É agora. Já há algum tempo que vos queria falar dele. Tinha anunciado entre amigos a vontade de escrever sobre aquele que carinhosamente apelido de “o meu pior actor favorito”. Aprendi a gostar dele, porque não é fácil ultrapassar a evidência do seu pouco talento para a cousa interpretativa. Nos filmes, construiu uma persona desfasada da sua verdadeira essência, fora dos sets. No grande ecrã, ele é o herói de acção ágil e resoluto ou o galã que derrete os corações das maiores beldades de Hollywood. A segurança que as suas personagens inspiram é inversamente proporcional à sua aura simultaneamente zen e deprimida que lhe dá fama atrás das câmaras. Estou a falar da estrela recém-regenerada, graças ao sucesso de um filme de acção que o soube ler, que protagonizou sucessos planetários como Speed (Speed – Perigo a Alta Velocidade, 1994) e The Matrix (Matrix, 1999). Keanu Reeves, o “the one” ou “o homem triste sentado no banco de jardim”. Antes de regressar em força, Reeves reconquistava a opinião pública com a sua versão “Sad Keanu”, fotografia transformada em meme na qual esta super-estrela do cinema de acção aparecia destituída não só de poderes especiais como da capacidade mais terrena para aguentar o peso da vida.
“Sad Keanu” é a imagem de Keanu sentado, mastigando uma sandes de pão duro como um filósofo existencialista procura digerir na sua escrita o vazio e o absurdo da vida. Este Keanu não será o verdadeiro Keanu. Mas não está mais longe da verdade que o “the one” que transformou este actor nascido no Líbano numa figura planetária ou, no grande ecrã, num messias hiper-elástico que coreografa no seu bailado marcial o movimento no tempo e o tempo no movimento. A inexpressividade assentava-lhe bem no filme dos irmãos… perdão, das irmãs Wachowski. O movimento, fabricado por boas doses de CGI, também vinha a calhar a um espírito cadenciado pela tristeza. É esta cadência triste, uma tristeza acalmada, zen, au naturel – uma tristeza contemplativa, que, sem queixume ou amargura, mastiga pão velho até à eternidade -, que apanha Keanu Reeves, sentado, nas suas entrevistas à imprensa. Lembro-me de uma frase, repetida como se fosse refrão, que pontua um filme de Roy Andersson que o outro dia apanhei nos canais TVCine, Sånger från andra våningen (Canções de Segundo Andar, 2000). As palavras foram roubadas ao poeta peruano César Vallejo: “amadas las personas que se sientan”. Amado o Keanu que se senta. E amada a sua sandes imastigável, motivo para uma (e)terna contemplação do vazio.
Keanu é conhecido entre os pares por ser “um gajo porreiro”. As suas entrevistas revelam algo mais. A sua serenidade aparece despojada de qualquer pose. Nem sequer é charme. Também não é bem melancolia. Apetece dizer: é o que é, simples e silenciosamente. Arrisco dizer mais: parece ser um misto de timidez com uma solidão interior perfeitamente acomodada. Keanu agradece a oportunidade para falar, mas não está certo de que tenha algo de muito importante a dizer. Numa das entrevistas fala da sua vida, alertando que esta não tem interesse algum (“é um desastroso tédio”). Há sempre um vazio em Keanu que este não sabe disfarçar. São conhecidos os seus “momentos depressivos”. Mas ele não é o deprimido amargurado, ele é o deprimido que sabe que não vale a pena resmungar. O “Sad Keanu” diz a Keanu Reeves: mastiga, mastiga, mastiga… a tristeza é isso, pão de anteontem que devemos aceitar, sentados, abençoadamente sentados. Mas, depois, no ecrã, Keanu não é bem isso. E esse desfasamento complica a caracterização desta pessoa. O “the one” tem problemas de auto-confiança? Não está certo dessa coisa tão americana, “a procura da felicidade”? O “the one” é o “unhappy one”? É, mas, de novo, Keanu surpreende, porque não está cá para se queixar. Mastiga, Keanu, mastiga. Mais um bocadinho.
Há qualquer coisa rara nesse modo de (vi)ver a vida chamado Keanu Reeves, o herói sentado, prostrado, blue.
