Uma prévia e cautelar declaração de interesses ao leitor mais incauto (sobretudo àqueles que não nos acompanham nestas ou noutras paragens): não temos, nunca tivemos, o gosto ou o fetiche de “bater” em filmes ou realizadores com adjectivações bombistas, embora não desaprovemos e até gostemos sobremaneira de muitos críticos com esse perfil (alguns dos quais, como historicamente é sabido, críticos geniais, de que os rapazes dos Cahiers dos anos 60 são estafado exemplo). Isto para dizer, portanto, que as linhas seguintes, se não forem justas (embora a “justiça”, nestas coisas, valha o que valha, ou seja, perto de zero, pois, em última análise, o gosto soberano pertence ao espectador e essa é uma esfera que nos merece absoluto respeito), serão, pelo menos, uma coisa: sérias. Não no sentido de gravidade ou de nos “levarmos a sério”, mas no de serem honestas.
Luís Galvão Teles disse, em entrevista ao À pala de Walsh, ter querido “fazer um filme em estado de inocência, correndo todos os riscos que corri no meu primeiro filme”. Esse filme era Bestiaire (1970) [na verdade, uma média metragem, realizada a meias com Bernard Jaculewicz] e os tempos eram outros, ao que acresce o facto de a receptividade a qualquer primeiro filme [já no caso de Gonçalo Galvão Teles, filho de Luís e co-realizador, Gelo (2016) é mesmo a sua primeira longa-metragem] ser sempre distinta, inevitavelmente, daquela que assiste a um filme de alguém com uma carreira consagrada para trás. Gelo não é, em termos de genre, algo absolutamente inovador na carreira de Galvão Teles (pai), que tem em A Confederação: O Povo É Que Faz a História (1978) uma incursão na ficção científica, embora o core da sua filmografia ainda repouse, cremos, no documentarismo (político, nomeadamente) dos anos 70. Como quer que seja, o certo é que Gelo é uma pedrada no charco do espectro cinematográfico português, pouco acostumado a cinema de género, não havendo, neste filme de pai e filho, apenas um mas vários (demasiados?) géneros: ficção científica, fantástico, thriller, drama (pelo menos estes quatro). Foi esta ambiência “de género”, de resto, que justificou a chamada do filme para a abertura oficial da trigésima sexta edição do Fantasporto.
Pela nossa parte, seremos sempre os primeiros a aplaudir esse gesto de coragem, ousadia, irreverência por parte de um veterano que decide experimentar novos caminhos, conquanto isso não nos deva fechar os olhos para o reverso da moeda, o qual se traduz, no caso, num filme profundamente frágil, desequilibrado, frequentemente a rasar a irrisão e a caricatura grosseira. E isso é tanto mais entristecedor quando algumas das premissas do argumento, da autoria de Luís Diogo e há largos anos “preservado” – para parafrasear um dos temas centrais do filme – na gaveta (os Galvão Teles partiram da sua ideia original mas depois tomaram os seus próprios caminhos), são interessantes, desde logo os temas-ambientes do filme, permanentemente em comunicação (é o “reenvio” interno de que falou Luís Galvão Teles ao À pala de Walsh): mundos e vidas paralelas (passadas, presentes, futuras, num intencional processo de erosão da noção de “tempo”) que se cruzam (ou não? pode ser tudo só um sonho e há algo de realmente onírico nas cenas filmadas na neve); as versões de nós mesmos que podemos encontrar nos outros (doppelgänger); presságios e danações; vida e morte, identidade e (i)mortalidade; realidade e ilusão (e o lugar do cinema nesse vaivém)… Enfim, tudo temas que alguém como Krzysztof Kieslowski tão espantosamente tratou (dispensando a tecnologia e valendo-se da poesia), mas que, aqui, confluem para uma malha bastante mal cerzida (mesmo para os espectadores mais apegados ao chamado cinema “fantástico”).
