Não é costume fazer-se cinema de género em Portugal, menos ainda cinema que misture géneros: ficção científica, drama romântico, thriller, mistério. Gelo (2016), realizado por Luís Galvão Teles e seu filho Gonçalo Galvão Teles com base num argumento de Luís Diogo, é um filme seduzido por um cinema e uma forma de o fazer que por cá é raro encontrar – Inception (A Origem, 2010) de Christopher Nolan foi uma inspiração para uma certa forma de cinema de entretenimento inteligente, confessou-me o realizador. Numa entrevista por telefone a Luís Galvão Teles este explicou-me que quis fazer um filme sem medos, como se tratando de uma primeira obra, e de facto isso sente-se: há nele uma certa urgência de experimentar diferentes registos. Mas a história está sempre primeiro porque o cinema dos Galvão Teles faz-se de personagens e dos processos de identificação do público com elas. O filme abriu o Fanstasporto (no dia 26 de Fevereiro) e integra a sua competição internacional e estreará nas salas nacionais no próximo dia 3 de Março.
Logo no Início de Gelo vê-se uma mão enterrada na neve ao que se seguem uma série de planos subjectivos de um cão. E isto fez-me logo pensar no The Thing (A Coisa, 1982) do John Carpenter. O Luís Galvão Teles é apreciador de ficção-científica?
Não… Eu sou um amador de tudo. Em relação ao cinema, e apesar de estar quase a chegar aos 50 anos de actividade no cinema, considero-me sempre um amador. Nunca se aprende tudo o que se queria aprender, nem se vê tudo o que se queria ver, nem muito menos se faz tudo o que se queria fazer e como se queria fazer. E o facto de haver, da minha parte, um certo diletantismo (talvez a palavra não seja a mais certa…) de querer percorrer vários mundos e várias vidas, leva-me a que não me centre só numa actividade, mas em várias, além da realização a produção, agora a distribuição, a escrita, o desenvolvimento de projecto… O que me tira a possibilidade de manter uma relação com o cinema tão profunda como se pudesse estar ligado só ao papel de realizador – o que me permitiria ver tantos filmes e tão intensamente como gostaria de fazer e como cheguei a fazer em alguns períodos da minha vida. O Carpenter é obviamente uma referência, a ficção científica é um género que pode ou não me interessar, muito depende da história que é contada e do contexto em que é feito. No fundo o que eu gosto é de cinema narrativo e da mistura de géneros. Como sou chamado um cineasta bissexto – já que os meus filmes são muito diferentes uns dos outros – com um percurso ao ziguezagues, alternando muito entre a comédia, o drama, a comédia dramática, mas também de temáticas. Mas é também assim a minha vida, percorrer os vários caminhos que me vão aparecendo à frente, deixando-me levar pelo rio que caminha entre as montanhas.
A certa altura no seu filme, a personagem principal está numa aula de escrita de argumento e o professor afirma que todas as histórias são possíveis. No entanto é sabido que em Portugal e no cinema português nem sempre isto é verdade. É por isso que no caso do Gelo, por ser uma história de ficção científica, foi necessária a co-produção com Espanha para levar o projecto a bom porto?
Não, não. Claro que a produção de Espanha ajudou bastante, por causa do programa Eurimages e do Ibermedia. No entanto o apoio só veio depois da rodagem e está a ser utilizado na feitura de uma versão totalmente dobrada em espanhol que é uma forma de penetrar num mercado onde raramente temos acesso e onde os filmes estrangeiros são por norma dobrados. O filme será distribuído em Espanha nas duas versões. A ficção científica foi feita com meia dúzia de invenções. O nosso mundo imaginário não foi o que custou dinheiro, nem o orçamento foi muito elevado. Tudo o que é ficção científico é feito de espaços que foram reconvertidos para dar a ilusão dessa riqueza de produção. No fundo é uma vitória da invenção, mostrando que não é tanto que algumas histórias não se possam contar, é mais saber como se pode contá-las. Quando se diz que todas as histórias são possíveis, é mais o tema e a forma, o seu percurso, o seu arco. Pode-se começar num ponto e terminar em imensos outros, passando por vários atalhos. É aqui que está o trabalho do argumento e do cineasta, a escolha: da partida, do ponto de chegada (no nosso caso foi sempre uma incógnita – apesar de termos partido de um argumento do Luís Diogo), dos caminhos entre um e outro, ou deixar correr a história até ao seu fim – ou mesmo ao seu não-fim, como é o caso do Gelo.
De facto um dos aspectos do filme é que narrativamente é muito complexo: histórias dentro de história, histórias que reflectem universos paralelos desconhecidos de quem as conta, histórias para adormecer com o mesmo efeito, mundos e histórias paralelas, flashbacks, flashforwards, premonições… Parece que aqui se experimentaram todas as formas narrativas possíveis, foi propositada esta complexidade?
