A frase que dá nome a esta crónica podia ser nossa, e dizemo-lo não por fraqueza momentânea ou auto-comiseração cool, mas porque, caro leitor, podia também ser sua, podia, verdade seja dita, ser de todos nós. Mas não é: saiu da aristrocrática e ociosa boca de Ina Claire, a duquesa fugida dos bolcheviques e exilada em Paris no Ninotchka (1939) de Ernst Lubitsch. A bem dizer, gostamos de pensar que Lubitsch a escreveu a quatro mãos com Billy Wilder, um dos co-argumentistas do filme, quiçá inspirados pela célebre “Je est une autre” de Rimbaud.
Espelho meu, espelho meu, poderei ser alguém que não eu?
Desde que viemos ao mundo que olhamos, mesmo contra a nossa vontade, “para o lado”, para os outros, o que os outros são, possuem, manifestam. Mas também desde essa mesmíssima altura que somos ensinados a não olhar “para a galinha da vizinha”, embora seja isso que inevitavelmente fazemos, pois todos queremos, umas vezes mais, outras menos, por um instante ou para sempre, aquilo que não possuímos e que, irremediavelmente, os outros, alguém, possui: o brinquedo do filho dos amigos dos nossos pais que nos é impingido numa tarde da nossa infância (“vá, brinquem, brinquem os dois”); a bola de futebol oficial “do Mundial” do colega de turma (bem mais espectacular que a nossa, comprada numa lojita junto à praia nas férias de Verão com os pais); o telemóvel do colega de trabalho com características mais apuradas do que as do nosso modelo saído há cerca de dois dias; enfim, a namorada adorável de um tipo que conhecemos numa festa e que, coitado, até foi muito simpático connosco.
Nem sempre, porém, a cobiça pelo alheio tem uma vocação possessória, assumindo, frequentemente, um pendor mais ontológico, existencial, psicologizante: é quando queremos ser alguém que não nós mesmo, uma outra pessoa, alguém que admiramos, invejamos, veneramos – ou, então, como Ina Claire, quando estamos simplesmente fartos da monotonia de sermos sempre… nós, e nos apetece, nem que seja para quebrar a rotina, nem que seja só por diversão, por fantasia, ser outrem. Ou ainda, terceira hipótese, quando desejamos ter (a questão da posse, novamente, agora desprovida da dimensão materialista) outra pessoa – outra face – que não a que já conhecemos, substitui-la por outra (a pessoa amada, exemplo mais evidente), eventualmente um fantasma do passado que teima em não nos deixar. Enfim, é neste interminável exercício de desejo e frustração, posse e perda, fetichismo e (des)ilusão, neste processo de des-subjectivação e re-subjectivação (e transfiguração, por vezes) que Lubitsch ribomba: I wish I had someone else’s face, com o termo face se abarcando, então, muito mais do que o seu significado literal.
Que outra coisa senão someone else’s face desejam, cada um à sua maneira, o Scottie e a Madeleine de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), o Dr. Ledgard de La piel que habito (A Pele Onde Eu Vivo, 2011), a Nelly de Phoenix (2014) ou a “patinadora” de Odete (2005)? E que outra coisa, afinal, não desejamos nós quando nos sentamos no escuro da sala? Quem nunca quis ser John Wayne, Rocky Balboa, Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Marlon Brando [não (apenas) os actores em si, mas, sobretudo, as personagens que interpretam]? Quem nunca quis sair de si e entrar noutro corpo, noutra mente, encarnando-ressuscitando, muito cinefilamente, os mortos e os fantasmas? Queres Ser John Malkovich?, era a pergunta, bem in your face, que Spike Jonze fazia nos anos 90, e que deixava um lastro maior, infinito: quem queres tu ser? O cinema é esse abismo subjectivizante onde tudo – os sonhos e os pesadelos – é possível. E não quereremos nós, enquanto escrevemos este texto, sair do nosso próprio corpo e entrar no das personagens que, quando o filme termina, continuam, por vezes para o resto da vida, connosco (“Não acabou, eles às vezes têm outra cortina. Eu fico”, era a recusa em sair da sala do pequeno Demy em Jacquot de Nantes)? Não quererá o leitor o mesmo no momento em que se debruça sobre estas linhas? Está dado, assim, o mote desta crónica, o qual se reflectirá, de modo mais ou menos evidente, mais ou menos alegórico, nos filmes, nas histórias e nos episódios do quotidiano que por aqui cruzaremos.
Estará este casal a viver acima das suas possibilidades?
Deux jours, une nuit (Dois Dias, Uma Noite, 2014) é o último filme – um filme “de super-heróis” do dia-a-dia que dispensa óculos 3D – realizado pelos irmãos Dardenne e que, muito injustamente, passou relativamente despercebido pelo burgo, sobretudo por causa do preconceito de alguns em face da presença de uma star como Marion Cotillard, cujo alegado “maneirismo” na representação mancharia uma filmografia autorista e artesã como a dos belgas. Pois bem, não só Cotillard se integra harmoniosamente no registo “dardenneniano”, em mais uma demonstração da versatilidade do seu talento, como lhe pertence esse momento sublime que justifica a chamada do filme para o primeiro número desta crónica. Mas antes de lá irmos, logo por aqui se vê como Cotillard consegue ser “outra”, assumir um outro rosto (someone else’s face): não no sentido da representação (porque esse é o ofício do actor), mas no de, despindo o vestido de gala da Marion Cotillard glamourosa e “prestigiada mundialmente”, vestir o fato-macaco da Sandra-mulher-“normal”, anónima, de calças de ganga e blusa de alças colorida (ainda que mesmo nesta simplicidade de cabelos mal penteados e olheiras alimentadas a Xanax, continue sempre belíssima – mas isso, caramba, não é culpa de “maneirismo” nenhum, é mesmo da prodigiosa Mãe-Natureza).
