Mais uma chapa, mais uma voltinha. A caminho de Berlim para uma das maiores comitivas portuguesas de sempre no festival – só será alegremente a caminho assim que os pés regressarem a chão firme. O nosso cinema vai bem e recomenda-se, ou não iriam sentados à minha frente João Soares e António Costa, na fila 6 e 4, respectivamente. O facto de estarem no mesmo avião que eu tem um efeito valium: duvido que este aparelhómetro tenha a ousadia de se mandar céus abaixo com os recém-empossados primeiro ministro e ministro da cultura lá dentro (recuso a piada fácil, ainda não baixou em mim um comediante português). Isto a juntar à catrefada de programadores, produtores, realizadores e outros profissionais do sector que para aqui vai nas filas mais abaixo, torna impossível um azarito do género. Acabava-se o cinema em Portugal, querem ver. Estou a tentar focar-me em tais evidências enquanto o avião abana que nem um pudim.
Trago comigo para esta crónica o que será possivelmente o coração mais estilhaçado de todos os tempos e que está a nu em Kate Plays Christine (2016) de Robert Greene – filme seleccionado para o Forum, a secção mais interessante da Berlinale. O filme de Greene não pesa – como uma banal lamentação dramática com base em tragédia real – mas destrói, reconstituindo passo a passo os últimos meses, dias, minutos da existência de Christine Chubbuck. Chris, como carinhosamente lhe chamam, ficou para a história como a pivot de informação de um canal local de Sarasota, na Florida, que se suicidou em directo em 1974. Não se consegue arrancar o sistema nervoso central do filme, a morte é a espinha dorsal que o une, mas é absurdamente redutor fechar o filme no retrato deste macabro episódio. Há apenas um registo (que nunca chegamos a ver, embora tenhamos tempo a mais para o temer) hoje na posse da família do então director da estação. Esta cassete existe devido a uma metódica mas sintética planificação: a emissão foi gravada a pedido da pivot, enquanto todos à volta ignoravam os sinais e o desfecho da sua tormenta. Hoje seria impossível fugir à brutalidade visual deste acto, embora ele conserve ainda o trágico impacto. Sentimos gratidão por este acontecimento ter sido contido num tempo em que as imagens não eram partilhadas e reproduzidas ao infinito quase de imediato.
Robert Greene não se fechou num círculo que por si só seria indefensável, a efabulação de um suicídio, e fez a escolha perfeita para o ajudar nesta tarefa de ampliação: Kate Lyn Sheil, presença regular no cinema independente dos últimos anos, participa activamente na documentação do doloroso processo de solidão de Christine, através de entrevistas, conversas e reenactments. Recuso-me a usar a palavra performance, evocada até à exaustão nos textos sobre Actress (2014), também deRobert Greene, ou Kate Plays Christine. É apenas mais uma categorização que cai por terra neste filme em particular, que deixa de depender do terreno da premeditação (no pun intended) para resultar eficazmente: não sabemos se Kate é dirigida para ajudar a materializar Christine, se para se transformar nela. Não sabemos se está a ser dirigida para sofrer com a mórbida curiosidade de quem aguarda a confirmação visual de uma existência que definha por falta de amor, se se revolta contra o realizador, a câmara e o espectador, hienas peladas e encardidas à espera das sobras.
Disclaimer: aí vem mais uma afirmação categórica completamente errada e que se assemelha a um reles tique de escrita – vou sucumbir ao processo attention-whore-textual, vá, perdoem-me. Robert Greene é responsável pela invenção do reenactment moderno no cinema, uma espantosa transformação da realidade em ficção, terreno que não interessa etiquetar, de tão excitante que é de descobrir minuto a minuto. Outro posicionamento categórico passível de combustão espontânea é o argumento de que é entre a realidade e a ficção que se produzem neste momento os filmes mais interessantes, creio que já o disse aqui. O terreno da realidade talvez seja menos enlameado para quem deseje cumprir um projecto verdadeiramente original. E os documentários têm mais facilmente algo a seu favor – uma descoberta, um tema que nos poderá interessar por razões subjectivas, informação nova a reter. Uma má ficção exaspera, destrói, cansa mil vezes mais que um mau documentário. É sentir o fígado a guinchar a cada insert a despropósito, a vesícula a esgadanhar a cada frase pseudo-confessional e – no meu caso – o líquido amniótico a borbulhar a cada solução de guião. Veremos, acredito, mais à frente qual será o caso de Christine, filme de Antonio Campos sobre o mesmo tema e estrondosa coincidência já que nenhum dos dois realizadores da indie major league sabia da existência do filme do outro.
Inegáveis dois factos: 1. é impossível inserir a palavra douchebag neste texto, como prometi que ia fazer desde a primeira crónica. 2. Kate Plays Christine é um filme muito inteligente. Até ao final – equilíbrio precioso que tantas vezes chacina a dignidade de um animal que sempre esteve de pé e cai redondo sem aviso. O filme termina com a encenação do suicídio de Chris em directo. Já no limite das forças, fazemos um exercício de imaginação de impotência perante o gatilho da arma obviamente carregada com blanks. O medo é esmagador, mesmo na plena consciência da ficção, por estar associado a uma intrínseca verdade.
Christine Chubbuck (um acto falhado faz com que escreva primeiro Kate), nas únicas imagens reais dela a que temos acesso – uma entrevista gravada em estúdio pouco antes da sua morte – profere outras palavras quaisquer que não as suas finais. Mas o cérebro insiste em recordar que a vimos dizer a frase tantas vezes ensaiada por Kate Lyn Sheil e outras personagens do filme: “In keeping with Channel 40’s policy of bringing you the latest in blood and guts, and in living colour, you are going to see another first: an attempted suicide.”
She said “attempted” because she couldn’t be absolutely certain of success and was, by all reports, a good journalist.
O avião inicia a descida, é tempo de enfrentar a neve e a intempérie. Tudo por filmes como este, que venham mais.