Em suma, a grande fadiga da existência talvez não passe do enorme esforço que fazemos para continuar vinte, quarenta anos ou mais razoáveis, para não sermos simplesmente, profundamente nós próprios, isto é, imundos, atrozes, absurdos. Pesadelo de termos sempre que apresentar como ideal universal, e super-homem de manhã à noite, o infra-homem claudicante que nos deram.
Céline
Um comprimido de Cloxam 1 mg contém 1 mg de cloxazolam. Um comprimido de Cloxam 2 mg contém 2 mg de cloxazolam.
Autor anónimo (in Cloxam. Folheto Informativo)
Seria de esperar que, desde a última vez que escrevi neste tabernáculo (já lá vão três meses), me tivessem ocorrido várias ideias para alimentar esta crónica. Ideias até houve – por exemplo:
– a de dissecar o conteúdo político das cerca de oito horas que compõem o Hitler – ein Film aus Deutschland (Hitler – Um Filme da Alemanha, 1977) do Syberberg (estou aborrecido só de pensar nisso);
– a de passar em revista os melhores gags dos filmes dos ZAZ [continuo a achar que o Airplane! (1980) e o Top Secret! (1984) são duas obras-primas)];
– a de fazer uma análise comparativa entre o All About Eve (1950) do Mankiewicz e o Showgirls (1995) do Verhoeven (tese: são o mesmo filme, mas um deles tem mais maminhas do que o outro).
Trata-se aqui de um conjunto de interessantíssimos projectos, cuja materialização implicaria, desde logo, que eu me tivesse dado ao trabalho de rever qualquer um dos filmes sobre os quais tencionava escrever – o que, por «motivos de vária ordem», nunca chegou a acontecer.
Entenda-se: um gajo acorda de manhã (invariavelmente atrasado), ingere à pressa uns cereais manhosos comprados no Pingo Doce (ao mesmo tempo que tenta beber um café e fumar um cigarro), faz-se à estrada de olhos semi-cerrados, estaciona o carro no parque de estacionamento de um centro comercial desertificado, e passa o resto da manhã a ver filmes que, na maioria dos casos, preferia não ter visto (como “A Queda de Wall Street”, cujo realizador, Adam McKay, sofre do síndroma da toupeira espástica: ao escavar, não vê ponta de um corno, mas mexe-se freneticamente em todos os sentidos). Quanto às tardes, essas, ficam reservadas para a leitura de coisas como o De Hebdomadibus do Boécio, que – acho eu – me ajudarão a concluir uma tese cujo verdadeiro tema ainda estou para perceber qual possa ser.
Dir-se-á que me sobram as noites. Certo. Acontece, porém, que fui equipado à nascença com um intelecto intermitente: moderadamente inteligente no período que medeia entre as 12 e as 22h, assemelho-me nas horas de vigília que sobejam (não faço a menor ideia de onde saiu este verbo) a um dos zombies dos filmes do Romero (consigo comer e andar aos tombos de um lado para o outro, mas não consigo fazer muito mais do que isso). Nessa fase de torpor vegetativo, das duas, uma: ou me divirto a contratar jogadores para o Belenenses no Football Manager (presentemente, estou de olhos postos no Edu, ponta de lança brasileiro do Joinville que tem um longo historial de lesões), ou deixo-me hipnotizar pela televisão, fugindo como o diabo da cruz de tudo o que vagamente me cheire a «cinema com substância» (a última coisa que quero, a essa hora, é cruzar-me com o Tarkovski, o que, de todo o modo, não seria provável).
Estou ciente de que, nesta casa, há quem se esfoce (e muito bem) por desenterrar as pérolas escondidas nos confins da televisão. Mas, nesse domínio, estou do lado do Profeta Boavida: quero apenas que a televisão me dê «mais acção e mais divertimento».
Ora, no que ao «divertimento» diz respeito, tenho de fazer uma chamada de atenção para o melhor programa de humor que vi desde a última vez que o Doutor Pedro Arroja deu uma entrevista. Falo aqui do inadjectivável Ancient Aliens: uma série «histórico-documental» incluída na programação do Canal História (o melhor para as insónias), onde um grupo de «investigadores do paranormal» se dedica a reinterpretar a história das civilizações antigas à luz de um princípio promissor: a de que todas elas – sem excepção – foram visitadas – ou até concebidas – por extra-terrestres (trata-se, portanto, de um programa produzido pelo clube de fãs do Stargate (1994) do Roland Emmerich).
Das hipóteses avançadas pelos vários “especialistas” que intervêm em Ancient Aliens, está invariavelmente a ideia de que o homem antigo era incapaz de pensamento simbólico.
Na base das hipóteses avançadas pelos vários «especialistas» que intervêm na série (gosto particularmente das do Giorgio Tsoukalos, cujo penteado tento imitar sempre que saio de casa), está invariavelmente a ideia de que o homem antigo era incapaz de pensamento simbólico, encontrando-se assim condenado a representar apenas os dados imediatos da sua própria experiência. Posta em marcha esta linha de raciocínio, conclui-se então 1) que os grandes textos mitológicos e/ou religiosos abundam em relatos de encontros entre os homens antigos e criaturas extra-terrestres (a alegoria bíblica da transformação da mulher de Lot numa estátua de sal? – Um modo de dizer que um ataque nuclear foi levado a cabo por alienígenas durante a destruição de Sodoma e Gomorra); 2) que toda a arte primitiva de carácter sincretista (estátuas de divindades híbridas, por exemplo) faz prova da realidade dos seres que representa.
Poder-se-á julgar que o potencial humorístico da série se esgota depressa (de facto, uma vez percebida o princípio da coisa, tudo o resto decorre de maneira automática). Verdade. Mas, aquilo que nela mais graça tem é, precisamente, a sua lógica repetitiva, a sua capacidade de recriar ad nauseam (e de levar às últimas consequências) a mesma tese mentecapta (as linhas de Nasca? – Um aeroporto construído para acolher extra-terrestres; as pirâmides do Egipto? – A sua construção não teria sido possível sem o contributo de uma civilização tecnologicamente avançada; e assim sucessivamente, até chegarmos à teoria da relatividade, à mão de Vata e ao cinema do Von Trier).
E agora, se me dão licença, vou tratar de coisas sérias e concluir a transferência do Edu. Quanto à minha consciência, essa, reabrirá ao público nos próximos meses, com nova gerência (parece que há uma senhora residente em Arcozelo que está interessada em comprá-la em hasta pública).
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