Povoam o nosso imaginário. Essas montanhas fofas de branco que preenchem os céus. E que se movem suavemente para nos lembrarem, quando para cima olhamos, que nada está parado; que todos nós viajamos na nave espacial Terra. São de uma beleza de tirar o fôlego e o cinema gosta delas, do seu movimento e do seu “jogo de formas”. Falamos aqui das nuvens. Colheradas de nuvens.

Considere um filme, nos dias de hoje, que consiga abordar a temática da degradação progressiva do ambiente pelas actividades do homem e em especial da atmosfera, a par de comentários incisivos sobre a forma como os emigrantes são tratados pela sociedade (deglutidora), ou como a televisão modela a imagem humana formatando-a, lançando ainda farpas sobre os perigos dos alimentos modificados geneticamente, colocando evidentes as consequências da crise económica dos países industrializados no novo milénio, e melhor que isto, conseguindo ter como “fundamento teórico” uma dissertação sobre a influência (e dependência) da tecnologia na modernidade, sem no entanto fazer qualquer juízo de valor, apresentando ambos os lados de uma questão profundamente dicotomizada. Se um filme fizesse isto e fosse acessível para uma criança de 4 anos, então deveria ser uma obra-prima, e é, chama-se Cloudy with a Chance of Meatballs (Chovem Almôndegas, 2009) realizado pela dupla Chris Miller e Phil Lord – que entretanto fizeram o igualmente equilibrista The Lego Movie (O Filme Lego, 2014). Mas não pense que o filme é cansativo na sua estrutura de denúncia, muito pelo contrário, este é um maravilhoso objecto de entretenimento, sem pretensões de qualquer nível e mais do que isso, profundamente divertido. Ficou-me portanto, mais do que qualquer outro, um gag: em Inglaterra uma tempestade de comida é quando chove Earl Grey.
Ricardo Vieira Lisboa

As histórias mais encantadoras e encantatórias efluem das nuvens. E houve uma certa época do cinema (a década de 1940) que parece ter firmado um contrato imaginário entre o céu e a terra. A Matter of Life and Death (Caso de Vida ou Morte, 1946), The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947), A Guy Named Joe (Um Certo Rapaz, 1943), The Horn Blows at Midnight (1945) são algumas dessas histórias. Portrait of Jennie (O Retrato de Jennie, 1948), de William Dieterle, não traindo as origens categóricas (pertence ao final da década), é das mais hipnotizantes experiências cinematográficas de qualquer tempo. Este plano, que apresenta apenas uma concentração nebulosa – como se fosse visto da janela de um avião – é o primeiro plano do filme, aquele que magnetiza o nosso olhar, com o precioso recurso a uma voz off que começa por dizer: “What’s time? What is space? What is life? What is death? Since the beginning, men has looked into the infinity and asked the eternal questions”. Jennie (Jennifer Jones) é o ser que vem do lugar onde estas interrogações permanecem suspensas, vaporosas. Jennie desce à terra para oferecer o rosto a um quadro e fazer bater o coração do pintor (Joseph Cotten). Já agora, Jennie é a personagem que o produtor e futuro marido de Jones, David O. Selznick, lhe quis oferecer, em jeito de elogio pela arte (“caíste do céu”). Além disso, Jennie não deixa que acordemos do transe que começou neste plano das nuvens, porque canta, aqui e ali: “Where I come from nobody knows and where I am going everything goes…” Um tom quase psicadélico, que nos deixa presos nas “malditas” nuvens – ainda que tudo, aparentemente, se passe em solo estável.
Inês Lourenço