Pelo meio de uma ininterrupta e extenuante maratona para contactar pessoalmente todos os colegas da fábrica (no que o filme se transforma num inesperado road movie), de forma a convencê-los a votar pela sua permanência em detrimento do voto por um prémio de produtividade (na primeira votação, a segunda opção havia saído vencedora, naquele que é um muito subtil mas perspicaz comentário às regras de funcionamento da democracia e a prova de que, como um dia frisou um senhor chamado John Locke, as maiorias não estão sempre certas nem as suas decisões sempre justas), Sandra e o marido fazem uma pequena pausa sentando-se num banco de jardim. Comem cada um deles um gelado, em silêncio. Ela está esgotada, no limite da sanidade (e não é hipérbole), praticamente a desistir, tantos são os contratempos e os baques de tristeza que cada resposta negativa dos colegas de trabalho lhe causa. Comem o gelado como dois falsos garotos felizes, despreocupados, na verdade dois adultos com filhos para criar e em risco de ficar sem um chavo e terem que vender a casa. Ainda assim, comer um gelado: resistir, ignorar por uns momentos a seriedade da desgraça, o negrume da vida, ser criança por uns instantes nesse acto tão infantil como prazeroso que é comer um gelado. Para citar muita boa gente, dir-se-ia que estão a “viver acima das suas possibilidades”…; e, para citar César Monteiro, diríamos que sempre teremos (Sandra e nós), contra o Inferno do desemprego e da “dívida”, o Paraíso do Gelado.
É, possivelmente, o plano “mais fixo” do filme (o “mais” é porque, ainda assim, a câmara nunca está pousada), aquele em que a câmara menos baloiça, estabilidade estética que rima com a maior estabilidade (malgré tout) do casal naquele momento, por contraposição com a oscilante câmara ao ombro que filma a correria de Sandra, por sua vez condizente com a precariedade (laboral, física, psicológica) da personagem. Por uma vez, não se ouvem carros, telemóveis a tocar, apenas alguns pássaros chilreando. É neste momento, espécie de pause no filme e na demanda do casal, que Sandra deixa perder o fatigado olhar no fora de campo e, meio alienada, meio sonhadora, mas não totalmente derrotada (nunca), diz
J’aimerais bien être à sa place
O marido, distraído, não percebe e pergunta-lhe
Qui?
Sem desviar o olhar, ela responde
A l’oiseau qui chante là
Ele olha, então, também para o fora de campo, e ali ficam os dois, absortos, suspensos no tempo e no espaço, a olhar o pássaro que nós, espectadores, não vemos nunca, só ouvimos. Sandra quer sair do campo (o cinematográfico e o da sua vida) para o fora de campo (enquanto espaço alternativo, desconhecido, por isso de liberdade). Sandra quer ser um pássaro para poder sair de si, do seu corpo-“gaiola” (ela é o seu corpo e as suas circunstâncias): viver a vida como um pássaro, despreocupadamente, sem pensar se no próximo mês vai conseguir pôr pão na boca dos filhos, pagar os livros da escola, ter dinheiro para o passe do autocarro que a leva à fábrica. Não pensar, não contabilizar, não poupar, não desesperar, não sofrer. Ignorar, ser ignorante, absolutamente. Voar dali para fora, desaparecer nos céus, subir a toda a altitude, sobrevoar a cidade e avistar os problemas dos homens como ninharias na bigger picture que é o mundo. Quiçá migrar com os seus congéneres quando for tempo disso, procurando temperaturas mais amenas, céus menos poluídos, árvores mais frondosas.
Sandra quase chega a ser mesmo “outro alguém”, mas alguém do outro lado, o dos mortos, no qual chega a estar por alguns minutos com os Xanax todos a marinar no estômago, preparando-se, nesse limbo, para abraçar, no religioso dia do Descanso (domingo), o derradeiro “sono dos justos”(e como ela é justa sempre que ouve um “não” dos colegas…) – ou, no caso, o sono dos… injustiçados. Je voudrais dormir et ne plus penser, ouvira-se já antes Petula Clark cantar. É, porém, espantoso o modo como, num filme tão angustiante, os Dardenne conseguem introduzir, sem cair no patetismo, um comic relief, um gag “salvador” através do qual Sandra voltará do mundo dos mortos a tempo de cantar (é o segundo grande momento musical no carro, depois do de Petula Clark), com o marido e a colega que de lá a retiraram com as duas mãos, o “Gloria” de Van Morisson:
And it’s all right (Gloria)
And it’s all right (Gloria)
And it’s all right (Gloria)
It’s gonna be all right…