Com John Wick (2014), Keanu regressou dos mortos – de mais uma série de momentos depressivos? Não me interessa aqui especular. E o sucesso deste filme não estará, do meu ponto de vista, na forma como renova a gramática do cinema de acção ou do filme de vingança, mas no facto de saber ler o seu actor. E, em cinema, saber ler é saber dar a ler. O herói aqui é um herói sorumbático, prostrado, em luto. Ele reage porque não aguenta – e não pode aguentar mais – tanto sofrimento. Ele é mais um herói blue que um herói noir. Um estado de alma que não tem nada que ver com a amargura fleumática de um Humphrey Bogart. Ele traduz a tristeza de um homem irremediavelmente só, que sabe – só sabe – que não vai ganhar grande coisa com o seu gesto de vingança, mas que, mesmo assim, o leva avante. Isto é, leva-o avante, apesar de tudo. O herói blue é o herói “apesar de tudo”. Em Knock Knock (Knock Knock – Tentações Perigosas, 2015), Eli Roth também percebeu a vulnerabilidade de Keanu Reeves, mas revirou-a e tornou-a patética. Portanto, diria que, finalmente, o cinema parece ter encontrado um lugar onde o verdadeiro Keanu se pode sentar confortavelmente. A tristeza almofada este seu comeback. [Um parêntesis para dizer que penso que Gus Van Sant em My Own Private Idaho (A Caminho de Idaho, 1991) foi dos poucos cineastas a conseguirem fazer passar no ecrã a personalidade serenamente deprimida e, até certo ponto no filme, generosa de Reeves.]
No canal Fox Movies, parei o zapping na única experiência de Keanu Reeves na cadeira de realizador. É uma produção de considerável dimensão falada em chinês e filmada, maioritariamente, em Beijing. Man of Tai Chi (O Homem do Tai Chi, 2013) é um filme de artes marciais sobre um dos últimos intérpretes do Tai Chi. Para o mestre de “Tiger”, o herói do filme, o Tai Chi é uma arte meditativa antes de ser uma arte de combate. O desafio moral que se coloca ao protagonista prende-se com o dilema de enveredar pela dimensão positiva (meditativa) dessa arte ou convertê-la numa força negativa (de combate). Como em todas as histórias do género, um vilão temível entrará em cena para precipitar “Tiger” nesse seu caminho de auto-esclarecimento. Reeves assume o papel de um magnata que enriquece à custa da curiosidade de um grupo secreto de gente poderosa por lutas “vale tudo” dentro e fora do ringue, físicas e morais. Um reality show que terá “Tiger” como protagonista involuntário. O conflito do filme é resolvido à maneira de “Sad Keanu”: a via da contemplação derrota a via do combate. O herói ouve, finalmente, as lições do seu mestre e, depois de derrotado o seu demónio (personificado pela personagem de Reeves), abre-se a um futuro devotado à contemplação/meditação. O Tai Chi interioriza-se, tornando-se num assunto do espírito.
O filme é pedestre na sua construção visual e narrativa. E também aqui Reeves mostra-se desfasado de si mesmo, ou seja, a sua inexpressividade maligna não convence particularmente. Contudo, a postura moral serve bem de espelho para a natureza zen do homem. Apesar do festival de pancadaria – pouco inspirada variante de The Matrix -, Man of Tai Chi celebra essa mastigação existencial da vida, que será cara ao Keanu tal como o conhecemos fora dos ecrãs. Não vejo como é que um actor, sobretudo um flagrante mau actor, pode perder em aproximar as suas personagens da sua própria essência. Para mais, quando essa essência é tão singularmente sad. Com efeito, há qualquer coisa rara nesse modo de (vi)ver a vida chamado Keanu Reeves, o herói sentado, prostrado, blue. Numa das entrevistas, ele elenca as suas preferências musicais e, surpreendentemente ou não, aponta as composições de Arvo Pärt. É isso: no interior de Keanu Reeves parece chover Arvo Pärt sem parar. Falta agora ao cinema saber fixar mais e melhor esta sua imagem interior. O inverno incessante de um mau actor que vale a pena contemplar.
Esta crónica é baseada no visionamento de várias entrevistas a Keanu Reeves alojadas no YouTube. Para efeitos de ilustração, deixo aqui as duas mais representativas. Uma em que Reeves fala, entre outras coisas, sobre Man of Tai Chi, John Wick e a sua preferência musical por Arvo Pärt (mas também Fugazi, John Coltrane, Arcade Fire, entre outros). Outra (um excerto) em que Reeves disserta sobre a sua “boring private life”.
Sem Comentários