Esta semana estreia nas no circuito comercial português Lisbon Revisited (2014), um dos últimos filmes em 3D de Edgar Pêra, inspirado nas palavras de Fernando Pessoa – pedindo emprestado o título ao poema homónimo de Álvaro de Campos. Mas há menos de duas semanas o seu mais recente opus estreava mundialmente no Festival de Cinema de Roterdão, O Espectador Espantado (2016) – também em 3D – sobre a posição do espectador de cinema nos dias de hoje, incluindo entrevistas a figuras da crítica, da programação, da academia e da cinefilia como Olaf Möller, Laura Mulvey, Laura Rascaroli, Eduardo Lourenço, Augusto M. Seabra, Guy Maddin ou F.J. Ossang. Mas Edgar Pêra, o mais experimental dos cineasta nacionais, realizou também o blockbuster Virados do Avesso (2014) faz pouco tempo. Esta é uma entrevista feita por e-mail que tenta perceber o momento presente da obra do cineasta.
Em Lisbon Revisited não se vê uma única pessoa ao longo de todo o filme, no entanto as palavras de Fernando Pessoa são lidas por uma colecção de vozes numa colecção de línguas. Porquê esta aridez das imagens por oposição à vibração da banda sonora?
Não vejo como aridez, mais como uma purificação das imagens. Tinha terminado Cinesapiens (2013), que é um filme que assenta numa lógica do cinema das atracções, em que os actores interpelam sistematicamente o espectador, através de uma estratégia excentricionista. Pretendi fazer o contrário, e criar um filme voyeur, de emoções puras. Mas a eliminação da figura humana não é total. As estátuas sobrevivem e é de fantasmas que o filme trata. Um mundo vegetal, em que os humanos desapareceram, é o cenário típico de um filme pós-apocalíptico.
E já no final do filme surge um mergulhador num aquário já quando correm os créditos. O realizador é como um mergulhador que se afunda nas imagens que recolhe?
Não faço ideia, mas gosto sempre de ouvir outras leituras e especulações. É talvez o maior prazer, assistir à transformação do sentido do filme pelos espectadores mais curiosos. Mas penso que o mergulhador surgiu apenas como um elemento plástico de contraste. Fiz de seguida A Caverna (2015), em que utilizei a estratégia oposta: um filme com pessoas mas sem vozes. E agora O Espectador Espantado que procura a síntese da minha pesquisa.
Ainda sobre a banda sonora do filme, esta é muito complexa, preenchida também por sons de vários animais com uma musicalidade muito própria. Vários dos seus trabalhos lidam com música, nomeadamente os filmes sobre o Carlos Paredes e os Madre Deus. A importância que dá ao som é a mesma que dá à imagem?
Tudo depende. Mas em princípio dou mais atenção ao som pelo simples facto de que posso ter 64 pistas a funcionar quase simultaneamente. A imagem nunca tem tanta complexidade. Por outro lado, penso que o som é sempre algo mais abstracto, que tem um potencial maior de criar um imaginário.
Sei que faz parte do seu processo criativo estar a fazer alterações aos seus filmes até ao último momento. Tem vontade de regressar a eles quando os revê?
Nem todos. Apenas os que foram feitos com menos meios, ou em que tive pouco tempo para os finalizar, proto-filmes no fundo. Filmes como O Barão (2011), A Janela (Maryalva Mix) (2001) e Movimentos Perpétuos: Cine-Tributo a Carlos Paredes (2006) dou como terminados. Mas há um período de gestação, que se prolonga durante as primeiras sessões públicas. E gosto de fazer diferentes versões de acordo com tipologias de espectadores imaginários.
Lisbon Revisited foi filmado entre 2011 e 2014 quase integralmente em Lisboa. As imagens foram recolhidas já com este projecto em mente?