Na primeira aula a que Joana vai, ouve-se, a certa altura, o professor dizer que, no cinema, “primeiro vem a prática, só depois a teoria”. No caso de Gelo, porém, a impressão que fica é exactamente a oposta, no sentido em que, primeiramente, se aposta bem alto na “teoria” (citando-se máximas de Billy Wilder e John Ford) para, depois, se aplicar mal os conhecimentos “no terreno”. Essas citações de Wilder e Ford, referências do “cinema narrativo” que pai e filho apreciam, redundam num gesto solene que, se no momento em que é manifestado, até tem o seu sentido, soa, terminado o filme, bastante artificial e, fundamentalmente, desajustado por relação ao que se acabou de ver (é o risco de toda a citação). Se é certo que, em tese, como diz o professor, “todas as histórias são possíveis” (a frase ganha ainda mais peso, e mais risco, por ser pronunciada por Gonçalo Galvão Teles, co-realizador), não menos o é que o ponto fundamental está não tanto nessa infinitude de possibilidades, mas no modo como elas (histórias) são contadas. Ora, a este respeito, aquilo a que aqui se assiste é a um épico descarrilamento no qual o cruzamento de histórias e meias-histórias (e até de modos de filmar cada uma dessas histórias…!) com personagens que se repetem de umas para as outras não se consubstancia numa fecunda complexidade ou, enfim, numa aceitável – e até desejável – “dificuldade de compreensão” do filme para o espectador, mas, simplesmente, numa enorme confusão, tosca e rebuscada (pontas soltas a mais, que nem a “liberdade de interpretação do espectador”, como os realizadores apelaram em entrevistas, remedeia), quando não mesmo implausível [por que razão uma jovem espanhola, sem ligações significativas a Portugal (aqui está, precisamente, o problema no modo de contar), haveria de vir estudar cinema para… Lisboa? Só porque sim? Gostamos muito do nosso país, mas…].
Num outro plano, Gelo não consegue deixar de concentrar em si alguns dos piores tiques do pior cinema português dito “comercial” (embora não pertença, orgulhosamente, a esse campeonato), o que, num perverso processo, reforçará os estereótipos negativos da percepção do público português sobre o cinema nacional. Algo visível, desde logo, nos diálogos francamente maus [sobretudo as linhas de Miguel (Afonso Pimentel), canastrão até não poder mais], responsabilidade não tanto (ou não apenas) dos actores que os dizem, mas de quem os escreve e, sobretudo, de quem os dirige e filma (a mise-en-scène, um enquadramento podem, por vezes, fazer milagres, mesmo na presença de um mau texto). Depois, a gritante falta de densidade da maioria das personagens [Samuel (Albano Jerónimo), Filipe (Ivo Canelas), o médico (Carlos Santos)], que nos trouxe à memória a célebre “espessura de um recibo” do João Lameira, e a irrisão de outras (o inenarrável “Génio”; Filipe, novamente, cuja gravidade em tudo o que faz ou diz o aproxima perigosamente do ridículo). Quanto a Ivana Baquero [exigência espanhola da co-produção e actriz descoberta para o mundo com El laberinto del fauno (O Labirinto do Fauno, 2006)], em torno de quem gravita o filme, pese embora o seu apagamento na primeira parte do filme (quando inicia as aulas e conhece Miguel), acaba por ganhar nova vida a partir, ironicamente, do momento fatídico (e como é confrangedor o modo como este é filmado…), sendo um dos poucos motivos de interesse daí para a frente, imprimindo verdadeiro dramatismo e fazendo o espectador acreditar, por breves instantes, no dark side do filme (isto enquanto Joana; na pele de Catarina, é simplesmente uma personagem-caricatura que existe para sinalizar a existência de uma vida paralela, ficando por explicar, senão por constrangimentos práticos relacionados com a produção, o facto de falar espanhol quando cresceu num meio de língua… portuguesa).
Como frisámos no início, não nos excita o palato maltratar o trabalho de terceiros por desporto e, por isso, é com pena que nos vemos forçados a sublinhar a traço grosso as fragilidades de um filme como Gelo, vindo de alguém (em co-realização com o filho) com uma história e um lugar estimáveis na história do cinema português. Demasiadas fragilidades que ofuscam, por completo, alguns dos pormenores interessantes do filme, como a cena da aula de cinema e o romance que se lhe segue (alguma daquela leveza muito nouvelle vague tão querida a Luís Galvão Teles, ainda assim maculada, insista-se, pela canastrice de Miguel) ou a palete simbólica de cores e temperaturas (sobretudo o branco-frio e o vermelho-quente muito garrido, como pinceladas de vida, sangue e morte). Se, como escreve Andrew Tudor, a noção de genre é interessante, sobretudo, para a “exploração da acção recíproca psicológica e sociológica entre o realizador, filme e público”, se ela “sugere alguma coisa sobre a resposta do público (…) porque o público tem certas expectativas em relação ao genre“[1], dir-se-ia que o filme tropeça no próprio pé e que, nessa ambição de cruzar tudo, acaba por se volver num emaranhado obscuro e aborrecido para o espectador. Nota-se que há muita boa-vontade e entusiasmo (o tal “estado de inocência”), como a excelente entrevista de Luís Galvão Teles testemunha, mas não chega. Infelizmente, sai-se como se entra: o gelo não se quebrou.
[1] Andrew Tudor, Teorias do Cinema, Edições 70, 2009, p. 142.