João Nicolau lança agora a sua segunda longa-metragem, John From (2015), filme sobre paixões adolescentes no tépido tédio das férias grandes, que se espraiam nas ruas meio desertas de Lisboa, abandonada pelos seus habitantes em Agosto. Ricardo Vieira Lisboa e João Lameira foram entrevistar o realizador ao seu bairro, Telheiras, onde (quase) toda a acção de John From decorre. Falaram sobre este e outros filmes, casuares, filmes de Verão, música, os problemas do mundo e a coisa mais importante de todas: o coração de uma menina.
Ricardo Vieira Lisboa: Quando o filme passou na Cinemateca Portuguesa, a folha de sala que escreveste, e só consigo parafrasear, dizia algo como “há muitas coisas a acontecer pelo mundo fora, mas a mais importante de todas passa-se no coração de uma menina”. Sentes a necessidade de os teus filmes fugirem à actualidade, aos problemas do mundo que passam na televisão?
O que essa folha dizia era que, e também já não consigo citar exactamente, que tudo e todos nos fazem crer que as coisas mais importantes do mundo são: a ascensão e queda deste governo ou do próximo, a resolução desta crise ou não, os actos de terrorismo que grassam por esse mundo fora. E quando eu digo tudo e todos, estou também a incluir o cinema. Com este filme tive vontade de explorar o tema mais clássico dos filmes que fiz até agora – não fiz muitos, mas já são alguns – e apeteceu-me assumir que há uma coisa muito mais importante e mais universal do que as que eu disse, porque acontece a toda a gente, em todo o mundo, sempre aconteceu e duvido que vá deixar de acontecer: procurei auscultar o que é o início de uma paixão, a sua lógica (não necessariamente racional, a sua natureza), de como se transforma e como pode transformar o mundo à volta.
R.V.L: Comparando com a tua longa-metragem anterior, este é um filme mais “certinho”, com um fio narrativo mais evidente. Em A Espada e a Rosa (2010) experimentavas muitos géneros diferentes. Este é um filme mais contido.
Eu prefiro essa palavra: contido. Aliás, este filme acaba também por ter muitos géneros metidos ao barulho: desde o fantástico ao melodrama, passando quase pelo filme de fantasia e uma aproximação a uma espécie de teen movie, que em Portugal nunca foi feito fora de uma lógica burgessa do cinema de massas. Esses géneros continuam a estar lá, assim como o prazer de me aproximar deles, de os trabalhar à minha maneira (que é a única que eu sei). De facto, é um filme mais contido, e isso foi desde o início (quando o comecei a escrever com a Mariana Ricardo) o único momento de reacção ao filme anterior. Queríamos um mínimo de personagens principais, num espaço limitado, de preferência em terra firme. E foram essas as condicionantes que nos pusemos à partida. É que claro que a partir do momento em que começámos a descobrir as personagens, estas condicionantes ficaram esquecidos, foram algo meramente processual.
João Lameira: Mas de alguma maneira o John From tem algumas semelhanças com o Gambozinos (2013): há paixões de adolescência e a fantasia que irrompe a dada altura. O filme começa num registo naturalista e a fantasia vai-se infiltrando até ocupar tudo, e isso já acontecia de algum modo com o Gambozinos.
Eu concordo com algumas coisas da pergunta, com outras nem tanto. Para mim o Gambozinos é um western ambientado na infância e não, como aqui, na adolescência. Eu digo um western, porque trata da figura de um herói injustiçado pela força das armas (e claro que ali as armas não são pistolas) que acaba por vencer e levar a amada a cavalo. Quanto à irrupção da fantasia, ela está nestes dois filmes, mas também já estava nos anteriores de certo modo. No entanto, creio que há algo que os diferencia dos anteriores (duas curtas e uma longa-metragem): nesses, as personagens tinham criado uma série de regras para viver e os filmes começavam já com essas regras firmadas, ao passo que estes dois últimos tratam mais da transformação dessas regras. É isso que permite que o filme, como disseste, comece num registo naturalista ou realista (os conceitos são complicados e não é importante aqui ser exacto) e se vá modificando. A Espada e a Rosa começa logo com uns cientistas e uns helicópteros a andar à volta, é outro registo…
R.V.L.: Estavas agora a falar dos helicópteros. Nos teus filmes há um fascínio pelos efeitos, neste último há o passeio da avestruz por Telheiras…
Casuar, chama-se casuar.
R.V.L.: Sim, o bicho. Ainda assim, sinto um gosto pelo lado primitivo dos efeitos.
