It doesn’t get any more vérité than this. Anna está deitada, despe-se para ficar mais confortável, nem sempre tem possibilidade de dormir numa cama (aliás, nem sempre é um eufemismo, vive na rua, dormir numa cama é algo que já nem sabe bem fazer, doem-lhe as costas do conforto). Vemos-lhe o peito, grávido e adolescente, e a tensão que a cena provoca – tudo o que ainda não sabemos pesa, tudo o que podemos temer pesa ainda mais – é capaz de ser a mais desconfortável de sempre.
Corro o risco de soar pudica ao começar um texto com algo que não é necessariamente o mais importante no que diz respeito a um filme como Anna (1975) – de Alberto Grifi e Massimo Sarchielli – cuja magnitude rebenta com a escala, mas foi estranhamente difícil encaixar algumas das primeiras cenas, as mais íntimas, e o registo que transcende o voyeurismo e que está para além de tudo o que hoje em dia tenta emular o cinema vérité (em prol de uma veracidade que, diga-se de passagem, é tão desinteressante quanto falsa). Anna (nunca sei se hei-de escrever Anna ou Anna, se fica claro que Anna – o filme – e Anna – a personagem – são achados de valor incalculável) tem surpreendido o público dos festivais por onde passou nos últimos meses (40 anos depois da sua estreia em 1976 na Berlinale), graças à cópia restaurada pelo bendito laboratório L’Immagine Ritrovata. Se a intenção de Jean Rouch é clara nas suas etno-ficções – a comparação mais directa que se pode fazer com Anna – podemos discutir longamente sobre o que são as intenções de Grifi e Sarchielli, talvez até para vir a excluir a hipótese dessa mesma discussão ser importante de isolar quando se vê Anna pela primeira vez.
Na verdade, parece que todas as discussões em torno de Anna se podem tornar estéreis perante esta imponência – um filme de quase quatro horas sobre um rosto que reúne simultaneamente toda a magnificência da juventude e todas as rasteiras do mundo (a prostituição, a droga, a solidão). O resultado é fascinante: a bagagem inumana que Anna transporta e o seu sorriso fazem com que Grifi e Sarchielli a levem para casa e a filmem até à exaustão. Até à exaustão porque o filme parece durar uma vida – há momentos em que seria desejável que tudo acabasse. Na cena em que Anna toma banho e que Sarchielli, exasperado com a quantidade de piolhos que o corpo dela transporta, demonstra a sua impaciência perante tal estado, há uma mutação súbita em Anna: a tensão sexual do jogo que por vezes ainda explora (meio envergonhada, diz que não quer tomar banho sozinha) dá repentinamente lugar à revolta, à rejeição da exploração de um estado de fragilidade extrema.
Esqueçamos a dicotomia realidade/ficção (Anna é dirigida nalgumas cenas, conforme é estabelecido desde os primeiros momentos, ela é a estrela do filme, no qual existe um acordo mútuo sobre o que se passará) para nos dedicarmos a outras, bem mais perturbadoras. A câmara de Grifi está demasiado perto, tal como Sarchielli, que se expõe à frente da lente num jogo que alterna entre o flirt e o amor paternal, enquanto Anna oscila na bipolaridade entre a inocência pueril e a sedução. Estas questões são abertamente debatidas no filme, entre os realizadores e os restantes intervenientes – os espécimes que gravitam diariamente pela Piazza Navona, uma excelente metáfora para Itália, umas vezes tranquila e construtiva, outras vezes incendiária. Ali se discute diariamente a dimensão “real” do filme – não só a situação de Anna mas também o clima de instabilidade político-social. As questões pessoais são as mesmas que Grifi e Sarchielli se colocam, divididos entre a versão exploratória do seu egoísmo e o estado de compaixão e sacrifício do seu altruísmo. A verdade é que, ao darem abrigo, ajuda e comida a Anna, estão a providenciar uma certa constância deste sujeito-estrela, garantindo a sua permanente acessibilidade. As restantes personagens ajudam a enquadrar este sentimento de desarmonia interna que reflecte o estado geral do país, tanto como ajudam a compreender a turbulenta transição dos anos 60 para os anos 70, período de sucessivos actos terroristas, de caos provocado pela violência.
A esta Itália das Brigadas Vermelhas e do extremismo Anna parece estar completamente alheia. Filmado em 72/73, Anna inclui depoimentos de uma amostra bastante completa da população de Roma que se passeava pelas arcadas e cafés da Piazza. Estão Grifi e Sarchielli interessados em registar, mostrar ou criar uma personagem e uma história modeladas (ainda que à imagem da realidade)? Estará Anna focada no desejo de atenção ou puramente ausente, como tantas vezes indica o seu olhar, intoxicado das drogas da moda na época? Todo filmado em vídeo, Anna resiste ao tempo apesar do ruído da imagem. Quase parece ter sido feito para ser mostrado agora, quase apetece blasfemar agradecendo que tenha vivido numa semi-caverna todo este tempo, porque a sua ressonância é hoje inacreditável. Ressurge, é um facto, mas será que tinha sido visto? Será que o seu impacto seria o mesmo se tivesse circulado? Anna desapareceu do mapa exactamente como Anna se esfuma no filme – a esperança numa permanência que se extingue sem aviso.
Sem querer meter a pata no território alheio aqui da casa, vulgo O-Fabuloso-Mundo-da-Televisão, não consigo deixar de pensar no que vi ontem, o primeiro episódio do Making a Murderer, mini-série sobre um homem que cumpriu uma pena de 18 anos por um crime que não cometeu. Uma espantosa coincidência, já que recentemente Alberto Grifi dá uma entrevista em que menciona precisamente o espectáculo da verdade, a realidade falsificada apresentada pela televisão, a estupidificação (que eu entendo assim traduzir do italiano), afirmando que lhe interessava precisamente o contrário, gravar a vida no momento em que ela acontece, um cinema-diário. Não tinha consciência da polémica que envolve a série, até porque não cheguei à parte mais ridícula desta operação de marketing, mas percebi que assistia a uma perigosa representação visual de uma milícia civil, impressão confirmada pelos artigos que encontrei sobre os seguintes episódios. A máscara da democracia (participativa, quase) é tão abjecta que nos primeiros quinze minutos do piloto damos pelos neurónios a desistirem de viver e a precisarem de desfibrilhação para continuar a oxigenar.
Ora se em Anna as questões que se podem colocar transcendem moralismos bacocos ou quaisquer considerações sobre a intenção – senhores, podemos falar de tudo, de cinema, de ficção e realidade, de evolução e criação, de reflexos políticos e sociais – em Making a Murderer o que vemos é o espelho de uma sociedade balão-de-ar-quente, basta uma agulha para a ver explodir em pleno ar, de tão inchada que está. Não há explicação para a altitude que atinge, não se percebe como há ainda espectadores com paciência para cliffhangers-de-trazer-por-casa, para atentados em nome da verdade e reposição da justiça, para reality shows, para o terrorismo cultural que anda ao nível televisivo dos comentários do douchebag (estava a ver que não conseguia enfiar aqui o já costumeiro insulto *ufa*) misógino que anda para aí a tentar infectar os outros com a sua homofobia. Mais cinema, menos televisão. Mais cinema na televisão. Melhor televisão, por favor.
P.S.: Este artigo existe por causa dos cúmplices Gustavo Beck e Paulo Soares. Obrigada aos dois.