Nos últimos meses Cláudia Varejão inaugurou uma exposição de fotografia no Museu do Oriente sobre as Ama-san – um grupo de mulheres no Japão que perpetua uma tradição milenar de mergulho em apneia para pescar algas, ouriços, abalones, ostras e as suas pérolas – da qual publicou um livro, Ama-San 海女さん, e sobre as quais está neste momento a terminar um filme com o mesmo nome. Mas também neste intervalo participou num projecto do Centro Cultural de Belém em que durante nove meses um grupo de neurocientistas e artistas de várias áreas se reuniram para procurar convergências, desse encontro surgiu a curta metragem Semear o Tempo (2015). A juntar a isto a realizadora acompanhou um ano de ensaios e espectáculos da Companhia Nacional de Bailado do qual resultou um documentário intitulado No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos (2016) que se estreia já no próximo dia 14 de Janeiro num programa da Companhia que pretende aproximar o documentário da dança e que estará em exibição no Teatro Camões até ao próximo dia 24 do mesmo mês e passará pelo Porto no dia 31 de Janeiro, no Teatro Rivoli. Encontrámo-nos na Cinemateca Portuguesa no início da semana e entre um chá e um café conversámos sobre estes projectos, sobre os filmes anteriores e sobre o que os une a todos.
Em vários dos teus filmes tu tens sido quem escreve, quem realiza, quem monta, quem faz a fotografia, enfim, tentas estar presente em todos os momentos da feitura do filme. Por outro lado vários dos teus filmes são encomendas… É exactamente por isso que queres estar tão presente?
Aconteceu assim. Não foi uma coisa muito definida a forma como eu estruturei os filmes, a forma como organizei a equipa. Apesar de eu estar a estudar havia um lado muito autodidata, eu partia sozinha para as coisas e acabei por fazer um bocadinho de tudo. Mas uma coisa que me levou a fazer filmes foi, desde sempre, a minha relação com a imagem, eu sempre filmei. E é muito natural que nos meus filmes eu surja não só como quem realiza, como quem filma ou como quem escreve. Acho que as coisas, pelo menos para mim, tocam-se todas muito. Não é uma forma de controlar todos os factores mas de os unir como um todo. Dou-lhes uma unidade ao estar presente em várias áreas. Em relação aos convites, este [No Escuro] é o primeiro convite que me fazem que é verdadeiramente livre. É um convite de facto, ou seja, quando me propõem o filme eu sei que há uma expectativa de alguma coisa, mesmo que não esteja definida, o desejo por um olhar sobre o que estas pessoas fazem. Mas não há um pedido específico por nada, e isso é maravilhoso. Eu pude descobrir e entrar em contacto com a pureza daquilo que estas pessoas fazem e por isso não lhe chamaria uma encomenda, mas sim um convite. Foi assim que me soube esta passagem pela Companhia Nacional de Bailado.
E tinhas algum tipo de expectativa? Tinhas já alguma ligação ao mundo da dança?
Não. Quando era mais nova dancei, e todos sempre dançamos aqui e acolá, uns mais semanalmente outros menos, uns mais à noite outros menos. Mas tinha uma certa excitação para ver. Isto começou com um convite anterior, há dois anos, quando fiz a fotografia da Companhia durante uma temporada. E quando eu lá fui fiquei espantada, isto existe! Uma bolha com bailarinos do mundo inteiro, aulas de dança clássica e contemporânea, coreógrafos de todo o lado a ir a vir. Isto existe cá! E quando acabei de fotografar disse à directora da Companhia, Luísa [Taveira] isto dava um filme incrível, pensa nisso. E de facto passados dois anos ela convida-me. Por isso parti para o projecto já com a excitação de ver tudo aquilo mais de perto, algo tão longe do nosso quotidiano. É uma actividade de alta competição e isso deixa-te agarrado, ficas sempre no limite: será que ele vai conseguir fazer uma pirueta, será que ele vai cair? E não é só o meu olhar, o próprio filme está assim, excitado com a possibilidade de alguém se ultrapassar a si próprio.
O filme No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos aponta uma série de questões muito próprias do mundo da dança, como seja a oposição da dança clássica com a contemporânea ou a questão do envelhecimento dos bailarinos que os impossibilita de continuar a trabalhar. Eram temas que tinham que estar presentes?
