Muito se diz e se escreve que Spotlight (O Caso Spotlight, 2015) é um filme sobre “os casos de pedofilia na Igreja”. Pode ser assim no papel e para quem preguiçosamente não quiser ver o filme para lá da sua sinopse. De facto, esta mais recente obra de Tom McCarthy, o discreto realizador indie por trás de The Station Agent (A Estação, 2003) e The Visitor (O Visitante, 2007), não começa por ser sobre nada disso. Ele está nos antípodas do “blábláblá” jornalístico, por norma preguiçoso na forma, que tem tanta ânsia em “contar a estória” que se esquece de verter tudo o que ela envolve. O verdadeiro prazer de “reportar” é o verdadeiro prazer de investigar, de escavar, escavar e escavar, correndo o risco de nada se descobrir. No backstage de uma estória, qualquer estória, seja sobre pedofilia na Igreja, seja sobre as contas ocultas de José Sócrates ou os crimes de um qualquer Manuel “Palito”, desenvolve-se um processo de procura que envolve método, dúvidas e pressões de toda a espécie. A magia do jornalismo estará aí. E Tom McCarthy sabe isso.
Spotlight é menos sobre “os casos de pedofilia na Igreja” que sobre uma determinada maneira de agir, uma “coreografia de esforços” que leva um grupo de homens e uma mulher a um determinado resultado. É a epísteme que seduz toda a construção do filme. A natureza do fazer é o seu grande assunto. Antes de “o quê?” está sempre o “como?” no filme de McCarthy. A certa altura, estamos mais atentos – curiosos é o adjectivo mais correcto, se calhar – ao modo como Rachel McAdams segura na caneta e escreve sobre a página do seu caderno do que interessados em ouvir da boca de quem entrevista o que, na realidade, e vamos ser francos, já todos sabemos – alguém precisa de Spotlight para se “informar” sobre “os casos de pedofilia na Igreja”? Não pois não? E McCarthy não está bem ciente disso? Como pode não estar? Tem, portanto, McCarthy razão por estar mais intrigado com o apartamento escassamente mobiliado, as salsichas mal cozinhadas ou as idas e voltas, entre advogados, tribunais, pastas e dossiers, de Mark Ruffalo do que com a substância de uma qualquer “verdade material” que daí resulte. Tudo o que envolve o processo da descoberta vem antes de qualquer êxtase pela descoberta. E, portanto, somos assim metidos na engrenagem do jornalismo. E o jornalismo é feito por jornalistas. E cada jornalista tem o seu estilo. E o estilo é o homem. E o homem é o estilo. O filme acompanha, na sua própria estrutura, toda esta maneira de ser e de funcionar.
Só assente em grandes actores e numa realização expurgada de qualquer traço de vaidade se consegue atingir este nível de secura dramática.
Trabalho, trabalho e trabalho. A investigação e o investigador com ela são infatigáveis. O jornalista é orientado pela sua deontologia e por uma inteligência fina, muito prática, que lhe permite abrir atalhos em florestas densas e, como corolário, aceder mais rápido à tal “estória”. McCarthy não acredita na facilidade dessa procura, mas precisamente “demora-se” nas dificuldades que esta implica. O filme é realizado dentro do espírito do melhor cinema liberal norte-americano, que tem como mestres Alan J. Pakula e Sidney Lumet. É de uma secura e de uma auto-contenção admiráveis. Nada de excessivamente emocional transborda. Sabemos pouco, muito pouco, sobre as vidas dos nossos jornalistas-investigadores. Mas não é por nos atermos às suas movimentações indagatórias que não nos sentimos próximos das personagens. Isto porque, desde cedo, McCarthy é claro quanto ao modo de funcionamento deste grupo de pessoas: todas, sem excepção, vivem apaixonadamente o seu trabalho. Nalguns casos – a personagem de Ruffalo é a mais paradigmática, pelas pistas que o filme nos dá -, a sua vida é o seu trabalho.
Desde Zodiac (2007) que não via um filme tão bem construído sobre esta espécie de prazer fundamental pelos procedimentos. A receita parece simples, mas essa simplicidade é ilusória. Só assente em grandes actores (e todos estão muito bem aqui, destacando-se Michael Keaton e, uma actriz que está cada vez melhor, Rachel McAdams) e numa realização expurgada de qualquer traço de vaidade se consegue atingir este nível de secura dramática. Uma secura que cativa e, a espaços, empolga. Não por aquele grito, aquela lágrima, aquele beijo, mas por causa da maneira como um elemento dá origem a outro; uma nota, um dossier, um telefonema se encadeiam noutra nota, noutro dossier, noutro telefonema… Está aqui contida a verdadeira arte – poiética, apetece escrever! – do jornalismo. O filme é como uma peça sólida de bom jornalismo de investigação. E, como uma escultura, uma boa peça de jornalismo é uma boa peça de jornalismo, independentemente do que trate. Enfim, esqueçam o “blábláblá” que se tem escrito sobre Spotlight: é subsidiário o que se diz ser “o assunto” deste filme. Porque o verdadeiro assunto aqui é a paixão pela procura, um prazer que se alimenta de respostas muito práticas.