Sim, esse foi o desafio à partida. Nós, eu e o meu filho, no trabalho sobre argumento e depois na realização, estávamos a defrontar duas temáticas de uma complexidade absolutamente atroz: a que atraia o Gonçalo, a vida, e a mim atraia-me a morte. O filme acaba por ser uma dialética que traz as questões da mortalidade, da identidade, da humanidade, do mundo e do universo, sem colocar a questão de Deus. Sendo essa a complexidade, nós trabalhámos a história de modo a que o houvesse ligações emocionais do espectador aos personagens, em especial à Joana e à Catarina, as personagens principais. É portanto um filme que pede que não se comam pipocas ou se consulte o telemóvel, que pede que o espectador se deixe fascinar pelo ecrã escuro (apesar dos sinais de saída…), lugar santo onde se entra para um mundo outro.
Estava-me a dizer que o filme vivia numa dialética entre a vida e a morte, mas o filme faz-se também de sucessivas duplas: a cobaia e o placebo, o palácio e o reflexo deste, entre o vivo e o preservado, entre o gelo e o papel de parede a fazer as vezes dele. Isto também foi algo trabalhado no argumento?
Alguns desses elementos até poderão ter acontecido inconscientemente, ainda que a maioria resulte de facto do jogo de espelho entre a vida e morte. Depois há toda uma outra série de jogos de espelhos internos. É um filme especular em que as coisas se reenviam umas às outras. A questão da identidade torna-se então evidente na temática do espelho em que nos vemos confrontados connosco. Sem querer tornar demasiado evidente esse aspecto – como creio que poderá ter acontecido em Retrato de Família (1991), em que foi considerado abusivo a utilização dos espelhos em cena – os espelhos são mais internos, ecos no fundo. O eco progride no tempo, ao contrário da imagem do espelho que é instantânea. A parte final do filme é no fundo uma espécie de eco pervertido do que se acabara de ver. No fundo a vida é como um eco que vem de trás e continua.
A certa altura há um personagem que afirma: o cinema é a vida. No entanto o Luís Galvão Teles estava a dizer-me que o que o preocupava era a morte. Como é que se resolve este paradoxo.
A morte, por ser o nosso reflexo último obriga-nos a viver a fundo, e como diz uma das frases promocionais do filme, quantas vidas há numa vida? Temos que desdobrar-nos, pelo menos enquanto não formos imortais – se é que lá chegaremos… – para que possamos viver não só da forma como outros desejam, mas de estarmos abertos a todos os apelos da vida – daí o diletantismo, a procura de tudo, de abraçar o mundo todo com todas as suas coisas. E claro, há um poema de Pessoa que diz isto tudo muito melhor do que eu. Já muito depois de termos decidido que este seria um filme a quatro mãos – um filme-bicéfalo, como lhe chama o meu filho -, e o Gonçalo estando muito interessado pela história da paixão, houve muitas dúvidas dele (e discussões produtivas) sobre essa frase. Mas tanto ele como eu, de certa forma, renunciamos uma vida normal por uma vida anormal, a vida de cinema: que é uma vida de loucura em que nos podemos perder e enlouquecer, e como se diz no filme, uma vez loucos não podemos voltar atrás. Mas há ainda outra razão: a clássica frase dos neo-realistas de que o cinema é o espelho da vida é algo em que eu acredito, mas de modo diferente, o cinema é uma forma de agarrar a vida e também uma forma de inventar uma nova vida no olhar de cada espectador, já que este quando estás a olhar as imagens, não as está simplesmente a olhar, está igualmente a vivê-las. É por estes motivos todos e com todos estes sentidos que essa frase surge.
Na primeira sequência pós-genérico temos a protagonista a escrever a palavra “NO”. Há uma boutade que diz que o realizador é apenas aquele que tem que responder sim ou não. Identifica-se com esta definição?
Eu de facto tenho alguma dificuldade em identificar-me com isso. Na verdade os meus filmes têm sido “acusados” de não terem maldade ou perversidade, são mais sobre a bondade, a alegria e a vontade de viver, ou mesmo sendo sobre o drama de viver, são-no de uma forma não doentia ou perversa. Eu poderia dizer que são filmes sãos, apesar de serem também duros, dramáticos ou complexos. A dor para mim é um mal da humanidade que existe e tem que existir, é um outro lado da morte – pequenas mortes – que nos limita a vida, mas que também nos faz aprender e descobrir caminhos. A dor tem sempre essa dupla significação, como tantas outras coisas, as perdas, as mortes dos outros. O filme presta também homenagem à continuidade da humanidade e da vida, que se prolonga além de nós.
No filme, a certa altura, fazem-se duas citações sobre a escrita do script: uma ao Billy Wilder (The most important thing in a film is the script, the script, the script) e outra o John Ford (If I wanted to send a message I would go to the post-office). As suas (e do seu filho) referências são ainda as do cinema clássico americano?