São temas que têm que estar presentes quando se fala de dança profissional, seja ela clássica ou contemporânea, numa companhia de dança – elas, pelo mundo, estruturam-se todas mais ou menos da mesma forma. E fazer um filme destes implica passar-se por uma série de pontos: a entrada, a dificuldade em se crescer, o ser-se alguém a partir da conquista de determinadas hierarquias (eles entram em corpo de baile e depois vão subindo de escalão até se tornarem bailarinos principais – pelo menos podem vir a ser, é esse o objectivo). É inevitável passar por aqui, mas não foi um pedido. Quando se entra numa companhia isto apresenta-se, percebemos que há uma dinâmica muito estabelecida, é um organismo vivo com regras. O filme toca nesses aspectos porque era inevitável não o fazer. Das primeiras coisas que eu filmei foi a bailarina Barbora Hruskova que é uma bailarina principal que está a reformar-se agora e o espectáculo dela é já uma despedida do palco, é uma peça falada – uma espécie de monólogo – em que ela toca nesses pontos todos e onde é muito presente, do início ao fim, o adeus. Percebemos logo, desde o início, que esse é o maior drama do bailarino.
Há dois aspectos formais do filme sobre os quais eu gostava de te ouvir falar um pouco: um é o preto e branco (e eu li a oposição como o reflexo entre a claridade dos estúdios onde os bailarinos ensaiam e a escuridão do palco) e o outro é a recorrência dos enquadramentos que estão mais atentos ao tronco do que à cabeça (há muitas cabeças cortadas e muitas imagens em que só se vê a ponta dos olhos).
O preto e branco não foi uma decisão de início, mas foi uma decisão a meio da rodagem. Era muita coisa, muita cor, muita confusão estética num ano. Para mim não havia coesão suficiente para criar um filme, corria o risco de fazer simplesmente um filme sobre os espectáculos que iam acontecendo e assim fazer algo menos sobre os bailarinos. Eu queria fazer um filme sobre os bailarinos. Essa foi a minha contraproposta quando me convidaram, aquilo que mais me prende no cinema é o lado humano, são as pessoas, e portanto eu nunca faria um filme sobre a Companhia enquanto personagem, sobre a estrutura. Por isso eu estava muito atenta aos bailarinos, aos seus caracteres, à forma como se relacionam uns com os outros, às suas capacidades físicas, e portanto é natural que a câmara (porque sou eu que filmo, sou eu que olho) esteja muito atenta ao corpo. Assim quando corto os olhos ou alguma parte mais expressiva do rosto é porque estou muito atenta ao corpo. Por isso o preto e branco surge também para realçar os corpos, para que o filme seja mais sobre os corpos e menos sobre O Pássaro de Fogo, o Stravinski, a Giselle… Ao contrário daquilo que eu mais gosto, que é fazer filmes com cor, neste achei que devia experimentar. Em relação a essa questão que dizes sobre o preto e branco, eu também reparei e creio que é verdade, eu é que ainda não tenho um pensamento formado para te devolver.
Há uma marca que eu sinto em quase todos os teus filmes, e neste está muito evidente, que é um lado coral: logo deste o teu primeiro filme, o Falta-me (2005) até a um dos mais recentes, o Semear o Tempo, passando também pelas ficções que raramente têm um personagem principal. Há aqui um lado programático, é consciente?
Não
É que estavas a dizer que te interessam as pessoas, mas normalmente nunca te interessa uma só pessoa, mas uma série delas.
Talvez, a verdade é que nunca pensei muito nisso. Interessam-me as pessoas em geral, nas suas diferenças. De facto não era impossível eu ter escolhido, neste filme, seguir o bailarino que acabou de entrar e está ainda meio à toa, por exemplo. De facto podia ter feito essa escolha, mas não tenho a disciplina nem a segurança para achar que aquela pessoa pode reunir todas as pessoas. Por isso abro um pouco mais um leque, à escala daquilo que nos envolve: o grupo de amigos, a família, a vida em geral. Nós não nos fechamos numa única relação com um namorado ou namorada, é sempre uma coisa mais aberta. Por isso também me faz mais sentido abrir os filmes a mais pessoas. Ainda assim há uma escolha, entre os 80 bailarinos há uma selecção com a qual se forma uma família.