Só a partir de determinada altura. Tivemos dois dias de rodagens a “sério” com o Luís Branquinho (habitual director de fotografia das minhas longas-metragens) e tudo o resto é resultado de passeios que fiz com amigos ou colaboradores. Levava apenas comigo um monopé, o que me permitia “voar” sobre as árvores. Mas ainda chegámos a filmar dois planos com um drone emprestado, que o Luís conseguiu. De qualquer forma este projecto nasceu também de um outro – a foto-instalação Lisboa Verde 3D, que teve o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. Depois continuei a filmar e acumular arquivos dos espaços verdes da cidade e a longa-metragem nasceu dessa obsessão. Desde que filmei pela primeira vez em 3D apercebi-me que as árvores, e o universo vegetal em geral, são extraordinariamente apropriadas ao formato tridimensional pelos múltiplos níveis de convergência que têm. E pela forma caótica e orgânica como dispõem esses níveis diferentes de profundidade.
Pergunto isto porque me parece que o Edgar Pêra tem uma relação com os seus filmes e com as suas imagens próxima da relação que se tem com um arquivo, aonde se regressa para se remexer e rebrilhar. Por exemplo, o seu novo filme O Espectador Espantado incluiu imagens de todos os seus filmes em 3D (Cinesapiens, A Caverna, Lisbon Revisited), entre outros.
O Espectador Espantado é um filme síntese, que evoca filmes anteriores, mas não é um filme arquivista, de compilação de cine-diários. À excepção de algumas imagens com o meu filho, são poucas as que não foram concebidas de raíz para o filme. O que fiz foi criar, através da projecção de filmes meus em espectadores-actores, situações imaginárias de ver cinema. Mas sempre soube que todos aqueles filmes anteriores iriam desembocar no Espectador Espantado. Faziam todos parte do mesmo projecto.
Só se vê a filmar em 3D de agora em diante?
Continuarei a filmar os cine-diários em 3D, até surgir uma nova forma de captar imagens. Já a próxima longa-metragem, Caminhos Magnéticos é em 2D, e em cinemascope. Vai ser um processo de descontaminação bidimensional. Mas tenho mais projectos 3D, um deles é Não Sou Nada, mais uma investigação pessoana, escrita em parceria com a Luísa Costa Gomes.
No que respeita ao O Espectador Espantado, o filme parte da sua tese de doutoramento, incluindo várias entrevistas a académicos, críticos e programadores de cinema. No entanto também entrevista familiares seus e inclui até imagens do seu filho. A fronteira entre o filme-tese e o filme intimista é algo que lhe interessa explorar?
Durante uma das entrevistas que fiz, a Laura Rascaroli define o filme de ensaio como algo de simultaneamente individualista e colectivo, como uma tentativa, mais do que uma tese unívoca. Um caminho, portanto. Queria um filme que assentasse no real, e depois partisse para o universo específico do imaginário no espectador de cinema.
Vê a sua carreira académica a progredir a par da sua carreira cinematográfica, isto é, fazer filmes que reflictam as preocupações que explora nos estudos fílmicos?
Não me parece que haja grande diferença entre os dois mundos, a diferença está apenas no tema abordado. Quando abordo a cinefilia e o acto de ver cinema existe uma coincidência entre estudos fílmicos e objecto cinematográfico.
Coloca uma pergunta a vários dos seus entrevistados que é, o que é mais cinema, um jogo de futebol no grande ecrã ou o Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) no telemóvel. Tem uma resposta sua para a pergunta? E quanto à questão do espectador dever ou não ser pago?
Já tinha colocado uma questão igualmente paradoxal com O Trabalho Liberta? (1992). Gosto de perguntas que demonstram a dificuldade que as palavras têm em ajustar-se à realidade. Neste caso a palavra cinema. Mas para mim ver um filme num computador é como ver um postal em vez do quadro original, é uma questão de escala e de experiência, o espectador de um telemóvel tem de fazer um esforço maior de abstracção, assim como um jogo de futebol projectado dificilmente ultrapassará a dimensão televisiva do directo, o que contraria a ideia de cinema, enquanto algo de pensado e construído. Mas isso não quer dizer que uma das novas vertentes das salas de cinema seja exactamente a capacidade de transmitir em directo. Quanto ao pagamento dos espectadores, talvez seja melhor lerem a entrevista ao meu amigo Manuel Rodrigues que publiquei no meu site. Penso que qualquer dia teremos de pagar às pessoas para saírem de casa.
