É quase impossível imaginar uma adaptação cinematográfica da obra de David Foster Wallace bem sucedida. Não vi Brief Interviews with Hideous Men (2009) de John Krasinski, baseada no livro de contos homónimo do escritor norte-americano, mas, pelo que leio por aí, não será grande coisa. E é extremamente fácil pensar em tudo o que pode correr mal na transposição para o cinema de uma escrita tão pessoal – mais do que auto-consciente é como se fosse a própria consciência do autor a transbordar para o texto e, deste, para as notas de rodapé (e, destas, para outras notas de rodapé), com todos os recuos, obsessões, retracções, contradições e aquela sua minúcia observacional compulsiva, a tentar abarcar uma verdade absoluta qualquer que o próprio sabe inalcançável (o “I’ll take doubt” final da fabulosa reportagem Host).
Pior ideia do que adaptar a obra, só mesmo a de fazer um biopic sobre Foster Wallace. Mesmo não sendo um exemplar típico, The End of the Tour (2015) pode ser catalogado nesse género justamente mal amado, responsável por algumas das sessões mais inócuas e entediantes da vida dos espectadores que ainda caem na esparrela (as excepções de que se estão a lembrar apenas confirmam a regra). Por seu lado, a escolha de Jason Segel para interpretar o escritor fazia antever uma caricatura bem intencionada mas desadequada e profundamente redutora: a de um bom gigante, com um lenço a cobrir a cabeça (a famosa bandana), a debitar inanidades avulsas. É, pois, extraordinário como o filme consegue sobreviver e escapar-se, inclusive, à sua condição.
The End of the Tour não tenta mitificar a figura do escritor torturado e auto-complacente, desenhando, antes, um retrato justo de Foster Wallace.
O primeiro responsável por essa superação é o dramaturgo Donald Margulies, cujo argumento se centra na relação de Foster Wallace com David Lipsky, o escritor que passou com este os últimos dias da digressão de promoção de Infinite Jest, entrevistando-o, desafiando-o, espiando-o, testando-o, no intuito de fazer uma reportagem para a Rolling Stone. A reportagem nunca chegou a ser publicada, mas, depois da morte de Foster Wallace, em 2008, Lipsky lançou Although of Course You End Up Becoming Yourself: A Road Trip with David Foster Wallace, no qual transcreveu as conversas entre os dois durante esses cinco dias no fim dos anos 90. O diálogo intenso – sobre o sucesso, a falsidade, a condescendência, a depressão, a dependência, a América – tem o formato ideal daquelas peças de teatro com poucas personagens, fechadas num espaço, decididas a discutir um tema até à exaustão. E, embora se abra em vários cenários (muitos em exteriores) e mesmo a outras personagens, o argumento de Margulies encerra-se sobretudo neste jogo, por vezes amigável, por vezes cruel, mantendo essa raiz dramatúrgica.
A escrita, porém, não é igualada pela realização. Em termos estritamente fílmicos, The End of the Tour sofre de certos tiques do cinema “indie” trazidos por James Ponsoldt – câmara à mão nervosamente à procura do melhor enquadramento; reflexos de luz na lente para dar um ar mais “natural”; música “indie” (da época em que ainda era “alternativa”) a rodos (Pavement, Tindersticks, R.E.M.), principalmente na primeira parte (na segunda, a música de Danny Elfman, a melhor em muitos anos, toma conta da banda sonora). No entanto, pode-se-lhe elogiar a direcção de actores: Jason Segel, surpreendentemente assume o papel de David Foster Wallace, sem tentar imitá-lo, sem exageros, apanhando muito bem o seu lado terra-a-terra (por muito que este fosse também uma espécie de encenação do escritor); Jesse Eisenberg prossegue na construção da sua persona intelectual e palavrosa, cada vez mais desagradável e ríspida (quanto às semelhanças com Lipsky, não posso comentar com segurança, mas o actor aparenta não estar muito preocupada em recriar alguém que não a si mesmo).
Não servindo propriamente como porta de entrada para a obra de David Foster Wallace (pede algum conhecimento prévio), The End of the Tour é bom acompanhamento para esta: ao contrário do que escreve Bret Easton Ellis, não tenta mitificar a figura do escritor torturado e auto-complacente, desenhando, antes, um retrato justo de Foster Wallace. É o melhor elogio que lhe posso fazer.