Se Siegfried Kracauer está muitas vezes interessado na imagem documental e nas news reels não deixa de ser verdade que o cinema fantástico, o cómico ou a fábula também o interessaram. Sobre a obra de René Clair e Jean Vigo o interesse do filósofo fixava-se na forma como a lógica do sonho se inseria na lógica do real ou de como a fábula se tornava porosa a esse real. Ou seja, aquilo que a imagem em movimento do cinema fantástico pode revelar ao espectador é não tanto um olhar sobre o real mas uma sensação deste, talvez mais próxima que a obtida pela simples observação mediada pelo cinema. Sirvo-me disto para poder abordar a opção tomada por Charlie Kaufman pelo cinema de animação em Anomalisa (2015).
Há uma regra não escrita de que que o bom cinema de animação é aquela cuja história não podia ser contada de outra forma (por exemplo uma história sobre pinguins que dançam sapateado) e que se pode generalizar para: todo o bom filme é aquele que descobre o dispositivo certo para a história que quer contar. Não querendo discutir de que modo é ou não verdadeira tal afirmação, parece-me que Anomalisa é um filme que repudia, pelo menos à primeira vista, essa regra, já que a história de um homem que viaja a Cincinatti para proferir uma palestra para trabalhadores de call center e que na noite anterior, no hotel, descobre o amor da sua vida para logo depois o deixar escapar não tem praticamente nenhuma das típicas necessidades fantásticas que o cinema de animação permite mais facilmente concretizar. Aliás, Kaufman e Johnson deliciam-se em mostrar banalidades: logo a começar pelo plano contínuo que acompanha o protagonista do check-in no lobby do hotel ao quarto, assiste à micção e observa uma muda para roupas mais confortáveis, plano esse que deve ter cerca de cinco minutos.
A animação serve então a Kaufman e Johnson como efeito de distanciamento do real que permite, paradoxalmente, um efeito de realidade.
Se a animação (quase) não serve aqui os desejos de fantasia, serve no entanto outro aspecto (e adequa-se assim à natureza da história): o de representar de forma tocantemente real a intimidade na sua… banalidade. De novo numa cena bastante longa os realizadores observam um primeiro (e que será único) encontro sexual com todos os seus típicos azares e inibições, o cabelo que se prende debaixo de um braço, a mão que tentando ser sedutora acaba por fazer cócegas, a pancada da nuca na cabeceira, a boca que não faz o que devia com a pressão apropriada. A animação serve então a Kaufman e Johnson como efeito de distanciamento do real que permite, paradoxalmente, um efeito de realidade que a imagem de natureza fotográfica, pela sua inevitável crueza, tende a não conseguir representar sem causar uma afronta à intimidade. Esta é a grande força de Anomalisa, força que é rara no cinema de animação e que portanto consiste – como o título do filme dá a entender – numa bela anomalia.
Outro aspecto de interesse no discurso do filósofo alemão passa pelo fascino deste com The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925) é a forma como o personagem de Chaplin é profundamente kafkiano na sua fragmentação, “he lost his self, and this is why he cannot experience what we call life”. Talvez não se pudesse descrever de forma mais certeira Michael Stone. Ele é um homem que perdeu algo ou no qual algo deixou de funcionar: todos os rostos do mundo viraram o mesmo e todas as vozes do mundo falam com o mesmo timbre como se houvesse sofrido um impacto no lóbulo temporal e padecesse de prosopagnosia (literalmente, algo que também acontece à personagem de James Bond neste último tomo da série, confirmando essa dúvida sobre a psicótica indiferença do espião pela vida humana). Michael como Chaplin e Bond são incapazes de sentir a vida como nós, o que os diferencia é a forma como reagem a essa sua incapacidade, para Micael é a depressão, a visão niilista, a esperança numa revelação amorosa (para os outros é a inconsciência do mundo e a sociopatia, dois lados da mesma moeda).
Mas se estas são características do protagonista, certo é também que são características do próprio cinema de Charlie Kaufman: o restaurante repleto de pessoas com o rosto de John Malkovich em Being John Malkovich (Queres Ser John Malkovich?, 1999) já anunciava a voz omnipresente de Tom Noonan ou o personagem de Nicolas Cage em Adaptation (Inadaptado, 2002) chamado, nem de propósito Charlie Kaufman, com as suas frutrações sexuais e uma constante aversão a si e ao mundo. Anomalisa é pois também uma glitch no tom do cinema de Kaufman, já que se o texto é o mesmo sempre, agora já somos capazes de rir – nervosamente – com ele. E rimos porque nos reconhecemos.
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