O Edgar Pêra tem uma grande preocupação com o espectador. Foi por isso que quis fazer um “filme de grande público” como o Virados do Avesso? Vê-se a fazer mais filmes com essa preocupação?
Fiz o Virados como um desfio e, nesse sentido, foi um objectivo cumprido: queria saber se conseguia fazer um filme com mais de 100.000 espectadores e conseguimos. Também fiz como forma de subsistência, assim como um actor pode fazer teatro e depois telenovela. Fazer filmes como o Lisbon Revisited é muito gratificante mas dificilmente seriam feitos sem incursões nos trabalhos ditos comerciais e nas encomendas. Dito isto, gostava muito de fazer mais filmes narrativos voltados para os espectadores de sofá, que não frequentam festivais de cinema nem cinematecas. É um desafio muito grande e sinto que estou apenas no princípio da curva de aprendizagem – para além do Virados apenas fiz o Oito Oito (2001). Em 30 anos não chega…
No Virados do Avesso optava por uma série de soluções estéticas que já usara em filmes mais experimentais, sejam as imagens com velocidade acelerada sejam as sobreposições, contrariando a ideia de que no “cinema mainstream português” não há espaço para a experimentação ou para a marca autoral. Foram decisões pelas quais teve que lutar junto de quem financiou o projecto?
Nem por isso. Quando vieram falar comigo queriam acrescentar uma marca autoral a um projecto comercial. De resto o cinema de vanguarda tem elementos humorísticos que se adaptam ao registo da comédia. Preocupei-me sobretudo com a encenação e com a montagem. Filmei quase todas as cenas em planos sequência, o que raramente acontece nos meus filmes. Manipulei as velocidades de captação de imagens directamente durante a rodagem, de forma a que cada cena tivesse um ritmo diferente. Por exemplo as cenas com o Rui Melo e o Diogo Morgado foram filmadas a 20 imagens por segundo, o que criava uma espécie de slapstick hardcore, aproximando-se duma estética de nonsense. As cenas das bebedeiras a 32 imagens por segundo. No fundo é o filme mais abstracto que alguma vez fiz. Os elementos concretos, como o guião, o tipo de imagem e de som foram o resultado de um trabalho colectivo: colaborei com uma equipa que desconhecia – dos argumentistas aos músicos e ao director de fotografia (à excepção da produtora Ana Costa com quem já tinha feito O Barão). O filme foi rodado em tempo record, 13 dias. Não acredito que se trate de um feito vulgar, tendo em conta o número de personagens e de cenários. (Mas mesmo assim não chega aos calcanhares da Little Shop of Horrors (A Loja dos Horrores, 1960) do Roger Corman que foi feito em 3 dias). Só tenho pena que tenham amputado as cenas dos sorvetes na versão DVD/TV, e que a RTP tenha passado o filme numa versão ampliada de 30 minutos, que se destinava a ser dividida em 3 episódios. Aprendi o que é trabalhar num sistema industrial em que o produto é mais importante do que a obra. Mas não me arrependo, antes pelo contrário, e pretendo voltar a cometer mais um crime de lesa-cinefilia dentro de um ano ou dois.
Há uma lado hiper-activo, mesmo frenético, nos seus filmes. Considera-se um realizador espantado, que se deslumbra uma e outra vez com as imensas possibilidades do cinema?
Ainda me espanto com a capacidade que as imagens e os sons têm de se combinarem de tantas e tão variadas formas. De resto, acho que os meus filmes serão vistos pelas gerações futuras como filmes com um ritmo normal, semelhante ao dos seus pensamentos flutuantes. Navegar ainda é preciso. E há ainda muito mar por explorar. Mas há sempre quem nos queira pôr a todos a circular em estreitos canais, sem ligação ao mar das múltiplas possibilidades.