Talaye sorkh (Sangue e Ouro, 2003) começa com um estrondo. Um homem abre a porta da joalharia onde trabalha e é logo empurrado para dentro por outro homem com uma arma. O assalto é vertiginoso e rapidamente corre mal. Quando uma terceira pessoa tenta entrar, o primeiro homem acciona o alarme, uma grade de ferro desce sobre a porta de saída, e ficamos presos com o assaltante e a sua vítima. O que podemos fazer? Nada, a não ser sermos testemunhas dos últimos instantes da vida do assaltante, que confrontado assim com o seu destino, sem saída e sem esperança, acaba por se suicidar. O resto do filme é um longo flashback em que Jafar Panahi obriga-nos a tentar perceber o que aconteceu antes através dos últimos dias daquela personagem, prendendo-nos ao seu destino. Ao compor este retrato de uma personagem que parece apenas um fantasma passageiro no seu país, recorrendo a uma história verídica, Panahi alcança uma façanha inigualável, ao filmar esta personagem como a imagem de um país em suspenso.
Estamos em 2003, em plena resposta americana ao 11 de Setembro (o filme estreou em Cannes apenas dois meses após o início da invasão do Iraque), o Irão faz parte do denominado “eixo do mal”, o presidente iraniano é ainda Mohammad Khatami, e Ahmadinejad tinha acabado de ser eleito presidente da Câmara de Teerão. Estamos longe ainda do “movimento verde” de 2009 e das suas consequências (como o aprisionamento de Panahi), e o filme parece adivinhar que o país está prestes a acelerar a sua depressão. De ambos os lados, do iraniano e do americano, o isolacionismo ganhava força como a doutrina dominante, com a sua retórica de “sozinhos contra o mundo o inteiro” e “ou estão do nosso lado ou contra nós”. No meio desta turbulência, Hussein, a personagem principal do filme, parece ser um símbolo desse isolamento, tal era o seu afastamento e falta de interesse para com o mundo à sua volta. Hussein é apenas um simples entregador de pizzas ao domicílio, que arrasta-se de tarefa em tarefa sem grande energia, procurando apenas sobreviver. Esquecido pelo resto da sociedade, tem uma existência trivial, excepto ser aqui o foco de Panahi como representante de um descontentamento submerso, e ter um fim conhecido.
Hussein ocupa um lugar anónimo, onde a sua condição subserviente é ao mesmo tempo a sua maior característica, e uma “prisão” impossível de escapar, como um recluso que caminha aos poucos para um beco sem saída
Jafar Panahi cria assim um retrato meticuloso de um país onde Hussein ocupa um lugar anónimo, onde a sua condição subserviente é ao mesmo tempo a sua maior característica, e uma “prisão” impossível de escapar, como um recluso que caminha aos poucos para um beco sem saída. Logo no início Hussein encontra-se num café com Ali, seu futuro cunhado, e este revela uma carteira que encontrou na rua. Enquanto examinam o conteúdo dessa carteira, são confrontados por um criminoso experiente, que os avisa das complicações morais do ofício, assumindo que eles são também ladrões. Porém o que lhes desperta a curiosidade é um recibo de um colar, que atinge valores que não conseguem sequer compreender. Quando decidem visitar a joalharia, depois de uma viagem de mota onde olham para as mulheres como potenciais vítimas de roubo, são barrados à entrada por causa do seu aspecto, considerados pouco dignos. Esta recusa, que irá agir como cataclismo para os eventos finais do filme, poderia gerar um sentimento de humilhação, mas parece antes despertar a tentação por um fruto proibido, de um último gesto, como uma traça atraída pela luz.