Quanto ao meu filho é difícil falar por ele. No entanto, tanto ele como eu – e ele estudou escrita de argumento nos Estados Unidos da América com os grandes mestres – acreditamos não tanto num cinema clássico, mas sim narrativo. Para nós o cinema é uma forma de contar histórias, e de as contar recorrendo a imagens, som e montagem. Para nós o argumento, a história, é sempre o ponto de partida, mesmo que seja uma história totalmente descabelada, não nos opomos à improvisação. Nós somos é contra o “seja o que for”, o “seja de qualquer forma” ou “basta mostrar os sons e as imagens”, não, tudo tem que fazer parte de um princípio, meio e fim, não necessariamente por esta ordem (e pode não haver um fim, pode ser um fim aberto, um falso fim), mas que tenha personagens, vidas, acções e reflexões. Nesse sentido somos clássicos. Mas o Gelo não é um filme clássico, experimenta linguagens, varia de tom – algo de que eu gosto muito e daí a dificuldade de definir o filme: drama, ficção científica, thriller, mistério, aventura… -, e varia também de género à medida do que a história o pede. Sem medo, um filme feito sem medo – esteve quase condenado à morte quando foi o ano zero do cinema português em 2012. Quis fazer um filme em estado de inocência, correndo todos os riscos que corri no meu primeiro filme, A Confederação: O Povo É Que Faz a História (1978). E quanto ao Gonçalo foi mesmo a primeira realização de longa-metragem. Um filme que foi uma aventura a fazer e agora uma aventura a distribuir, já que fui obrigado, e quis ser eu mesmo, a distribuí-lo.
No filme há duas histórias que surgem em tempos diferentes, uma de época e outra com iPads, computadores e tecnologia. O filme faz-se também de choques.
O argumento não é perfeito, como nada o é. Nós lutámos, mas a história é como um tigre no seu habitat, é incontrolável (ou para lembrar um dos filmes que eu produzi, um dos leões do Circo Cardinali à solta). Não quer dizer portanto que nós tenhamos conseguido garantir que o espectador não se perderá entre as épocas, os vários estilos de filmar, os diferentes tipos de correcção de cor e de guarda-roupa. A dificuldade estará em encontrar a chave… Aliás, tem-se referido o Lynch, que há qualquer coisa lynchiana no filme – ainda que ele não seja a minha referência principal, olho muito mais para o cinema do Buñuel, o que teria a caixa do Belle de Jour (A Bela de Dia, 1967)… ele era um mestre nesses enigmas, com outra arte que nós não tivemos. De qualquer forma, o filme faz-se de saltos e aí surge necessariamente o problema do contra-ponto, como na música, que se for mal feito provoca uma dissonância. Nós não queremos a dissonância, este é um filme polifónico mas harmónico – não nos interessa a música concreta.
No final do filme surge uma dedicatória que diz: ao nossos pais, aos nossos filhos, e aos filhos dos nossos filhos. Este é também um filme de passagem de testemunho de si para o seu filho?
Eu não pensei tanto na passagem de testemunho porque por um lado penso fazer mais filmes e por outro porque passar-lhe um testemunho seria obrigá-lo a seguir a minha carreia, coisa que não quero. Ele tem a carreira dele, e agora encontrámo-nos. Nós já trabalhamos juntos há muitos anos, nunca tínhamos co-realizado, mas já tínhamos desenvolvido filmes em conjunto, produzido filmes um do outro, ele é sócio da Fado Filmes – aliás, a Fado Filmes somos nós… mais toda a maravilhosa equipa com quem trabalhamos. Mas o meu próximo filme é sozinho e o dele também deverá ser. Não quero que ele carregue a minha carreira, não há qualquer herança.
Estava a referir que tem um filme novo, é baseado num argumento do Nuno Markl. Pode falar-me um pouco sobre esse projecto?
Esse projecto segue a minha linha de gostar muito de mudar. Fiz este filme que se poderia chamar de “arte e ensaio”, termo que hoje remete para coisas obscuras, como não o fazia no tempo do Godard em que esses eram filmes da vida. Fala-se em filme arty ou não-comercial – o que não quer dizer nada… porque se forem bem lançados estes filmes podem encontrar o seu público. Este novo projecto é um filme de entretenimento que eu gosto de fazer – como o foram o A Vida É Bela?! (1982), Tudo Isto É Fado (2004) ou o Dot.com (2007) – que se chama Refrigerantes e Canções de Amor que é baseado num magnífico argumento de Nuno Markl e é uma comédia romantico-musical. Uma história de amor, um quadrado amoroso de dois homens e duas mulheres, sendo que o duo masculino é também um duo musical em desavença – e por isso se deslizará pontualmente para números musicais regressando depois para a narrativa romântica.