessantes. A proibição de filmar dentro dos casinos, o coração de Las Vegas, priva o documentário de uma parte essencial. Isto é ultrapassado, de forma engenhosa, com uma visita a um museu de jogos de arcada antigos, mas esse não parece ser o objectivo do filme, mais interessado em apresentar um caleidoscópio representativo das paisagens de Vegas e da fauna que encontra.
É apenas quando o filme cria um imaginário novo, quando por exemplo manipula o tempo da imagem de uma fonte de água, que revela uma ideia estética própria. São momentos escassos no filme, como quando cria uma justaposição entre essas imagens da fonte e uma explosão nuclear no deserto, nos arredores de Vegas. São, porém, momentos passageiros num filme que é apenas uma excentricidade, tal como a que procura filmar. Las Vegas In 16 Parts repete dia 6 às 15h, no TM Rivoli.
O mais fascinante em Killing Time – Entre Deux Fronts (Tempo Para Matar, 2015) é a forma como procura filmar algo que não está visível. Lydie Wisshaupt-Claudel filma uma cidade no sul da Califórnia que serve de passagem a um grupo de soldados de regresso do Iraque e do Afeganistão, como se fosse um parque de estacionamento, onde os soldados que, acabaram de chegar, estão à espera para seguirem viagem. Nesta cidade, cujas paisagens áridas são muito semelhantes ao deserto de onde regressam, tudo gira à volta da base dos Marines, e da forma como os soldados tentam ocupar o seu tempo livre. Ao assistirmos ao abraço de família que um soldado recebe à chegada, a distância dos seus pequenos filhos em relação ao pai sinaliza o problema da ausência. Estes pequenos momentos, ao longo do filme, como quando um soldado refere casualmente que não consegue dormir, ou o regresso constante ao álcool, põem em causa a aparente tranquilidade que nos é apresentada, como os ruídos das explosões e tiros dos exercícios de treino na base que se fazem ouvir ao longe à noite.
A câmara detém-se frequentemente a filmar estes soldados por trás, pela nuca, como se existisse uma barreira invisível, uma distância a resolver. Se os demónios da guerra permanecem escondidos, as marcas no corpo são o elemento mais visível, mesmo que sejam as tatuagens com que estes soldados marcam as suas experiências. O filme não personaliza estes soldados, trata-os como parte uniforme de um conjunto impessoal, mas é quando voltamos ao soldado da primeira cena, que tudo fica mais claro. Quando vemos esse soldado, agora de regresso à guerra, numa videochamada com a família para celebrar o aniversário de um dos filhos, quando a sua voz metálica mal é ouvida ou quando alguém pega no portátil para o soldado conseguir ver os primeiros passos da sua filha, toda esta distância e ausência desabam, impossíveis de disfarçar.