O argumento de Talaye Sorkh foi escrito por Abbas Kiarostami, numa colaboração com Panahi. Se Panahi foi detido para interrogatório pelas autoridades americanas quando passou por Nova Iorque em 2001, Kiarostami viu ser-lhe negado um visto de entrada no país em 2003. Da mesma forma, quer Panahi como Kiarostami foram questionados pelas autoridades iranianas por causa dos seus filmes, como se encontrassem ambos presos entre dois mundos, entre um regime que os oprime e outro que lhes é vedado. Kiarostami no seu argumento parece sugerir que Hussein sofre do mesmo mal, perdido nalgum limbo, entre o inferno do seu dia-a-dia e um paraíso material impossível de atingir. Essa condição é sublinhada pelo argumento, mas também pela encenação de Panahi, pelo olhar obsessivo com que o filme acompanha a sua personagem principal. Se Hussein é retratado como alguém com quem é difícil simpatizar, ou pelo menos, difícil de ler, em particular pela sua introversão e passividade, duas sequências ajudam a entrar nesse mundo fechado e criar empatia com a personagem. Entre esses dois momentos há uma cena-pausa com Hussein a regressar ao seu quarto minúsculo para descansar, onde há um pássaro preso numa gaiola. É uma imagem-símbolo que é um piscar de olho a Le Samouraï (O Ofício de Matar, 1967) de Jean-Pierre Melville, onde Alain Delon interpretava outro kamikaze suicida.
Numa das viagens de rotina de Hussein, este encontra uma operação da polícia à entrada do prédio onde devia fazer a entrega. Trata-se de uma acção da Basij, a polícia de costumes, que espera pela saída dos convidados de uma festa para os deter. Hussein é obrigado a assistir a este espectáculo kafkiano à distância, à medida que vão saindo do prédio personagens de uma classe social que lhe é distante, enquanto espera ao frio por novas ordens. É no escuro de um canto onde se refugia que Hussein encontra um jovem soldado, que vem a descobrir que tem apenas 15 anos, e é a primeira vez que vemos Hussein identificar-se com alguém. Mais tarde Hussein acaba por distribuir a comida pelos outros polícias de quem se sente afinal mais perto, nem que seja por partilharem o esquecimento nas sombras. Se esta é uma imagem simbólica do seu mundo como inferno, logo a seguir Hussein encontra a projecção de um mundo tão paradisíaco como impossível. Ao deslocar-se a um apartamento luxuoso para uma entrega, é convidado a entrar porque o seu ocupante precisa de desabafar com alguém. Aos poucos, Hussein acaba por esquecer-se do seu anfitrião e acaba a deambular por esta casa sem fim, pela sua piscina interior, pelas suas divisões recheadas, ou pela varanda com uma vista sobre Teerão – é como se Hussein tivesse assim uma visão do impossível, que abana a sua letargia.
Grande parte do sentimento desolador que acompanha o filme deve-se ao seu actor principal, que não só não é actor profissional, como é na realidade um estafeta tal como a sua personagem. Esta confusão entre a ficção e realidade é recorrente nos trabalhos quer de Panahi, quer de Kiarostami. Em Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990) de Kiarostami, o filme conta-nos a história de um homem que é acusado de fazer passar-se por um realizador famoso, recorrendo às pessoas envolvidas na história para interpretarem os próprios papéis durante supostas recriações dos factos ocorridos. Em Ayneh (O Espelho, 1997), Panahi começa por mostrar uma criança que tem que procurar sozinha o caminho de volta para casa depois da escola, mas a meio do filme a jovem actriz volta-se para a câmara para dizer que não quer continuar a ser filmada, transformando-se o filme num documentário sobre a actriz que decide fugir das filmagens. Em Talaye sorkh o duo criativo parece querer esquecer esse aspecto de desconstrução do cinema, recuperando a fé no cinema como forma tradicional de encenar uma história verídica. Mesmo o recurso recorrente de Panahi a actores crianças conhece aqui uma evolução, pois desta vez é o adulto que parece uma criança, preso no seu corpo. A intenção será capturar a realidade para dentro do filme, e humanizar Hussein, ou corporizar em Hussein a tragédia de um país. Acima de tudo, voltamos sempre ao início, como se fosse inevitável, como uma janela para o que se seguirá, como se o filme continuasse para além do seu fim.
Talaye sorkh é exibido dia 27 de Fevereiro às 21h30, no Cinema Venepor na Maia, numa sessão organizada pelo Cineclube da Maia.