Isso é muito deliberado, o lado primitivo. De outra maneira, não me interessaria. Os tais helicópteros são verdadeiros, mas claro que são miniaturas; há o gosto pelas coisas físicas. Outro exemplo é o momento em que na cena da piscina a personagem atravessa todo o seu comprimento debaixo de água. Essa cena foi tão ensaiada como qualquer outra, com diálogos maiores ou maiores nuances dramáticas. Ou também as cenas musicais. Eu gosto muito de experimentar essas coisas fisicamente. Neste caso, era impossível, apesar de ter tentado trazer essa ave para aqui (só existem três em Portugal), mas não sabia que era um animal perigosíssimo – nem o tratadores entram nas jaulas – devido às patas que dão coices violentos. Tentámos em Espanha e, apesar de ser possível trazer o bicho, o custo era incomportável. Mas faz parte de um todo, já que a transformação da vegetação entra num jogo assumido entre as plantas verdadeiras e as árvores obviamente falsas. E portanto a fisicalidade neste filme passou pelo efeito ser totalmente assumido, nesse lado primitivo (é uma palavra certa). A mim não me interessa uma simulação que ludibrie o espectador, não que tenha nada contra esse trabalho ou estética (há coisas óptimas feitas aí), mas no sentido em que eu quero filmar é muito importante que se perceba a mistura entre as coisas verdadeiras e as falsas, entre as mudanças de guarda-roupa verdadeiras e os aviões falsos. Eu quero que o espectador alinhe e assista a um filme que se está a fazer à sua frente.
J.L.: Dizes que queres que o espectador alinhe, mas há um lado de private joke no filme. A Mariana Ricardo, com quem escreveste o filme, é tua irmã e sente-se que há uma série de referências que são só vossas.
Não sei a que te referes…
J.L.: Por exemplo, as protagonistas chamam-se Paulo Rodrigo uma à outra. E há o sistema dos bilhetinhos no elevador.
Elas chamarem-se Paulo Rodrigo é uma private joke entre elas. É criado. Foi um nome que escolhemos, não é a transposição de nenhuma piada do nosso universo. Mas interessa-me explorar os códigos da adolescência, aliás, interessa-me retratar a adolescência como um tempo cinematográficamente presente, e não como um requiem para uma coisa que eu vivi, não é esse o intuito. Nesse sentido, as piadas são mais coisas delas. Os papelinhos no elevador, que é um meio de comunicação que seria facilmente desmontável pela presença de mensagens de telemóveis, são códigos tão patéticos como outros que creio que todos nós tivemos. Além de reforçar a relação de amizade, com essa entidade do melhor amigo, numa relação intensa até mesmo amorosa, mesmo que não passe pela paixão ou pelo desejo.
J.L.: Mas é um filme de cumplicidades dentro e fora da história. Escreves com a tua irmã, o montador é o Alessandro Comodin para quem montaste o primeiro filme [L’estate di Giacomo (2011)]…
E já montei o próximo [I tempi felici verranno presto (2016)]… Mas isso são exterioridades ao filme, podemos falar delas, porque me orgulho muito dos meus colaboradores e dessa rede. Eu trabalho com a minha irmã desde A Espada e a Rosa, já escrevemos o próximo filme, mas a Mariana trabalha para outros realizadores. Até começou a trabalhar primeiro para eles… Aí não há nada de private. O Alessandro convidou-me para montar a primeira longa-metragem dele – e foi uma experiência incrível -, e eu decidi reciprocar. Também porque me interessava um olhar completamente de fora, nem que seja por não conhecer o bairro de Telheiras, não ter estado presente na rodagem e saber apenas o português suficiente para perceber os diálogos e avaliar o material filmado. Mas também vos podia falar do meu director de fotografia, o Mário Castanheira, que trabalha comigo desde a minha primeira curta-metragem e é uma colaboração que muito prezo, ou do Miguel Martins que assina aqui, pela primeira vez, o som directo de uma longa, depois de já o ter feito numa curta, o Rapace (2006). Eu nunca estabilizei uma equipa, estou sempre a trocar. Ccom excepção do Mário Castanheira), todos os postos mudaram do filme anterior para este. Por exemplo, a Mariana não escreveu comigo o Gambozinos… Não há aqui nenhum programa, nem nenhuma imposição tribal.
J.L.: Mas depois também trazes o Vasco Pimentel e o João Matos [o mais famoso “homem do som” do cinema português e o produtor da Terratreme, respectivamente, cuja participação em John From se reduz à interpretação] que, funcionando bem como actores, revelam essa rede de cumplicidades.
Eu também acho que funcionam bem como actores… Mas acredita que eu os escolhi por achar que eles eram as melhores pessoas para fazer aquelas personagens. Sim, chamei Sr. Pimentel quase como homenagem… tal como o João Matos na reunião de condomínio servia perfeitamente para a personagem. Mas, por exemplo, eu não tinha trabalhado antes com nenhum dos actores principais do filme, isso é se calhar o mais relevante.