Tentar escolher um plano de nuvens de Wings (Asas, 1927) de William Wellman é coisa tão ingrata como cometer a mesma loucura com a pintura de Turner. Talvez o mesmo caos romântico, o mesmo medo do utilitarismo e da devastação racional trazida pela guerra, ajudem a explicar o paralelismo. Hesito entre as imagens dos céus enevoados, cortados a meio pelo voo em bando dos aviões-pássaros-de-metal, e os planos das “pinceladas” dos aviões em chamas, em queda livre, esborratando com o fim eminente as esborratadas nuvens. Hesito tanto que acabo por escolher nuvens mais homogéneas, com os aviões dos nossos heróis e amigos, lado a lado, David e Jack. O primeiro vai morrer e por embaciamento da visão do segundo. O plano já mostra esses aviões negros sobre as nuvens brancas como duplas cruzes que avançam no céu. Jack nunca soube ver, por entre o gasoso das nuvens e os eflúvios borbulhantes do álcool, quem o amava de verdade. Por isso não vai reconhecer o amigo, pois este pilota um avião alemão, nem vai perceber que é Mary (Clara Bow) a mulher que por ele espera. Já David soube aprender a lição do colega Gary Cooper que sabia que morrer era uma coisa que nem os amuletos da sorte podiam evitar. Filme de ar, de gases — nuvens, bombas, fumos, borbulhas de champagne — mas também de pesos, de matérias da terra. O corpo do soldado interpretado por Willam Wellman a cair morto com um cigarro na boca, a imobilidade do pai de David, peso na cadeira de rodas, e os corpos carregados, caídos, e, finalmente, a câmara nas trincheiras a filmar as lagartas do tanque a passar por cima do buraco por onde vemos. As nuvens de Wings têm qualquer coisa de destino trágico pintado pelos deuses, mas também algo de sonho leve, doce e fantasmático. O plano que melhor o ilustra aqui não está para muita pena minha. Mas descrevo-o: é aquele em que vemos na terra os soldados alinhados a perder de vista, a caminhar em direcção à negra sombra da guerra, e nos céus, “projecta-se” o filme do futuro que os aguarda, as histórias de batalha para os quais se dirigem. The sky is the screen.
Carlos Natálio

Não escolhemos este plano por ser o mais bonito de Creed (Creed: O Legado de Rocky, 2015). Na verdade, como alguém muito apaixonado que aproveita qualquer razão para falar sobre a pessoa amada, também nós nos aproveitámos do tema proposto (e das escassas nuvens que se vêem neste plano, lá ao longe) para voltarmos a Rocky, às ruas de Philly, à obstinação de Adonis, à porta de casa de Bianca às três horas da manhã com aqueles graves a estoirar e uma voz a sibilar “I like when you grip”. Não foi fácil, de facto, encontrar nuvens em Creed , mas quem disse que o amor era fácil? Adonis, depois do primeiro encontro com Rocky, e no fim de mais uma corrida pela cidade que ainda não conhece, passa pelo restaurante como quem não quer a coisa, como se estivesse só de passagem, ali ao virar da esquina. Sabemos – e Rocky também – que não é assim. Numa admirável mise en scène, Adonis insiste com Rocky para ele o treinar enquanto lhe dá uma ajuda a retirar os móveis da carrinha, enérgico e bem-disposto. Surge, logo aqui, a primeira manifestação do elo sinalagmático geracional e fraternal que marca todo o filme: eu ajudo-te na tua velhice (os móveis, primeiro; a doença, depois) e tu ajudas-me na minha juventude (os treinos, primeiro; a namorada, depois), pode ser? Ainda não será desta que Rocky se “renderá”, que voltará ao ringue, mas acede em dar-lhe algumas dicas, que regista no papel, não reparando que Adonis as reescreve, ao mesmo tempo, no smartphone. Despedem-se e Rocky entrega-lhe a folha, que Adonis rejeita, dizendo-lhe, já retomando o passo de corrida, que tem o que precisa no smartphone. “E se o perdes?”. “Já estão na cloud, não há problema!”. Rocky fica confuso: na cloud? Como assim? Olha para o céu, claro, e nós, espectadores, rimo-nos com gosto, com ternura. O mesmo gosto e ternura com que os olharemos no plano final acima (“raccord de quarenta anos entre um Stallone a correr fulgurantemente pelas escadas e o mesmo a precisar de ajuda para o fazer”, como aqui se escreveu), felizes e fraternos. Estão, já adivinharam, na cloud nine, ou, se preferirem… nas nuvens.
Francisco Noronha