É difícil olhar Mustang (2015) sem ser através da visibilidade que o filme tem tido: festivais, prémios do público aqui e ali, ser o nomeado ao Oscar de melhor filme estrangeiro pela França e nomeado ao prémio da Academia Europeia para melhor primeira obra. Isto porque cada vez mais se percebe a tipificação dos filmes que cada país lança à referida categoria da Academia Americana tentando por todos os meios alcançar uma nomeação e idealmente o galardão. Já se sabe que filme sobre o Holocausto, mau ou bom, leva alguns pontos de vantagem, mas qualquer filme que “coloque em debate” uma questão complexa dos nossos dias (racismo, homofobia, sexismo, opressão religiosa, moral, capitalismo…) é também um bom título para chamar a atenção da Academy. Mustang é um filme que coloca uma questão em cima da mesa e pretende que o espectador assista à encenação ficcional dessa questão – a saber, os casamentos arranjados no seio de uma família conservadora na Turquia – e saia da sala munido de argumentos para a debater, o problema está em perceber que argumentos são esses, a sua validade e quanto há de oportunista e manipulador no filme, e claro, o que de cinema sobrevive no meio da “denúncia” – não é totalmente irrelevante que sendo este o nomeado da França ao Oscar não haja nele uma única linha de diálogo em francês, ou, mais simbólico, que a Festa do Cinema Francês onde o filme foi ante-estreado em Portugal não o tenha seleccionado a princípio e que só depois do anúncio da sua indicação ao prémio de Hollywood se encontrou espaço na programação para o filme.
Antes de atentar a Mustang recordo apenas Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna Muylaert já que o filme foi igualmente indicado (pelo Brasil) à nomeação para o Oscar, é igualmente realizado por uma mulher, teve uma carreira igualmente recheada com presenças em festivais e vários prémios do público e versa igualmente sobre um tema politico-social, desta feita a relação entre patrões e mulheres-a-dias, preservando igualmente um tom entre a comédia e o drama. Recordo o filme por me parecer que certas leituras sobre este se aplicam quase sem alterações ao filme de Deniz Gamze Ergüven: todo o filme se constrói nos mecanismos de identificação condescendente do público pela personagem principal que é simultaneamente o motivo das graças e a concentração dos estigmas de classe auto-impostos e que portanto o público recebe um “discurso pronto” o qual apenas confirma aquilo que à partida já era o seu antes de entrar na sala escura, “é o cinema que dialoga com uma platéia ávida por ser e se manter confortável em suas certezas adquiridas via redes sociais e grande mídia“.
Um filme político onde a política é a da perpetuação dos estereótipos.
Mustang sofre dos mesmos males por se fazer como um filme para ocidental ver e nele reconhecer o “perigoso conservadorismo religioso” do Médio Oriente que escolhe nem mais nem menos um grupo de meninas como foco da sua atenção, meninas ocidentalizadas que querem namorar, passear, e divertir-se, numa expressão, ser jovens (como as meninas dos filmes da Sofia Coppola). Por oposição a um grupo de mulheres mais velhas que as protegem com um amor asfixiante feito pela necessidade de uma boa imagem na aldeia e pelo receio que o valor “comercial” das meninas baixe por consequência da sua leviandade – as meninas são como vacas premiadas que os encarregados de educação passeiam e apresentam… esta é especial, e todas são especiais – e um grupo de homens que perpetua a necessidade deste estado de coisas (e como se isso não bastasse ainda se introduz de forma abjectamente subtil a violação das meninas por parte do tio que as acolhe). E como o filme brasileiro que deseja a abolição utópica (e portanto desejo inconsequente) das relações de trabalho entre patrão e empregado – e portanto de pouco serve como objecto político -, também aqui se deseja a abolição (desconsiderando todos os aspectos culturais, sociais, religiosos… que originam certos rituais que um olhar ocidental tende a repudiar como amorais) de práticas sociais seculares como se o filme sequer chegasse a ter qualquer impacto sobre aqueles que vivem sob o jugo dessas mesmas práticas – daí a inverosimilhança do final que naturalmente coloca o espectador ocidental numa posição de conforto quando a consequência natural do terceiro acto seria no melhor dos casos um casamento para as meninas sobrantes ou, no pior, um linchamento familiar. Um wake up call para quem já está mais que acordado, um filme político onde a política é a da perpetuação dos estereótipos.
Há no entanto um aspecto no filme que merece atenção por ser, simbolicamente, aquele que reflecte de modo lato o que é o gesto subversivo: é sabido que a melhor arma do oprimido é aquele que lhe dá o opressor – daí que, por exemplo, a comunidade LGBT sempre tenha tomado como seus os insultos sobre si lançados. No filme as meninas são progressivamente mais enclausuradas na casa da família, primeiro subindo uns muros e gradeando umas janelas, depois gradeando as restantes e impedindo todas as formas de escape do lar (evitando assim a baixa de valor das noivas a ser). Aquando do terceiro casamento, e quando das cinco inicias já só restam duas, estas decidem contrariar o estado de coisas e tomando o ritual em que a noiva é entregue ao respectivo pela família, à porta da casa desta, as duas escolhem fechar as portas no exacto momento em que a noiva se deveria entregar, deixando assim a família do noivo e a sua própria família do lado de fora da casa-prisão. Ou seja, tomando o próprio ritual do casamento e usando das medidas de segurança intendidas como forma de as separar dos perigos do mundo exterior, as meninas colocam aqueles que constituíam o seu lar do lado de fora fazendo da jaula protecção e transformando a ferramenta de subjugação em arma de subversão. É nesses minutos, que formam o acto final, em que Mustang se transforma em filme cerco que tudo parece mais honesto (e que filme extraordinário seria se Hawks ou Carpenter tivessem pegado nesta premissa), assim como já o haviam sido alguns momentos como a ida à praia ou a visita ao estádio de futebol – só que cada um desses momentos apenas serve ao filme para, de seguida, acentuar a condenação moral da família pelo olhar ocidental.