Há outra questão que de novo aparece neste filme que é o teu gosto por filmar outros artistas, outras artes. Agora é o bailado, e já tinhas tido o Blind Date (2010) com a Olga Roriz, mas já fora a música no A Dúvida (2012) sobre o trabalho do Bernardo Sassetti, ou ainda a arte contemporânea. Andas à procura, nas outras artes, de algo que falta ao cinema?
De novo tem sido algo que aconteceu, não foi algo que procurei, uma pessoa tem amigos… O cinema não se fecha sobre si mesmo, pelo menos o meu. Vim aqui parar porque um amigo me pede. Há uma teia de contactos que me traz imenso para os filmes e talvez esta forma de filmar os bailarinos vai trazer algo para filmes futuros. E todas as artes estão dentro de filmar, de fazer filmes. Não tem sido de facto uma coisa programada, se bem que quanto à dança eu reconheci muitas coisas semelhantes ao cinema, pelo menos nas pessoas que dançam. Acho que os bailarinos procuram coisas semelhantes àquilo que as pessoas do cinema procuram. Não diria que é a busca pela beleza só por si… Na dança, claramente, há uma procura pela harmonia, mesmo quando é dessíncrona ou atonal como no bailado contemporâneo, uma harmonia do corpo num espaço ou num pensamento. No cinema também. Senti uma proximidade muito grande de motivação entre o que eu estava a fazer e o que os bailarinos estavam a fazer com os seus corpos. A câmara de certo modo quando os olha também dança com eles, foi algo que me deu muito prazer. Dos convites que tenho recebido este parece-me que foi aquele que se enlaçou melhor com o meu ofício de fazer filmes.
Há neste filmes, e noutros anteriores, uma enorme atenção a detalhes, a pormenores: pequenos gestos, a coisas muito pequenas. Isto é algo que tem origem no teu trabalho como fotógrafa?
Sim, talvez veja da atenção de quem fotografa que tem que estar atento às imagens que o rodeiam, mas também é capaz de vir da forma como eu trabalho em que estando sozinha tenho espaço para reparar em muitas coisas – não estou tão constrangida com os colegas, com o assistente de imagem, com a pessoa do som ou da produção… Esse constrangimento, que é maravilhoso por te poder levar a outros sítios e a fazer outras coisas mais complexas, aqui, por estar estar sozinha no silêncio, no pensamento e no olhar, não está está presente e dá-me espaço para procurar os detalhes. E os detalhes são elementos narrativos.
Na tua trilogia de ficção [Fim-de-semana (2007), Um Dia Frio (2010) e Luz da Manhã (2012)] há uma unidade enorme entre os três filmes, há muitas personagens que se reencontram ou espelham e há ainda um elemento, a água, que se repete em todos. E agora o teu novo filme, Ama-san, é sobre mergulhadoras. Sentes que há um conjunto recorrente de obsessões e preocupações que te vão aparecendo de filme para filme?
Há gostos. Gosto de alguma coisas e se calhar recorro a elas. Todos os realizadores tendem a repetir coisas, ou melhor, a explorá-las: ainda não está, deixa tentar outra vez. Uma insatisfação, um desejo de usar um material que ainda não está suficientemente apurado e por isso na vez seguinte já vou ter mais atenção. Não é um processo muito consciente, só quando estou a escrever é que reparo que já estou a escrever o mesmo, ou que já estou a filmar algo que já tinha filmado. Mas convenço-me de que vai ser diferente dessa vez. Não acho que seja obsessão, é algo que me acompanha. Quanto à trilogia ela não começou como tal, evidentemente, só no final é que eu achei que era bom fechar. São objectos que não sendo muito parecidos se tocam todos em algum lugar e por isso cheguei a um ponto que disse para mim que já chegava, e chamei-lhes uma trilogia. Não foi algo muito pensado. E agora volto ao mar, mas volto num contexto muito diferente, fora do meus país e já não é água fechada é uma água infinita, imensa, e também já não é uma família, é um grupo de mulheres cada qual com a sua família.
Mais uma vez o lado coral.
Neste filme há mesmo um grande coro. Se calhar é mais do mesmo da trilogia, mas com uma nova maturidade, com novos elementos. Estamos sempre a crescer, sempre a experimentar e por vezes há coisas que ficam pelo caminho: isto foi um disparate, isto pertence a um tempo, isto foi uma experiência. Mas há coisas que se perpetuam, a água perpetua. Parece mesmo uma obsessão, algo por resolver. Eu gosto de água, cresci perto de água e foi sempre um elemento muito presente ao longo da minha vida, ficou. Aos olhos dos outros é algo extraordinário mas para mim, na minha vida, não é. É como comer, faz parte, não me é surpreendente.