J.L.: Como é que encontraste as duas miúdas?
Fiz um casting, pela primeira vez.
R.V.L.: Mas era uma condicionante serem de Telheiras?
Nenhuma delas é de Telheiras…
J.L.: E não se conheciam de lado nenhum?
Não. Aliás, quando elas fizeram o filme a Júlia [Palha] tinha 15 anos e a Clara [Riedenstein] tinha 13, o que é um enorme generation gap. Elas deram-se muito bem e souberam entender-se, apesar de virem de contextos muito diferentes. O processo do casting deu-me um gozo imenso. A primeira etapa era só falar com as miúdas, tinha um exercício no fim, mas era mais para eu as conhecer, ouvir as vozes, ver a imagem (que o cinema vive disso, dessa representação física). Mas ajudou-me muito, primeiro porque humanamente pude conhecer uma geração da qual já me vou forçosamente afastando. Em segundo, porque ajudou-me a descobrir muitas coisas do filme: eu fiz casting com miúdas entre os 12 e os 20 anos, eu não tinha ainda uma idade fechada… A protagonista tinha que viver em casa dos pais, isso era importante por causa da disponibilidade. E também por isso ambientei o filme nas férias de Verão, para me desenvencilhar de todos os factores condicionantes. Daí que não haja quase figurantes (a não ser nas poucas cenas em que há muitos e funcionam como oposição), já que filmámos em Agosto e havia muito menos gente. Depois até foi curioso, porque a Júlia, após ter passado as três fases, diz-me que afinal já não queria fazer o filme porque tinha havido um mal-entendido e ela pensava que seriam duas semanas e não dois meses… Não queria abdicar das férias. Eu fiz um bocado o papel do advogado do diabo, “férias há sempre”, mas claro que não, tens quinze anos, tens que ter férias… Ela disse-me que estava nas aulas a sonhar com as duas semanas que ia com a família e os amigos para o Algarve, e nós conseguimos respeitar isso e organizámos a rodagem para parar praticamente essas duas semanas – filmámos três ou quatro dias, apenas as coisas que podíamos filmar sem ela, o que é pouquíssimo já que ela aprece em quase todos os planos do filme.
R.V.L.: Estavas há bocado a falar do trabalho do Mário Castanheira. Neste filme há um lado plástico muito evidente, a começar pelas personagens que se pintam, mas também porque as cores dos prédios de Telheiras parecem estar a rebentar e, claro, por ter sido filmado em película. Nem todos os teus filmes foram filmados em película?
O Gambozinos infelizmente não foi, a economia de uma curta não o permitia. Filmámos em digital mas tirámos uma cópia em 35mm, com uma correcção de cor própria, que trouxe uma série de desvios diferentes e interessantes à imagem digital. Para mim o filme, como eu o imaginei, é a cópia em 35. Se calhar começava por dizer que esse foi um dos motivos pelos quais escolhi Telheiras. Mais ainda que a minha ligação a este bairro, que não escondo. Pelo contrário, cresci aqui e agora habito cá, apesar de ter feito um longo interregno (e já filmei em muitos outros sítios que não a minha cidade, não é por aí…). Mas escolhi Telheiras, porque tem um linguagem que se impõe e me isenta de explicar uma série de coisas epelo facto de este ser um dos dois bairros lisboetas a ter sido planeado de raiz, o que faz com que o espaço entre edifícios seja muito maior e a penetração da luz seja também diferente, ao contrário das ruas estreias da Graça, onde vivi durante sete anos, em que tens 45 minutos de luz por dia, e davam outro filme. Ao ser um filme de Verão, sem stress com exames e aulas, joga nessa linguagem arquitetónica, mas também cromática: as cores estão lá, os corrimões azuis, as portas dos elevadores estão lá. Assim, com a mínima manipulação de luz (tendo a trabalhar quase só com luz natural), a película Super 16mm no Verão dá esse lado plástico. Interessa-me muito a matéria plástica da película. Também filmo quase só com duas lentes, sempre muito abertas; se quero fazer um grande plano aproximo a câmara. E sendo esta a primeira vez que trabalhei com Super16. Faz com que certos planos, que são muito compostos, mexam sempre um bocadinho com a película, algo que não acontece com o digital, de todo. Ainda mais quando sabia que ia filmar fachadas, betão. Isso tudo junto cria a imagem do filme, com a qual estou muito contente, mérito do Mário também, porque a transformação do filme vê-se na luz que se vai reduzindo ao longo do filme. Como também o som vai baixando (ainda que o final tenha a “Lambada”), assim como os diálogos se vão tornando muito mais curtos: se os primeiros são naturalistas, os últimos são quase da ordem do relato mítico. São transformações da qual a plástica também participa.
