Há três anos que escrevo para esta crónica. Sem uma única falta. Nada me tem impedido de continuar a programar esta Civic TV. Portanto, nem mesmo os afazeres que me trazem à capital gelada da Escandinávia me vão impedir de prosseguir com a boa tradição. Mas como escrever sobre cinema na televisão portuguesa a partir de um quarto de hotel em Estocolmo? “Homem previdente vale por dois”: falando de dois filmes que passaram, há umas semanas, nos canais TVCine, no âmbito de um ciclo dedicado a um cineasta que, por muito longe que eu esteja, estará sempre perto, na medida em que é um dos homens responsáveis pela minha cine-patriação: Wes Craven. Os canais TVCine programaram uma pequena maratona de filmes que tinha uma particularidade: não se limitou aos títulos maiores da filmografia do realizador de Scream (Gritos, 1996) e A Nightmare on Elm Street (Pesadelo em Elm Street, 1984), permitindo, deste modo, que eu respondesse a duas faltas: as de nunca ter visto os supostos “filmes menores” Swamp Thing (Perigo no Pântano, 1982) e The Serpent and the Rainbow (A Maldição dos Mortos-Vivos, 1988).

Se há cineasta que melhor representa o triunfo da menoridade no cinema esse cineasta é Wes Craven. O que quero eu dizer com “menoridade”? Peço auxílio ao conceito tal como usado por Gilles Deleuze (e Félix Guattari) a propósito de Kafka e da sua “literatura menor”. Para o filósofo francês, a menoridade implica um qualquer “deserto” na linguagem: “(…) força de aridez e de sobriedade, de penúria prescrita (…)” (Kafka: Para uma Literatura Menor, Edição Assírio & Alvim, p. 43). Parece-me que Wes Craven opera sobre este sentido, “desterritorializado”, de pobreza – um sentido que chega a ser desarmonizante – no seio do cinema mainstream que abraçou desde o sucesso popular de The Hills Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977). A rudeza selvagem (a “incorrecção léxica”, para retomarmos a ideia de Deleuze), própria de quem não sabe – nem quer saber – perfeitamente ler ou escrever, inscrita num filme como The Last House on the Left (1972) – que se inspirara precisamente num filme da linguagem maior, o clássico de Ingmar Bergman, Jungfrukällan (A Fonte da Virgem, 1960) – não deixará de ser o ponto originário da arte de Wes Craven. É essa espécie de bruta desregulação das boas regras – de ser e bem parecer – que vai desestabilizar a obra de Craven até ao seu último filme, o completamente auto-sabotado Scream 4 (Gritos 4, 2011).
Falo desta “menoridade intrínseca” para chegar aos seus filmes menores. Eles são, na realidade, tantos que quase apetece dizer que toda a obra de Craven caminha para um irredutível estado de menoridade do e no seu cinema. Mesmo alguns dos “clássicos indesmentíveis”, isto é, plenamente assimilados pela Cultura, foram, entretanto, batidos pelo tempo – o primeiro The Nightmare on Elm Street quando comparado com o último, New Nightmare (O Novo Pesadelo de Freddy Krueger, 1994), acaba por se revelar uma compilação de sustos com pouca capacidade para surpreender o espectador dos dias de hoje. Sobram esses mui famosos filmes menores. E aí as escolhas são várias. Craven não é “grand maître” nenhum, apesar de por vezes (e essas vezes valem ouro) dar ares disso, com uma confiança desmesurada, fingindo ser quem verdadeiramente não é. Exemplo? Não é a sequência de abertura de Scream paradigmática de construção dramática levada à perfeição pelo “mecanismo hitchcockiano”? Mas Craven é o cineasta da menoridade em 90% do tempo. Tudo nele é quebradiço, inconstante e é jogado no limite da credibilidade. Posto de outra maneira: ele nunca se leva muito a sério.
A menoridade de Craven atesta-se nesses momentos, que servem de pontos de fuga à sua aparente, inarticulada e, por vezes, grosseira banalidade.
Não é que Craven seja o típico – e tanta vezes cínico – cineasta da paródia. Muito pelo contrário: o seu amor pelo cinema é genuíno e há até uma preocupação, anormal no campo do terror, com os destinos das suas personagens. Contudo, Craven não se deixa amarrar a grandes pretensões. Ele é um agitador de fórmulas, por vezes dinamita as próprias fórmulas que criou para o seu cinema e, acima de tudo, para “o cinema dos outros” – muitas foram as vezes em que foi copiado dentro de uma postura que nunca reclamou, a do Professor que dita lições à turma de bons alunos. Pois bem, Swamp Thing e The Serpent and the Rainbow não têm boas lições a dar, a não ser o pequeno divertimento subjacente à senda dos protagonistas, que precisamente consiste numa narrativa de obtenção de poder máximo mediante o controlo absoluto sobre “as fórmulas da vida”.
Swamp Thing é uma adaptação BD que vagamente readapta a história de Creature From the Black Lagoon (Monstro da Lagoa Negra, 1949) de Jack Arnold. Temos a mesma historia de “A Bela e o Monstro” numa versão modernizada em que um magnata sem escrúpulos tenta lançar as suas garras maléficas a uma fórmula química que permite gerar uma nova espécie de vida capaz de resistir às condições ambientais mais extremas. Nunca se citou tanto Nietzsche num filme de terror. Das palavras do vilão Arcane, interpretado pelo icónico actor clássico Louis Jordan, saem tiradas aforísticas dignas de um Vontade de Poder; formas de elogio a uma vitalidade que este espera vir a obter após deitar mãos à tal fórmula. O filme é uma reflexão sobre a relação de forças entre amor, poder e ciência. Ia escrever que mantém o espírito série B, ligeiro ou despretensioso, do clássico de Arnold citado acima, mas acho que o leitor que chega a esta frase já percebeu até onde quer ir o cinema de Craven: nem um centímetro acima do nível lowbrow.
Muito mais desconchavado é The Serpent and the Rainbow, que retoma algumas destas questões – vida, morte, amor e ciência – mas desta vez gozando de outro nível de produção. The Serpent… custou mais de o dobro de Swamp Thing. Todavia, quanto maior a produção, maiores são os riscos de destrambelhamento. Esta espécie de falso “filme zombie“, sobre um cientista encarregado de tornar comercialmente viável a feitiçaria zoodoo haitiana que devolve os mortos à vida, é uma colecção algo desligada de sequências de terror, relativamente hábil na mistura que faz entre sonho e realidade – a boa escola de Freddy Krueger? -, mas que corre a mil à hora. A sensação de “passo apressado” parece esconder alguma coisa. Leio que a montagem tinha inicialmente três horas, mas que Wes Craven acabou por a encurtar substancialmente para a tornar mais comestível pelos olhos do grande público – o grande público = o grande zombie. Pois bem, esse lado “esburacado” está bem presente no produto final. Mesmo assim, nele se preserva um certo charme, muito devido ao horror corporal e onírico-psicológico presente nalguns momentos. É isso: a menoridade de Craven atesta-se nesses momentos, que servem de pontos de fuga à sua aparente, inarticulada e, por vezes, grosseira banalidade. A fórmula do cinema de Craven encontra-se algures por aqui. E nem sempre é fácil de controlar e de comercializar.