Escrevia há um ano que Joe Swanberg era “provavelmente o melhor de todos” os cineastas do chamado mumblecore. Hoje tenho a certeza, mesmo se a afirmação me pareça ainda mais redutora do que na altura. Swanberg é dos cineastas mais interessantes do cinema norte-americano tout court. Ainda que tenha as características principais do “género” – o improviso, o inacabado, a obsessão/repulsa pela passagem à idade adulta -, o seu cinema superou-o, é outra coisa, mais particular e intransmissível. Como o cinema de qualquer grande realizador.
Pelo que se sabe, os argumentos de Swanberg são esboços muito vagos: apenas umas situações, conduzidas depois pelos actores, ainda em processo de descoberta das personagens. O método não é particularmente revolucionário – Mike Leigh e João Canijo são exemplos óbvios -, mas é impressionante o quanto a marca autoral de Swanberg se mantém, independentemente dos colaboradores. Mais, é impressionante como o seu cinema parece evoluir de mãos dadas com a sua vida, decalcando as fases por que vai passando – das relações tempestuosas dos vinte e tantos ao casamento e à paternidade dos trinta e poucos. E ainda mais impressionante, perante isto, é a maneira como se esquiva a qualquer realismo, ou como o seu naturalismo persiste tão clara e declaradamente artificioso.
Começa a tornar-se indecorosa a ausência dos filmes de Joe Swanberg nas salas portuguesas.
Em Digging for Fire (2015), o artifício mais evidente é também o mais superficial: a fotografia de Ben Richardson lembra a sofisticação polida e cristalina do cinema norte-americano de fins dos anos 80, princípios dos 90, uma homenagem formalizada no lettering do genérico e na planante e narcotizante música de sintetizador de Dan Romer. Mal comparado, é uma espécie de Drive (Drive – Risco Duplo, 2011), sem a pose, sem a pompa, sem história. Há um mal qualquer, subterrâneo – o Tim de Jake Johnson desenterra um osso e uma pistola no parque da mansão luxuosa de que ele e a mulher Lee (Rosemarie DeWitt) estão a tomar conta, escavando obsessivamente esse buraco, até descobrir o sapato do defunto, o qual calça para ver se lhe serve -, que nunca chega a vir cá para fora, malgrado os ameaços (e os amigos de índole duvidosa de Tim). Da mesma forma, os flirts em que cada membro do casal se vê envolvido, fantasias com motoqueiros lindíssimos e românticos e moças não menos bonitas e igualmente disponíveis, são abortados pela realidade de um bom casamento, apesar do quotidiano sempre igual, das querelas, do afastamento, da insatisfação, da imaginação. Tudo o que está para acontecer, fica por acontecer, enterrado na mesma terra que esconde ossos, armas de fogo e calçado.
Nesse sentido, Digging for Fire é um Short Cuts (Short Cuts – Os Americanos, 1993) mais fiel a Raymond Carver. Swanberg imita a mestria do escritor norte-americano (ou do seu editor, como há quem defenda) em criar tensões (e tesões) que ficam por rebentar, por resolver, a pairar ameaçadoramente sobre o final feliz. Retorno, então, à ideia de artifício: numa obra aparentemente (e, como muitas vezes acontece, neste caso, as aparências só servem para iludir) muito singela, realizada quase aleatoriamente, ao sabor dos acontecimentos e das vontades e ideias dos outros, com um ar incompleto até, o controlo de Joe Swanberg é absoluto. De contrário, seria impossível esta precisão, esta clareza, esta argúcia.
Num artigo escrito à altura da estreia de Digging for Fire, Richard Brody da The New Yorker comparava Swanberg a Roberto Rossellini. O objectivo não seria tanto equiparar a qualidade de um e de outro quanto o de aproximar algumas características da obra de cada um. Nem eu iria tão longe em pôr em pé de igualdade Swanberg e Rossellini. Provavelmente, nunca o farei. No entanto, mesmo que o norte-americano nunca atinja a esse patamar inatingível, começa a tornar-se indecorosa a ausência dos seus filmes nas salas portuguesas (as episódicas aparições em festivais não contam). Este é só mais um exemplo, aberrante.