R.V.L.: Falando da “Lambada”: as músicas vêm antes ou depois da rodagem?
Vêm antes e vêm durante. Muita da música vem durante a escrita. Mesmo que depois tenhamos de alterá-las por ter encontrado outra melhor ou por não ser possível usar aquela, por questões de direitos (ainda que raramente isso aconteça já que as músicas que escolho não são muito inalcançáveis). Por exemplo, a “Lambada” foi dos casos mais difíceis [esfrega o indicador e o polegar] de concretizar. É quase insondável explicar porque chegámos à Milanésia, mas a música, e as gravações etnográficas de que gostamos muito, deve ter sido um dos motivos. Mas, sim, a música muitas vezes vem no processo de escrita e condiciona-a logo: os diálogos podem ser uma resposta à letra. Ainda que neste filme haja muito pouca música tocada pelas personagens, há a sequência final da Júlia no órgão. Ela, que nunca tinha tocado órgão antes, conseguiu tocar mesmo, e isso para mim é tão importante como decorar trinta linhas de diálogo, não estabeleço níveis de importância. Mas, por exemplo, na cena em que ela está a ser penteada, descobrimos a música nos ensaios e gravámos a cena com a música a tocar, e por isso não a podíamos trocar. É essencialmente uma escolha antes e durante, raramente depois, só a música do genérico veio mais tarde, apesar de já estar quase definida. Neste filme, convivem mais tipos diferentes de música, e é algo que o enriquece, desde a Lily Allen ao Moondog até às gravações etnográficas da Milanésia e doutras ilhas do Pacífico. E às composições do João Lobo, o compositor deste filme, que parecem gravações etnográficas, mas são criações dele inspiradas nos coros das ilhas Salomão (que são por si já cruzamentos entre a música coral religiosa ocidental com os ritmos autóctones). Deu-me muito gosto trabalhar com o João, que assumiu a direcção musical, que conseguiu passar da “Lambada” ao jazz sem que fosse dissonante.
R.V.L.: No filme há uma cena em que a personagem da mãe está a ver um filme do Aki Kaurismäki. Tens uma ligação especial ao realizador, àquele filme em particular, ou era um DVD qualquer?
Não era um DVD qualquer, mas quase. No guião, a cena está escrita como: a mãe está a ver um filme na televisão. E só está porque devia ser algo que lhe prendesse a atenção para não dar importância à filha que chega à noite a casa depois de uma típica noitada das férias. Podia ser uma série, mas eu queria figurar isso – como quis figurar o programa que a Rita está a ver quando está de ressaca – uma cena de club tv que foi montada de propósito para filmarmos -, ou a realidade mediada em ecrãs de televisões, telemóveis, computadores. Há muita gente que tem horror em filmar essas coisas, eu sinceramente não vejo por que não assumir que é por aí que uma parte da nossa vida passa, como também pelas compras no Continente. Então na altura da rodagem tivemos que escolher um filme, e colocaram-se questões dos direitos e tudo mais. Na verdade, ou eu punha um filme da minha produtora, e tinha os direitos – mas não quis trazer à tona esse lado de private joke ou camaradagem (e um filme português traria sempre leituras àquela cena que não me interessavam. Assim, quis que fosse uma cena equivalente ao que a Rita está a viver: é um tipo sozinho, num bar, a beber. E depois lembrei-me dessa cena. O Kaurismäki é um realizador que eu aprecio, ainda que eu não seja de todo cinéfilo. Falámos com ele, foi muito simpático e cedeu os direitos do filme.
J.L.: Estás a dizer que não és cinéfilo, mas há um tema recorrente em algum cinema português que é o dos filmes de Verão: o Uma Pedra no Bolso (1988) do Joaquim Pinto, o À Flor do Mar (1986) do João César Monteiro. Não pensaste em nada disto, não sentes qualquer filiação?
Não, de todo. Todas as cinefilias têm filmes de Verão, e nós lembramo-nos dos nossos filmes de Verão porque há pouquíssimos, assim como há pouquíssimos filmes de Inverno, com jovens e com velhos, porque fazemos muito poucos filmes. Já filmo no Verão desde a minha segunda curta, porque eu gosto mais de tudo no Verão, de estar com as pessoas, de estar na rua. Não é um programa, o meu próximo filme não é de todo um filme solar, só por um azar será no Verão. Mas não sinto nenhuma filiação, nem revi esses filmes, aliás, devo confessar que nunca vi o filme do Joaquim Pinto. Já o À Flor do Mar, vi, e gosto bastante.