Olhando para a tua obra, um aspecto torna-se evidente: uma parte significativa dos teus filmes não é financiada da forma tradicional através dos subsídios do ICA. Vários são resultado de encaixes sucessivos de diferentes apoios, e mesmo o mais recente, Ama-san, que recebeu subsídio faz parte de um projecto de fotografia para a Fundação Oriente, que por sua vez foi editado em livro e resulta também de uma co-produção com a Suíça. Parece-me que há um trabalho exaustivo por formas alternativas de financiamento.
Achas? Eu só vivo disto, por isso se eu não tiver forma de fazer filmes não tenho como viver e eu gosto mesmo do que faço. Há filmes, que sendo encomendas, trazem consigo formas de financiamento muito próprias: o No Escuro é financiado pela própria Companhia Nacional de Bailado, o Semear do Tempo é financiado pelo Centro Cultural de Belém e pela Fundação Champalimaud e portanto são convites que trazem já a forma de trabalho. Os projectos mais ambiciosos têm sempre vivido à custa dos financiamentos do ICA. Mas é possível fazer filmes mais pequenos, pelo menos para o meu tipo de cinema. Há realizadores que não tem a mais valia que eu tenho de ser eu mesma a filmar, o que não sendo uma grande qualidade minha, é uma característica e sempre reduz mais uma pessoa à equipa e permite financiamentos mais baixos que se centram quase só no meu trabalho. Quase como um artista plástico que recebe financiamento para fazer uma obra, e funciona assim, quase como um objecto isolado no qual não posso depender de muito mais pessoas. Neste filme da dança, apesar de ter tido uma equipa um pouco maior, durante um ano tinha só mais uma pessoa, a Adriana Bolito que fez o som. E muitas vezes eu ia sozinha filmar. Tem que ser possível fazer filmes de outra forma, eu tenho que conseguir e além disso gosto de adaptar a forma ao contexto financeiro. Ainda assim eu sinto-me muito dependente dos ICAs e de todas as estruturas, gostava que houvesse mais frentes.
Achas que esta forma de financiar os filmes te leva para caminhos menos narrativos e mais experimentais? O Semear o Tempo é muito diferente de tudo o que tinhas feito…
Sim, há uma ruptura. Foi uma experiência perceber de que forma podia trabalhar algo menos narrativo, e foi bom porque me obrigou a sair dos meus filmes, como se houvessem duas linhas paralelas: os meus filmes narrativos (ficções ou documentários) e ao lado os convites em que podes experimentar outros materiais e depois trazê-los para casa. E assim, quando tiveres o dinheiro à conta sabes que podes repetir certas soluções porque da outra vez já funcionou. Esse Semear o Tempo foi uma experiência absoluta, eu sinto que funcionou mas não sei se conseguiria transpor nada para aqui. Mas essa é a grande vantagem destes trabalhos, que te permitem experimentar coisas diferentes.
Em seis meses tens três filmes, uma curta e duas longas metragens. Sentes que se influenciam uns aos outros, é algo que procuras que aconteça ou que tentas evitar?
Mas também estive tanto tempo sem estrear filme nenhum… Se calhar influenciam-se, mas ainda não tenho distância. De qualquer forma os três filmes são muito muito diferentes, talvez a proximidade entre eles me tenha abrigado a diferenciá-los muito. Assim de repente não vejo o que é que este filme da dança tem de próximo com o filme das Amas. Talvez se sinta que sou eu, que a forma de filmar é a minha, mas formalmente… não sei.
De facto eu estive aqui a identificar características comuns ao longo dos teus filmes, mas embora elas lá estejam eu sinto que eles são todos muito diferentes. Há um recomeço a cada projecto que por acaso termina em lugares já conhecidos?
Sim, mas não é por acaso, porque sou eu que carrego essas coisas todas comigo. A memória está viciada… não é viciada, está muito presente no meu olhar. Mas eu tento que cada oportunidade me deixe fazer coisas diferentes, não vou repetir uma coisa que já vivi. Tento sempre que seja diferente, mas de qualquer modo sou eu, sempre eu, e há-de haver uma personalidade que atravessa todos os filmes… Sou eu, devo ser eu.