Em 1938, um cidadão norte-americano para obter um garrafão de tinto já não precisava de se embrenhar em vielas escuras, descer umas escadas até à porta de uma cave bafienta, dar uma contra-senha e pagar uma exorbitância. A famigerada Lei Seca fazia tijolo há já cinco anos, permitindo que toda uma nação se voltasse a embebedar legalmente. Mas o seu impacto foi tão grande, que no cinema de Hollywood, mais especificamente num estúdio (Warner), se continuou alegremente a fabricar filmes direta ou indiretamente afectados por ela. O James Cagney e o Edward G. Robinson não entraram em dois ou três.
Mas se a Lei Seca [cuja obra-prima sobre nem é dos caponianos anos trinta, mas de 1984, chamada Once Upon a Time in America (Era Uma Vez na América, 1984)] dava o toque de finados, uma outra severa lei entrava a todo o vapor na mundana vida yankee, especificamente no mundo dourado do Cinema. Era uma lei que bem poderia ter sido escrita em tábuas tal e qual como as que foram proferidas por Deus a Moisés, tal era a abundância de justos e equilibrados conselhos sobre o que mostrar e, sobretudo, como enquadrar tal e tal assunto na magia da tela. Fartos do irresponsável regabofe nos estúdios, a sociedade pressionava a indústria a criar um código de conduta. Estava criado o Código Hays, que bem poderia ser novamente aplicado nos dias de hoje. Ainda seríamos capazes de voltar à “era dourada” ou assim. E seria tudo bem mais perverso.
Angels with Dirty Faces (Anjos de Cara Negra, 1938), precisamente do acima mencionado ano de graça de 38, portanto, na parte final da década do gangster movie e dos seus Robinsons, Munis e demais bandidagem, é um exemplo perfeito de como o dito código criava uma teia moral(ista) para as suas personagens fora-da-lei sem que, no entanto, a ambiguidade e o fascínio pelas mesmas fossem matérias olvidáveis. Uma das razões era, evidentemente, o carisma do star power melífluo de Cagney, capaz de sugerir desordem mesmo que interpretasse o mais ímpio dos curas da aldeia. A outra, bem mais importante, estava na génese do próprio código, que, bem alicerçada nos valores cristãos, dava necessariamente guarida a todas as tentações e proezas diabólicas. Daí a posteridade não ter colocado como ícone o padre Jerry Connoly (Pat O’Brien), mas sim o Rocky Sullivan de Cagney, que tem a sua “redenção” num dos mais interessantes finais de Hollywood, tão interessante e tão problemático que nem sequer sabemos se essa redenção chegou mesmo a existir. Questões apenas de luzes e sombras.
Volta-se, no entanto, ao princípio: como acreditar nestes supostos benefícios sociais quando quem mos administra anda com uma bolsa de 100 mil dólares, amontoados graças à ultrapassagem das barreiras da lei?
Essa relação ambivalente entre o deleite pela fuga das normas e o sentido de acatar as ordens sociais está impressa na conexão que se vai estabelecendo entre Rocky e um grupo de miúdos pés-descalços das ruas de Nova Iorque, interpretados pelo colectivo de jovens actores The Dead End Kids. Não é, por mais que tente, o padre Connoly que lhes vai incutir as normas de uma vida regrada e de amor ao próximo, mas sim, paradoxalmente, o rufia Sullivan, embora nunca (ainda bem) fique claro se tal acto se deva a uma genuína preocupação com o futuro da pitalhada (relembrando o seu próprio passado), se por mero favor ao seu amigo Jerry. Volta-se, no entanto, ao princípio: como acreditar nestes supostos benefícios sociais quando quem mos administra anda com uma bolsa de 100 mil dólares, amontoados graças à ultrapassagem das barreiras da lei?
Cagney tem a resposta: com porrada. Tanta porrada que se crie no subconsciente dos miúdos a aceitação de qualquer palavra vinda da boca de Rocky. Os dead end kids como reflexo da própria audiência, tão enamorada pelo campo magnético de Cagney que também ela leva pancadaria com muito agrado e que por fim sucumbe à máxima “according to rules” ditada pelo meliante. Estamos com os petizes a levar estaladas e bordoada na partida de basquetebol, onde o bom senso é metralhado através de uma sonoplastia que poderia muito bem entrar numa qualquer comédia dos Three Stooges ou num desenho animado do Avery. Mais febril que isto só aparecerem balões a anunciarem “BANG!” ou “POING!”. Um rapazola diz “fault!” em planos reminiscentes de um mudo soviético. A Ann Sheridan ri. E o Michael Curtiz faz a sua mise-en-scène energética, bruta e sem desperdícios. Tal como as berlaitadas de Rocky. Fault!
À distância, e fazendo uma sumaríssima panorâmica sobre esse período da história do cinema norte-americano, filmes como Angels with Dirty Faces, Little Caesar (O Pequeno César, 1931), The Public Enemy (O Inimigo Público, 1931) ou até o Scarface (Scarface, o Homem da Cicatriz, 1932) do Hawks, por mais virulentos que fossem, transportam em si um prazer e uma joie de vivre que seriam quase integralmente terraplanadas na década seguinte, quando um outro género de “filme de gangsters” começou a ditar as suas leis, muito mais soturnas e sem caminhos reconciliatórios à vista. Provavelmente, se um desses protagonistas da década seguinte encontrasse um grupo de miúdos a dar-lhe cabo da cabeça, não seriam certamente lições educativas que lhes daria. Só agora me lembro: o Curtiz nesse mesmo ano de 1938 fez o The Adventures of Robin Hood (As Aventures de Robin dos Bosques, 1938), com o Flynn. Poderá ter havido melhor homem de estúdio na história?